Recensão: Manual para a obediência

Sou outro, não sou outro

por Maria Carneiro // Novembro 2, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Manual para a obediência

Autor

SARAH BERNSTEIN (tradução: Maria de Fátima Carmo)

Editora

Dom Quixote (Junho de 2024)

Cotação

15/20

Recensão

O mote é dado logo nas primeiras páginas:

Eu era a filha mais nova, a mais nova de muitos – mais do que gostaria de me lembrar – de quem tomei conta desde a mais tenra idade, antes, de facto, de ter eu própria a faculdade da fala e não obstante as minhas capacidades motoras estarem na altura pouco desenvolvidas, estes, os meus muitos irmãos, foram deixados a meu cargo. Eu satisfazia todos os seus desejos, aliviava o menor desconforto com perfeita obediência, com o maior grau de devoção, de modo que com o passar do tempo os desejos deles se tornaram os meus, de modo que eu conseguia antever necessidades ainda nem formuladas, porventura sequer imaginadas, providenciando aos meus irmãos o maior auxílio possível, satisfazendo-os apenas o suficiente para que depois me pudessem exigir mais, sempre mais, exigências a que eu acudia com alacridade e discreta prontidão, ministrando os complexos caldos terapêuticos que lhes eram prescritos por vários médicos, servindo refeições e lanchinhos, cigarros e aperitivos, últimas bebidas da noite e copos de leite à cabeceira da cama.”

Uma jovem mulher muda-se da sua terra natal para uma remota região, para ser governanta do irmão que foi, recentemente, abandonado pela mulher e filhos.

Embora seja a filha mais nova de uma série de irmãos, foi ela que sempre teve a seu cargo servi-los o que lhe moldou desde cedo o espírito, aprendendo a anular a sua existência. Mesmo no trabalho conta-nos: “(…) saí sem estardalhaço. Ninguém lamentou ver-me partir. O trabalho que tinha antes de ir para casa do meu irmão, no país dos nossos antepassados, e que continuaria a desempenhar remotamente de lá era transcrever documentos áudio em texto para um escritório de advogados, função em que era exímia, datilografando com rapidez e rigor e conhecendo bem o meu trabalho. Apesar disso, sentia que não era bem-vinda no escritório, onde se alinhavam os habituais aprestos legais, dossiês e diplomas, couro e madeira. Eu sabia que as minhas exibições hesitantes de humanidade, a minha insistência miserável em continuar a aparecer no escritório dia após dia, não podiam deixar de causar desalento aos juristas e assistentes jurídicos cujas vozes eu datilografava num processador de texto com rapidez, precisão, devoção e até amor, e por isso acolheram o anúncio da minha saída com indisfarçada alegria, organizando uma festa de despedida em minha honra, dando uma espécie de banquete e oferecendo presentes generosos.”

A esta espécie de não-existência junta-se, conforme as peças se ligam, e a narradora discorre sobre a sua vida, o facto de a própria família parecer sentir por ela uma certa aversão.

Voltando aos dias onde começa a narração, quando, a certa altura, o irmão a deixa sozinha na casa, para viajar numa das suas muitas viagens de negócios  “dedicado à bem-sucedida venda e comercialização, importando e exportando, de uma variedade de bens e serviços, cujas especificidades permanecem ainda hoje uma incógnita para mim”, muito pouco tempo depois de ela ali ter chegado, ocorrem vários acontecimentos inexplicáveis, na povoação próxima da casa e as suspeitas dos habitantes recaem sobre ela, uma estrangeira recém-chegada. O crime do qual ela é acusada é de ser a culapada de uma série de catástrofes ambientais locais: uma “gravidez fantasma” de uma cadela; uma porca depressiva que esmaga os seus leitões; e um rebanho de gado enlouquecido. “Foi no ano em que a porca erradicou os leitões. Viviam-se tempos céleres e inquietantes. Uma das cadelas da terra estava a ter uma prenhez fantasma. As coisas saíam de um sítio e apareciam noutro. Era primavera quando cheguei ao campo, soprava um vento de leste, um vento aziago, como se viu depois. Começaram a dar-se certas coisas. Os leitões vieram mais tarde mas não muito, e mesmo que eu não tivesse chegado há pouco, não tivesse os animais a meu cargo, só tivesse lá ido ver, a salvo do outro lado da vedação elétrica, eu sabia que eles tinham razão quando afirmavam que era responsável.”

E é nesta toada que o livro acontece. Ela rapidamente descobre que todos os habitantes da povoação a odeiam. Ou temem-na. As mães cobrem os olhos dos filhos quando ela passa. Num café, incapaz de falar a língua local, aponta para o café de uma mulher porque também quer um e ela começa a chorar enquanto os outros clientes secretamente fazem o sinal da cruz. Mais tarde, um lojista agacha-se atrás do balcão enquanto ela examina as prateleiras. O que há nesta mulher que provoca respostas tão extremas? A única resposta é que ela é judia. O que acontece à narradora é por ela aceite passivamente. Afinal ela estava “naquele remoto país setentrional, o país, veio a saber-se, dos nossos antepassados, uma gente obscura embora ultrajada que fora arrastada através de fronteiras e metida em valas (…)”. Só lhe acontece o medo. O medo do que lhe pode acontecer e a dúvida do que serão capazes os habitantes da povoação? Realmente pouca coisa acontece  mas, espelhando as divagações diárias da protagonista pela floresta que circunda a casa, o romance é composto de divagações filosóficas, às vezes rapsódicas, registadas numa prosa meticulosa mas contida e oferece-nos uma meditação sobre a sobrevivência, os perigos de absorver as narrativas dos que têm o poder e um aviso de que a autoculpa dos oprimidos muitas vezes volta para se vingar. "Manual para a Obediência" de Sarah Bernstein, pois, uma obra que mistura elementos de ficção literária com pitadas filosóficas e psicológicas, abordando temas como autoridade, conformidade e rebelião.

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