Nos últimos anos, o panorama mediático português, mimetizando a imprensa internacional que passou a ‘eleger’ temas e formas ‘correctas’ da sua abordagem – criando assim ‘narrativas’ –, tem-se deixado enredar num jogo perigoso. O distanciamento que antes marcava a sadia relação entre jornalistas e actores políticos (que não envolve apenas políticos), permitindo um espaço e tempo de reflexão crítica, deixou de existir: progressivamente, estamos perante um contínuo ‘campo de batalha’, onde se misturam convicções pessoais e posições ideológicas, convertendo-se, neste processo, a função primordial de informar numa plataforma de manipulação de opinião pública.
O caso mais paradigmático, e até vergonhoso, sucedeu com as recentes eleições norte-americanas, onde se repetiu o erro colossal de uma avaliação ideológica por parte da esmagadora maioria de jornalistas, a tal ponto esmagadora que condicionou o mero acto de informar. O jornalismo lusitano quis mesmo imitar o modelo da imprensa norte-americana, abandonando a missão de ser um autêntico Quarto Poder para se arrogar como formador de opinião e, pior ainda, como orientador de voto. Em Portugal, de uma forma ainda envergonhada, já se tinha assistido a essa faceta nas eleições legislativas, com a ‘diabolização’ do Chega, que afinal até ‘cavalgou’ a onda da vitimização e da ausência de apreciação crítica por parte da imprensa aos falhanços clamorosos das políticas dos partidos tradicionais (e pouco criticados pelo seu desempenho). O populismo cresce quando a imprensa adormece.
Um ‘sinal dos tempos’, uma terrível tendência, a enraizar-se perigosamente nas sociedades ocidentais, tudo agora se bipolariza e se dramatiza, e maniqueiza-se, se reduz a uma visão dualista e simplista de bem versus mal, certo versus errado, com que se parte assim para a ostracização da outra parte, diabolização da outra parte e, claro, assim se justifica uma ‘benéfica’ censura da outra parte. Adjectiva-se sempre. Rotula-se ainda mais. Isola-se para eliminar.
Viu-se esta abordagem no caso da pandemia da covid-19. Na invasão da Rússia à Ucrânia. Nas eleições brasileiras de Outubro de 2022. No conflito (agravado) de Israel e da Palestina. E agora, de uma forma absurda, nas eleições norte-americanas, exacerbadas a um nível de mediatismo jamais visto. E bastou ver isso nas manchetes, nas reportagens, nos debates e nas redes sociais, onde, diria, praticamente todos os jornalistas mostravam uma veemente posição anti-Trump, como se esta fosse uma medalha de honra e prestígio, colocando-o numa luz inteiramente negativa, e favorecendo (endeusando) uma narrativa pró-Kamala Harris, posicionando-a como símbolo de mudança e progresso.
As escolhas editoriais serão sempre inevitáveis em qualquer redacção; o problema não reside em reconhecer que cada jornal, e cada jornalista, tem os seus valores – mas sim na total falta de capacidade em discernir que um jornalista é mais do que a sua opinião; é sobretudo a sua função. Ele tem de saber distinguir entre a sua opinião – que pode dar – e a informação factual – que deve dar. Se assim não funcionar, como não funcionou no caso das recentes eleições nos Estados Unidos, o resultado será sempre uma visão distorcida da realidade.
Hoje, depois dos resultados das eleições, não está em causa os perigos inerentes à recuperação do poder por parte de Trump nos Estados Unidos – um país que, em todo o caso, sendo uma federação sólida, possui ‘defesas’ ao despotismo que a União Europeia não tem perante os burocratas não-eleitos –, mas sim as tristes reportagens, as desoladoras análises e os desastrados estados de alma pessoais transmitidos por tantos jornalistas que, por estarem presos a análise subjectivas, falharam rotundamente. A realidade tratou de destratar as certezas absolutas dos jornalistas; e isso sucedeu porque eles quiserem moldar as suas convicções a uma realidade virtual que desejavam. E isso mostra-se dramático para a credibilidade da imprensa.
Os últimos anos têm mostrado e demonstrado os erros da deriva da imprensa, que deixou de ser o watchdog (o vigilante sobre os excessos do poder) para se comportar como uma máquina ideológica amestrada (petdog), transformando-se numa força manipuladora que infantiliza o público, privando-o até de uma visão informada e multifacetada dos acontecimentos.
Ao optarem por esta via, os jornalistas desrespeitam o princípio da imparcialidade – essencial para uma informação credível –, abrindo as portas para uma profunda desconfiança por parte do público.
Este cenário mostra-se ainda mais grave quando se considera a formação de grande parte dos jornalistas e comentadores que dominam a imprensa mainstream e, especialmente, os canais de televisão. A proliferação de comentadores em espaços informativos sem preparação sólida ou conhecimento profundo dos assuntos abordados, que se repetem e são caixas de ressonância, constitui um fenómeno que agrava a componente enviesada dos jornalistas. Hoje, os comentadores são escolhidos não pela sua competência, mas pela sua capacidade de cativar a audiência quer com o seu estilo, quer com o seu visual, quer como um certo charme retórico.
Esta seleção, que se baseia mais na forma do que no conteúdo, contribui também para uma erosão, para um crescente desgaste da qualidade da análise e da informação oferecida ao público. Em vez de especialistas ou vozes críticas, informadas e diversificadas, temos frequentemente comentadores que falam com a mesma confiança sobre política, economia ou desporto, como se todos os temas se reduzissem a uma opinião simplista e pessoal.
Além disso, ao se preferirem comentadores ideologicamente alinhados – e não apenas política ou ideologicamente falando –, que reforçam as mesmas narrativas, os meios de comunicação estão a cooptar vozes que, em vez de alargarem o debate, o limitam, alimentando uma espécie de câmara de eco onde apenas se ouvem as opiniões que confortam uma certa visão do mundo.
Este círculo fechado de opiniões está a criar uma distorção da realidade que, inevitavelmente, afecta a percepção pública – e isto é manipulação, não informação. Quando o leitor ou espectador é confrontado somente com uma visão parcial e enviesada dos acontecimentos, perde-se a capacidade de analisar de forma independente e ponderada.
Ao fim de algum tempo – como sucedeu com a pandemia ou agora com as eleições nos Estados Unidos –, o público começa a duvidar da veracidade da informação que consome, percebendo a falta de neutralidade e objectividade. Vira-se para as fontes alternativas. Se se critica as redes sociais – onde, aliás, pululam jornalistas e comentadores que criticam essas mesmas redes sociais, mesmo se estas os promovem –, por terem passado a ser uma fonte (pouco credível) de informação, tal se deve á contínua perda de credibilidade da imprensa tradicional.
Para piorar, no decurso da campanha eleitoral nos Estados Unidos, até a imprensa portuguesa esboçou, talvez se preparando para uma mimetização de consumo interno, a postura de endossamento público de candidatos. Sendo algo comum na imprensa norte-americana, seria uma novidade em Portugal – e um grave erro estratégico e ético. Ao assumirem posições partidárias e, em alguns casos, ao endossarem explicitamente candidatos, os meios de comunicação colocam-se numa posição insustentável: como podem, depois, assumir-se como fiscalizadores de um Governo ou de uma política que anteriormente apoiaram?
Em suma, a imprensa sempre que quiser ser agente político – como quis ser um agente de saúde pública na pandemia – perde, em toda a linha, a sua independência crítica, tornando-se prisioneira de alianças ideológicas que comprometem a sua capacidade de escrutínio. A eventual transição de uma imprensa informativa para uma imprensa orientadora de voto é de uma extrema gravidade para a sustentação democrática, pois compromete a relação de confiança entre os jornalistas e o público.
Se o jornalismo no século XXI insistir em ser uma espécie de ‘educador’ ou ‘orientador moral’ da sociedade – como o Estado Novo fez com a criação do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e depois com o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) – coloca-se numa posição que desrespeita a inteligência e a autonomia dos cidadãos, tratando-os como incapazes de formar as suas próprias opiniões.
Ora, dos cidadãos, os jornalistas só têm de saber que lhes exigem um trabalho de rigor e de objectividade, que lhes permitam estar informados e capazes de formar opiniões fundamentadas e consequentes acções daí derivadas. Por isso, nunca será de mais avisar que quando o jornalismo falha nesse papel, e se torna um actor ideológico, corre o risco de perder a sua essência.
A imprensa deve ser um espaço de liberdade e de questionamento, onde todas as vozes têm lugar, e não uma arena de proclamações e julgamentos morais. A missão de informar implica responsabilidade, somente possível com distanciamento crítico, imparcialidade e o compromisso com a verdade. Substituir esses valores por convicções pessoais e por uma postura militante é desvirtuar a própria natureza da profissão. Muitos jornalistas já nem percebem isso, porque nunca ‘encarnaram’ essa função.
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