Recensão: Faca − Meditações na Sequência de Uma Tentativa de Homicídio

A arte como instrumento de superação

por Elisabete Tavares // Novembro 2, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Faca − Meditações na Sequência de Uma Tentativa de Homicídio

Autor

SALMAN RUSHDIE (Tradução: J. Teixeira de Aguilar) 

Editora

Dom Quixote (Maio de 2024)

Cotação

18/20

Recensão

Salman Rushdie é um autor tão amado quanto odiado. Sobre ele foi decretada uma sentença de morte. Foi em Fevereiro de 1989 que o aiatola Ruhollah Khomeini, o líder supremo do Irão, ordenou, através de uma fatwa, que o escritor fosse assassinado. Trinta e três anos depois desse decreto, a 12 de Agosto de 2022, Rushdie subia ao palco do anfiteatro de Chautauqua, Nova Iorque, para falar sobre a importância de manter os escritores fora de perigo, quando foi atacado por um jovem armado com uma faca. O autor de 'Os Versículos Satânicos' sobreviveu ao atentado e decidiu responder ao violento ataque escrevendo este livro.

A obra acaba por ser uma espécie de exorcismo combinado com a decisão de expurgar a 'vítima' existente no escritor, fruto da experiência de ser um alvo a abater por fundamentalistas.  Rushdie expõe ao detalhe a experiência traumática por que passou, naquele fatídico dia de Agosto, numa catarse. Ao mesmo tempo que liberta a dor e as recordações, o autor procurou, sobretudo, usar a escrita como instrumento para superar a dor, a injustiça, a perseguição e a violência de que foi alvo (e continua a correr perigo diariamente). De resto, o escritor dedica a obra aos homens e mulheres que lhe salvaram a vida. 

As páginas dedicadas ao ataque em si, e aos dias em que esteve internado, são difíceis de ler e de digerir. São íntimas, pessoais e gráficas em muitos aspectos. "Abri os olhos − apenas o olho esquerdo, conforme parcialmente percebi; o olho direito estava tapado com uma ligadura macia − e as visões não desapareceram, tornando-se, ao invés mais fantasmagóricas, translúcidas, e comecei a tomar consciência da minha verdadeira situação. A primeira descoberta, a mais premente e menos confortável foi o ventilador. Mais tarde, quando mo retiraram e pude dizer coisas, disse que era como se me enfiassem a cauda de um tatu pela garganta abaixo". Relatos como este atingem-nos de uma forma brutal e fria. São relatos contados na primeira pessoa por alguém que foi atacado de forma vil. Os detalhes sucedem-se, página após página, e tocam-nos de uma maneira desconfortavelmente íntima. "O meu pescoço e a minha face direita tinham sido retalhados pela faca e eles podiam ver ambos os bordos do corte unidos por agrafos metálicos".

Mesmo as páginas dedicadas à recuperação nos catapultam para um dia-a-dia de alguém que é, no mais profundo sentido, um sobrevivente. "Era entusiasmante fazer coisas tão 'normais' como ir a casa de amigos". O 'regresso' ao mundo é descrito ao pormenor; como foi sentido, por dentro; as impressões. Mas era um novo mundo. Uma nova vida. Uma entrevista publicada na The New Yorker, em Fevereiro de 2023, simbolizaram como que o 'anúncio' desse regresso.  "Quando a entrevista a fotografia foram publicadas, foi como uma reentrada no mundo após meio ano no Limbo. Fevereiro significava tudo isso. Além disso, 14 de Fevereiro era o 34º aniversário da fatwa. Eu deixara de me recordar dos aniversários da fatwa, mas agora tinha de recomeçar."

Rushdie é o vencedor; sobreviveu e vive, recusando submeter-se ao peso da sentença decretada. Recusa esconder-se. Recusa render-se. E vive. "Mas 14 de fevereiro era também o Dia dos Namorados e Eliza e eu decidimos comemorá-lo indo jantar a um restaurante pela primeira vez em seis meses. Fomos com segurança, mas fomos. Pareceu-me um momento profundo. olá, mundo, estávamos a dizer. estamos de regresso, e depois do nosso encontro com o ódio estamos a celebrar a sobrevivência do amor. Depois do anjo da morte, o anjo da vida." 

Ler este livro não nos atira apenas para dentro da vida de um escritor que foi retalhado física e emocionalmente por um ataque de ódio e recuperou. Recorda-nos da brevidade da vida e da liberdade que temos para a viver. Uma liberdade diferente da de quem olha por cima do ombro e sai com um segurança atrás, como Rushdie. E o escritor, mesmo assim, escolhe viver. Livre.  

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