É o sono da memória
que gera o sono da razão
Stefano Carral,
La traversata del Gobi*
Quando no início de Novembro de 1944 aqueles corpos foram atirados para a vala comum em Abda, junto ao rio Rába, nenhum dos presentes podia imaginar que, no bolso das calças de uma daquelas vinte e duas pessoas acabadas de executar, houvesse alguma coisa digna de verdadeira nota.
Só dois anos depois, terminada a guerra, com a exumação dos corpos, viria a ser descoberto um caderno[1] de papel quadriculado, de quinze centímetros de altura por dez de largura, em cuja primeira página (escrita em húngaro, inglês, alemão, francês e servo-croata) estava escrito: Por favor, entregue este caderno, que contém poemas do poeta húngaro Miklós Radnóti, ao Sr. Gyula Ortutay, professor da Universidade de Budapeste. Antecipadamente grato.
Apesar de reconhecido como um dos maiores tradutores húngaros[2], apesar dos sete livros de poemas que publicara em vida, apesar do doutoramento em Filosofia e dos prémios que já recebera[3], esse caderno com apenas dez poemas viria a tornar-se a peça mais extraordinária do legado (literário, histórico e humano) daquele judeu húngaro de 35 anos, que quisera receber o Baptismo no ano de 1943 e que recusara a fuga que a tempo lhe fora oferecida.
Todavia, a 30 de Outubro de 1944, ou seja, a escassos dias da morte com um tiro na nuca, um jornal de Temesvár (hoje, Timisoara, na Roménia), o Déli Hírlap, publicou dois dos poemas que também estavam escritos nesse caderno (A Sétima écloga e A la recherche), num artigo intitulado “Poetas atrás do arame farpado”. Isto, porque o poeta, em Outubro desse derradeiro ano, conseguira passar a um dos condenados, entretanto libertado do campo pelos partisans jugoslavos, Sándor Szalai, cinco poemas (um dos quais aqui apresentado, escrito a 15 de Setembro).
Cumprindo-se agora 80 anos destes episódios, pretendi lembrar neste texto os últimos seis meses da vida de Miklós Radnóti, através da oferta aos leitores deste jornal de uma versão possível de três poemas seus[4], o primeiro escrito ainda em Budapeste (O perseguido), antes de ser arrancado à cidade, o segundo já no campo de concentração de Bor, na ex-Jugoslávia (Marcha Forçada), e o último dos que escreveu em vida (Bilhete Postal 4).
1. UMA DESCOBERTA CADA VEZ MENOS ESTRANHA
O presente exercício seria descabido se em Portugal houvesse, como era previsível que existisse, um satisfatório cultivo das Letras.
Infelizmente, não é assim.
Desde logo, no plano da Universidade – “um estado de coisas” (Vasco Pulido Valente) agravado pela “funcionalização” imposta por Bolonha e pela imparável “mercantilização” do espírito, do processo e do produto. Na verdade, em nenhuma das nossas Faculdades de Letras (ou em qualquer outra) se encontra uma obra de Miklós Radnóti, uma obra sobre Miklós Radnóti, uma dissertação ou uma tese acerca de Miklós Radnóti.
E se, no mês passado, era o panorama do ensino, da investigação e da prática em Psiquiatria que nos estarrecia, agora – já mais aclimatados a esta periférica tristeza –, é o estreito horizonte da Poesia a intimar-nos.
Mas também é assim no plano da sociedade, no caso, no plano editorial. Apesar das proclamações em contrário – do género: “a geração mais preparada de sempre!” –, as duas únicas edições portuguesas de alguns poemas de Miklós Radnóti têm mais de 40 anos[5] e nenhum desses (pequenos e deficitários) livros, há muito esgotados, se encontra sequer disponível na Biblioteca Nacional.
E tudo isto mesmo depois da rara exaltação do poeta feita pelo Papa Francisco.
2. OS POEMAS
Os três poemas que a seguir apresentamos, exemplos de bucólicas “in extremis”[6], além das suas múltiplas versões em inglês, estão igualmente traduzidos em diversas outras línguas (com destaque para a italiana), incluindo a castelhana[7] e a portuguesa[8].
Não possuindo conhecimentos da língua húngara, além do apoio pessoal pontual a que recorri, a opção foi a de confrontar as diversas propostas, particularmente na sua consistência literária, tendo no final optado pela tradução das seguintes versões: no primeiro poema, a tradução foi feita a partir da versão inglesa oferecida por Thomas Ország-Land, no site Visegrad Literature; no segundo e no terceiro poemas, a tradução foi feita a partir das versões italianas disponibilizadas pelo Professor Alessandro Fo, no seu estudo «Sogno pastorale e drammi della Storia: fra Mantova e Bor», publicado inicialmente em 2014[9].
O perseguido
Da minha janela vejo uma encosta,
mas ela não me vê;
estou quieto, o poema destila da minha caneta
mas nada importa ao escondido;
ainda que não possa entendê-la,
vejo essa solene graça antiga:
como sempre, a lua surge no céu
e a cerejeira explode em flor
9 de Maio de 1944
Bujdosó
Az ablakból egy hegyre látok,
engem nem lát a hegy;
búvok, tollamból vers szivárog,
bár minden egyre megy;
látom de nem tudom mivégre
e régimódi kegy:
mint hajdan, hold leng most az égre
s virágot bont a meggy.
Marcha Forçada
É louco aquele que, tombado, de novo se levanta e se encaminha,
e com dor errante move joelhos e tornozelos,
e ainda assim vai pela estrada como se tivesse asas,
a vala chama por ele em vão, não tem coragem de ficar,
e se lhe perguntares por que não? talvez ainda te responda
que uma mulher está à sua espera, uma morte mais sábia, uma morte bela.
Todavia é louco, o manso, porque lá ao longe sobre as casas
há muito não volteia mais do que um vento abrasador,
a parede desabou, despedaçada está a ameixieira[10]
e o medo é o manto das noites lá na pátria.
Ah, se eu pudesse acreditar: não só trazer no coração
tudo o que ainda tem valor, e haverá uma casa para onde voltar?
se houvesse! e como outrora na varanda fresca
a abelha pacífica zumbisse, enquanto o doce de ameixa arrefece,
e o silêncio do final do Verão se banhasse ao sol nos jardins sonolentos,
e os frutos nus balançassem por entre os ramos,
e Fanni estivesse à minha espera loira em frente à sebe
e lentamente a manhã lenta a desenhar a sombra –
talvez ainda seja possível? a lua hoje está tão redonda!
Não passe por mim, amigo, grite-me! e eu levanto-me!
Bor, 15 de Setembro de 1944
Erőltetett menet
Bolond, ki földre rogyván fölkél és újra lépked,
s vándorló fájdalomként mozdít bokát és térdet,
de mégis útnak indul, mint akit szárny emel,
s hiába hívja árok, maradni úgyse mer,
s ha kérdezed, miért nem? még visszaszól talán,
hogy várja őt az asszony s egy bölcsebb, szép halál.
Pedig bolond a jámbor, mert ott az otthonok
fölött régóta már csak a perzselt szél forog,
hanyattfeküdt a házfal, eltört a szilvafa,
és félelemtől bolyhos a honni éjszaka.
Ó, hogyha hinni tudnám: nemcsak szivemben hordom
mindazt, mit érdemes még, s van visszatérni otthon;
ha volna még! s mint egykor a régi hűs verandán
a béke méhe zöngne, míg hűl a szilvalekvár,
s nyárvégi csönd napozna az álmos kerteken,
a lomb között gyümölcsök ringnának meztelen,
és Fanni várna szőkén a rőt sövény előtt,
s árnyékot írna lassan a lassú délelőtt, –
de hisz lehet talán még! a hold ma oly kerek!
Ne menj tovább, barátom, kiálts rám! s fölkelek!
Bilhete Postal 4
Caí ao lado dele[11], o corpo estava virado,
rígido como a corda a romper.
uma bala na nuca, – Também vais acabar assim, –
murmurei – deixa-te ficar estendido, calmamente.
Agora da paciência floresce a morte –
“Der springt noch auf”[12], ouviu-se por cima de mim.
E lama misturada com sangue secava no meu ouvido.
Szentkirályszabadja, 31 de Outubro de 1944
Razglednicák 4
Mellézuhantam, átfordult a teste
s feszes volt már, mint húr, ha pattan.
Tarkólövés. – Így végzed hát te is, –
súgtam magamnak, – csak feküdj nyugodtan.
Halált virágzik most a türelem. –
Der springt noch auf, – hangzott fölöttem.
Sárral kevert vér száradt fülemen.
José Melo Alexandrino é professor universitário
Agradeço, penhorado, à minha amiga Nora Kiss o ter-me dado a conhecer o poeta Miklós Radnóti, bem como todos os reparos e observações que nestes dias comigo teve a disponibilidade de partilhar.
Actualização (4 de Novembro de 2024)
No seguimento do atento e cuidado reparo feito pelo escritor e poeta Ernesto Rodrigues acerca das obras de Miklós Radnóti – nome pelo qual é habitualmente citado e conhecido, apesar de, como refere, a ordem dos seus nomes ser a inversa – existentes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no dia 4 de Novembro (precisamente aquele em que se completam 80 anos da morte daquele grande poeta húngaro), ficou igualmente disponível o acesso à nova versão do Serviço de Pesquisa Bibliográfica da Universidade de Lisboa. Aquando da redacção do artigo publicado a 31 de Outubro, a pesquisa então feita no catálogo não registava a existência dos livros (nem dos artigos de revista) de e sobre Miklós Radnóti que agora figuram efectivamente como existentes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Agradecidos a Ernesto Rodrigues pela oportuna observação, minorada por esta razão a tristeza referida no ponto 1 do referido artigo, aqui deixamos aos leitores do PÁGINA UM o devido esclarecimento, extensível ao registo de se deverem igualmente a Ernesto Rodrigues traduções portuguesas de alguns dos poemas de Miklós Radnóti, designadamente dos que foram integrados nas obras Antologia da Poesia Húngara, Lisboa, Âncora Editora, 2022, e Hungarica, Lisboa, CLEPUL, 2022.
* A citação de Stefano Carral foi colhida no artigo, mais adiante referido, «Sogno pastorale e drammi della Storia: fra Mantova e Bor», do Professor Alessandro Fo.
[1] Apesar de lamentavelmente não estar publicado entre nós, o caderno em questão tem o nome de Caderno de Bor, “Cuaderno de Bor” (em castelhano), “Bor notebook” (em inglês), “Taccuino di Bor” (em italiano), etc.
[2] Desde Safo a Hölderlin, passando, entre muitos outros, por Catulo e Brecht (cfr. Cecilia Malaguti, «“Descensus Ad Inferos”, Il viaggio di Miklós Radnóti negli abissi dell’anima», in Rivista di Studi Ungheresi, III (2004), p. 1.
[3] No sítio da Academia Húngara das Ciências, pode ver-se a biografia de Miklós Radnóti.
[4] As versões originais em húngaro estão disponíveis a partir do seguinte Catálogo Electrónico <http://mek.niif.hu/hu/>.
[5] São elas: Poemas de Miklós Radnóti, trad. de Zoltán Rózsa e versões de Tereza Balté, Porto, O Oiro do Dia, 1982; Zoltán Rózsa (org.), Poetas Húngaros – Antologia, Lisboa, Moraes, 1983, pp. 141-151.
[6] Sobre o tema, Seamus Heaney, «Egloghe “in extremis”, la capacità di resistenza della pastorale», trad. italiana do original inglês de Gabriella Morisco, in Roberto Andreotti (ed.), Resistenza del Classico, Milano, BUR Rizzoli, 2010, pp. 61-78.
[7] Destaque merece ser aqui dado à relativamente recente edição do Cuaderno de Bor, com tradução de Susana Lajtaváry e Peter Kiss, Rosário, Miércoles14Ediciones, 2020 (em edição bilingue e no formato original de 15cm x 10 cm).
[8] Os três poemas aqui oferecidos encontram-se traduzidos na obra Poemas de Miklós Radnóti, cit., pp. 23, 32 e 33, respectivamente; os dois últimos figuram igualmente, em idêntica tradução, na obra organizada por Zoltán Rózsa, Poetas Húngaros – Antologia, cit., pp. 149 e 151; os poemas Marcha Forçada e Bilhete Postal 4 foram traduzidos por Paulo Schiller e publicados na revista Ilustríssima da Folha de São Paulo, em 14 de Maio de 2014, disponíveis aqui (para assinantes); o poema Bilhete Postal 4 foi também traduzido por Luís Naves e divulgado no blogue Delito de Opinião (disponível aqui).
[9] Alessandro Fo, «Sogno pastorale e drammi della Storia: fra Mantova e Bor», in Bvllettino Sennese di Storia Patria, CXXI (2014), pp. 213-223, disponível aqui e também aqui.
[10] É pacífico o entendimento de estar aí presente o símbolo fundamental (a faia despedaçada) da IX Écloga de Virgílio (sobre o assunto, com outras indicações, Alessandro Fo, «Sogno pastorale…», cit., p. 221).
[11] O corpo era o do violinista Miklós Lorsi, «também ele um “manso”, crescido nas ilusões e nos confortos da beleza» (cfr. Alessandro Fo, «Sogno pastorale…», cit., p. 222).
[12] A passagem em alemão, glosadíssima dentro e fora da Hungria, pelas suas implicações literárias, políticas, religiosas, rácicas e identitárias, pode ser traduzida deste modo: “este ainda saltita”.
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