Um acordo parassocial entre os accionistas da Expressão Livre, a ‘holding’ que controla o Correio da Manhã e a CMTV – escondido inicialmente pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) –, ao qual o PÁGINA UM teve acesso, revela um elaborado esquema de investimento que aparenta ser extremamente desfavorável (e atípico no mundo dos negócios) para Cristiano Ronaldo, mas que pode, afinal, ser uma forma ‘encapotada’ de lhe entregar a prazo o domínio absoluto do grupo de comunicação social. Através da sua CR7, Cristiano Ronaldo não apenas se comprometeu a investir, sem retorno, cerca de 13 milhões de euros como se assumiu como o único fiador de um empréstimo de 14 milhões de euros da ‘holding’ de comunicação social, que comprou a Cofina Media, junto do Banco Santander Totta, desonerando os outros accionistas. Mas se tiver de pagar parte ou a totalidade desse empréstimo, então será recompensado através do reforço no capital social da Expressão Livre. Contas feitas, e atendendo à sua actual posição, Cristiano Ronaldo só precisará de suportar o peso de ser fiador em 40.001 euros para, com esse simples expediente, passar a deter mais de 50% do capital social da proprietária do jornal que, em tempos, odiou.
Cristiano Ronaldo arrisca ficar proprietário praticamente exclusivo da Medialivre – o grupo de media que controla o Correio da Manhã e dos canais televisivos CMTV e Now –, de acordo com cláusulas do acordo parassocial entre accionistas da holding Expressão Livre, entregue na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) no final do ano passado, a que o PÁGINA UM teve acesso após parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Numa primeira fase, depois de uma deliberação onde decidira não publicitar o acordo parassocial, o regulador recusou inicialmente o acesso. Em todo o caso, a ERC mantém secreto o plano de negócio da Expressão Livre, a holding da Medialivre que é detida pela Sorolla (32%), CR7 (30%), Livrefluxo (32%), Actium Capital (10%) e Caderno Azul (10%).
O acordo entre os accionistas da Expressão Livre, assinado no final de 2023, revela uma série de compromissos financeiros e operacionais que colocam a empresa de Cristiano Ronaldo, a CR7, numa posição singular dentro dos accionistas que controlam a Medialivre. Além de deter uma participação significativa de 30% no capital social da holding, o actual jogador do Al-Nassr aceitou, através da sua sociedade, um papel de fiador de um empréstimo bancário de 14 milhões de euros, contraído junto do Banco Santander Totta. Este papel de fiador, definido em cláusulas específicas do acordo, implica que a empresa de Cristiano Ronaldo será responsável por cobrir eventuais incumprimentos no pagamento da dívida ao banco.
Mas é, nesse ponto, que a CR7 pode passar a assumir o controlo absoluto do único grande grupo de media em situação financeira saudável, e que tem vindo a investir no último ano, com a fundação do canal Now e de estações de rádio. Caso a administração da Expressão Livre (e os outros accionistas) não cumpram – ou não queiram cumprir – as suas obrigações junto do Santander, a empresa de Cristiano Ronaldo será obrigada a cobrir os montantes em falta, incluindo juros e despesas adicionais, numa clara assunção de responsabilidade financeira.
Porém, nesta situação, sendo Cristiano Ronaldo forçado a efectuar esses pagamentos junto do Santander, a CR7 terá então, como compensação, um aumento da sua participação no capital social, através de um mecanismo de diluição da posição dos outros accionistas. Ora, como o capital social da Expressão Livre é, actualmente, de apenas 100 mil euros, basta a Cristiano Ronaldo pagar, por ser fiador, 40.001 euros para ficar como sócio mairitário, ou seja, mais de 50% do capital social. Se tiver de pagar um milhão de euros ao banco, fica automaticamente com 93,6%, em vez dos actuais 30%. Se tiver de pagar os 14 milhões de euros, ficaria então com 99,5% do capital social da Expressão, ou seja, ‘dono absoluto’ da Medialivre, uma empresa que detinha, no final do ano passado, activos de 93,4 milhões de euros e capital próprio de quase 33 milhões de euros. E, aliás, concedeu um lucro superior a 7,2 milhões de euros.
Este mecanismo permite que Cristiano Ronaldo possa transformar facilmente em accionista maioritário e até proprietário praticamente exclusivo da Medialivre. Na prática, esta cláusula funciona como uma ‘recompensa’ por Cristiano Ronaldo não apenas assumir o risco deste empréstimo de 14 milhões de euros, mas também por lhe ter sido exigido um maior esforço de investimento inicial, também estabelecido no acordo parassocial.
Com efeito, também ficou estabelecido neste acordo – que, em condições normais, num outro sector de actividade, seria considerado confidencial, havendo mesmo impedimentos dos accionistas de o publicitarem –, que o envolvimento de Cristiano Ronaldo no sector dos media não é apenas financeiro, mas também estratégico. Através deste acordo, o mais internacional jogador futebol do Mundo comprometeu-se com um investimento significativo, através de um valor extra, denominado ágio, que não terá retorno em termos de dividendos.
Nesse aspecto, tendo uma participação de 30%– que se aplica à distribuição de dividendos e de atribuição de cargos de gestão –, Cristiano Ronaldo assumiu a entrega, a título de ágio, de 13,095 milhões de euros, num total de 34,9 milhões de euros de investimento por todos os accionsitas. Ou seja, para um capital social de 30%, a CR7 vai ter de investir 37,52% do total, o que confronta com o caso da Sorolla que, tendo 32% do capital social da Expressão Livre, apenas terá de investir 14,95%.
Em termos convencionais, seria esperado que a percentagem de investimento fosse proporcional à participação accionista, mas neste caso a empresa de Cristiano Ronaldo não teve pejo em assumir um investimento significativamente superior à sua actual quota de capital social, uma vez que o ágio constitui um investimento que não tem retorno, como sucede com as acções, as prestações suplementares ou os empréstimos feitos pelos accionistas.
Esta configuração pode indiciar que Cristiano Ronaldo reconhece o valor estratégico do controlo accionista, e está disposto a investir acima da média para garantir uma posição de relevância, ou então espera que o ‘efeito fiador’ venha a reforçar a sua futura posição na holding da Medialivre.
A potencial transformação de Cristiano Ronaldo em accionista dominante na Expressão Livre – que, controla, ‘em cascata’, a Medialivre –, através deste acordo parassocial, pode também ser alterado no decurso dos nove anos do seu prazo de validade. Os accionistas concordaram em manter-se na estrutura societária durante três anos, mesmo se com eventuais alterações do peso no capital social, mas caso haja, no futuro, o desejo de accionistas com mais de 75% de venderem a empresa a terceiros, os outros têm de disponibilizar a ‘cedência’, caso o comprador queira ficar com tudo.
Certo é que este empenho de Cristiano Ronaldo em disponibilizar milhões mostra como enterradas estão as picardias entre o Correio da Manhã e o futebolista, que tiveram o auge no arremesso de um microfone em 2016 a um lago. Na altura, o Correio da Manhã, que fez da situação um ‘caso de polícia‘, até chegou a apurar o dano pela perda do microfone: 292 euros, por ser da Sennheiser, “uma conceituada marca do ramo“. O microfone acabou por ser recuperado no fundo de um lago de Lyon, e o Correio da Manhã até fez uma acção com mais uma alfinetada: leiloou o objecto e encaminhou o dinheiro para uma instituição de apoio a crianças carenciadas na Madeira, a terra de Cristiano Ronaldo.
N.D. A Lei da Transparência dos Media determina que as empresas de media enviem à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) os acordos parassociais, tal como os accionistas da Expressão Livre e Medialivre fizeram. Mas o regulador cedeu ao pedido de confidencialidade, alegando, em deliberação de 8 de Maio passado, que “a divulgação pública do teor do Acordo Parassocial não contribui para melhor concretizar os objetivos prosseguidos pela Lei da Transparência e respetiva regulamentação, nomeadamente, a transparência da titularidade, da gestão e dos meios de financiamento das entidades que prosseguem atividades de comunicação social, tendo em vista a promoção da liberdade e do pluralismo de expressão e a salvaguarda da sua independência editorial perante os poderes
político e económico”.
Como a notícia do PÁGINA UM evidencia, existe matéria relevante no acordo parassocial da Expressão Livre que é de de interesse público, até para se perceber como um grupo de media se financia e pode facilmente mudar de mãos. Como a não divulgação pública não significa que o acesso fosse vedado, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, o PÁGINA UM fez um pedido de consulta do acordo parassocial à ERC, que viria a ser inicialmente recusado. Somente após a intervenção da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), através de um parecer do passado dia 18 de Setembro, o regulador se predispôs a revelar uma parte do acordo social, mas mantendo secreta a parte respeitante ao plano de negócios.
A vontade do PÁGINA UM em recorrer desta decisão para o Tribunal Aministrativo de Lisboa é significativa, pela atitude de obscurantismo patenteada pela ERC (como habitualmente), mas seria um esforço demasiado moroso para uma questão que somente se resolveria daqui a muitos meses ou mesmo mais de um ano. Assim, basta o opróbio de mais um caso do regulador que disciplina a transparência dos media, mas que acaba por ser o principal fautor da obscuridão, esquecendo que a transparência se mostra fundamental para a credibildiade deste sector em crise. Aliás, convém relembrar que o Conselho Regulador da ERC pretende uma alteração legislativa que lhe permita, através de uma lei especial, impedir aquilo que o PÁGINA UM (ainda) conseguiu: consultar um acordo parassocial e decidir se existe matéria noticiosa – algo que, para o regulador criado pela Constituição para garantir a liberdade de imprensa, é uma chatice.
Pedro Almeida Vieira
Director do PÁGINA UM
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