Novelas improváveis: Rommel em Jerusalém

A estrada para Jerusalém

por Mendo Castro Henriques // Novembro 14, 2024


Categoria: Cultura

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Prólogo

No ano dito da graça de 1939, a Inglaterra dominava a maior e melhor parte do Médio Oriente na sequência dos mandatos que lhe tinham sido atribuídos após a vitória sobre o império otomano na 1ª Grande Guerra.

Com a tempestade da Segunda Guerra Mundial, surgiu nas areias do Norte da África, uma força tão imprevista como o vento do deserto que tudo varre à sua frente: o exército do marechal Rommel que, após sucessivas vitórias sobre os britânicos, chegou a 4 de Julho de 1942 a El Alamein, às portas de Alexandria.

Quem sabe o que teria sucedido se Rommel não tivesse sido detido nesse verão em El Alamein pelas forças do 8º Exército britânico do general Auchinleck? Quem sabe se, após conquistar o Egito, não marcharia pelo Próximo Oriente adentro em direção à Palestina e, depois, quem sabe, em direção ao Iraque para capturar os poços de petróleo aos Aliados ou em direção ao Irão para atacar a União Soviética, enquanto o 6º Exército alemão se aproximava de Estalinegrado?

Não sabemos. E porque não sabemos podemos imaginar pois é desse estofo que são feitos os mitos e, neste caso, a novela improvável que dá pelo título de Rommel em Jerusalém.


A 1 de Agosto de 1942, à cabeça de uma longa coluna do Africa Korps, o 33º Batalhão de Reconhecimento rolava em direção a Jerusalém, culminando o formidável avanço das forças do marechal Erwin Rommel no Próximo Oriente. Deixando para trás Tobruk, conquistada no primeiro dia daquele Verão, o Afrika Korps triunfara em El Alamein contra o 8º Exército britânico. Após a queda de Alexandria em 10 de Julho, o Panzer Gruppe Afrika e os aliados italianos dirigiram-se para o canal de Suez, e cruzaram-no em Port Said, sem mais delongas nem dificuldades. Após uma paragem para reabastecer e reforçar, em que recebeu a 164ª Divisão, vinda de Creta, Rommel decidiu continuar a avançar. Conquistou El Arish no deserto do Sinai, e dirigiu-se para a Terra Prometida, via Gaza. Para trás ficava o norte de África; à sua frente estendia-se o Médio Oriente.

Entrando na Palestina por Siquém, o Afrika Korps realizou a habitual manobra em tenaz, do Blitzkrieg. Enquanto a 15ª Divisão Panzer subiu para norte pelos montes de Hebron, a 21ª Panzer dirigiu-se para Haifa de onde depois obliquou para Jerusalém. Os generais ingleses encaixavam golpe sob golpe, preferindo retirar a serem derrotados em campo aberto. E após uma derrocada de três meses, que começara nas linhas de Gazala, na Tripolitânia, recuaram para a linha de obstáculos naturais da Cisjordânia, – formada pelo rio Jordão, o Mar Morto e o Lago Tiberíades – procurando negar o acesso dos alemães aos cada vez mais próximos campos petrolíferos do Médio Oriente. Os soldados britânicos sentiam-se bravos, mas confundidos e os generais reconheciam-se confundidos mas bravos. Jerusalém foi declarada cidade aberta e nela apenas ficaram as células do Hagannah.

Ao longo da estrada batida pelo pó levantado pelas viaturas alemãs, os árabes saudavam o desfile com ramos de palmeira enquanto as mulheres emitiam trinados de aprovação. Sem dúvida um momento glorioso a ser proclamado pelos jornais e rádios nazis como mais uma soberba vitória do Eixo. O Terceiro Reich chegava ao Reino de Deus. Sr. Marechal os jornais vão dizer de si que é um novo Alexandre Magno ou um novo Frederico Barbaroxa gritava-lhe o tenente Berndt, dos serviços de propaganda da Wehrmacht e que gozava de confiança particular junto de Hitler. Talvez, talvez, Berndt, sorria-lhe o marechal enquanto se dessedentava bebendo água da sua caneca de zinco e acenando à multidão. Vamos escrever que o senhor traz o Ocidente às ruas de Jerusalém. Rommel gritou-lhe passados uns instantes. Escreva o que quiser, Berndt. Mas sabe bem o que faziam nos triunfos romanos. Berndt sabia.Havia sempre um escravo atrás do conquistador que repetidamente aproximava-se do ouvido do general e dizia: “Lembra-te que és mortal!”

A coluna de veículos roncava no meio dos povoados que salpicavam as colinas dos montes de Hebron, onde piteiras e figueiras separavam as culturas em socalcos das populações da região. Enquanto se sucediam os quilómetros, os pensamentos de Rommel voavam para paragens bem longínquas. Uma vez chegado a Jerusalém teria de decidir o passo seguinte. Como um touro que investe, teria de escolher com qual dos dois cornos possantes acossaria os adversários. Poderia seguir em direção aos poços de petróleo do sul do Iraque, privando os Aliados do nervo da guerra que alimentava tudo o que se movia na terra, mar e ar; ou então poderia seguir até ao Irão e às portas do sul da Rússia, levando a guerra até perto de Estalinegrado. Qualquer dos objetivos seria um alvo grandioso a acrescentar à sua grandiosa vitória no solstício de Verão. Hitler fizera-o marechal nessa noite ainda recente. mas já tão distante de 21 de Junho. Rommel apenas comentara “Preferia que me enviasse mais uma divisão” enquanto impelia as unidades a seguir para o Egipto.

As longas filas de veículos eram como os anéis de uma serpente a aproximar-se da vítima. Sucediam-se os blindados de reconhecimento, os transportes de rodas e lagartas cheios de infantaria, tratores de artilharia e muitos camiões capturados aos ingleses – o chique inglês do Afrika Korps – e ainda mais blindados, camiões tanque e, sobretudo, os tanques, vencedores de cem batalhas, cavalos de aço, com os seus trilhos, cascos e torres de onde emergiam as poderosas peças de 50 e 75 mm, curtas e longas, prontas a cuspir a morte. Era o Afrika Korps sempre à míngua de homens, veículos e abastecimentos, mas impelido pela vontade de aço do seu comandante. Os soldados mastigavam nacos de carne fria, extraída das latas de conserva da administração militar italiana, onde se destacavam as letras AM, que os alemães por irrisão liam como Armes Mussolini. “Pobre Mussolini”, o chacal da 2ª Guerra Mundial que vinha sempre no fim de cada batalha à procura de despojos. Mussolini até mandara bombardear Tel Aviv, Haifa e Acre no início da campanha do norte de África, em Junho de 1940, infligindo estragos e vítimas e dando origem a grande ansiedade nas povoações.

Após ladear as colinas da Judeia pontilhadas por pequenas casas, a estrada começou a subir suavemente até Jerusalém. Oh Jerusalém! Esplendorosa, antiga, eterna, suja, ruidosa, estirada ao sol, cheia dos bons e maus cheiros de alimentos e estercos, e repleta de gentes, religiões, fés e mistérios. Por entre a massa de casa baixas, erguiam-se minaretes de mesquitas, torres de igrejas, cúpulas moles de sinagogas, a torre de David, e basílicas que subiam pelo monte das oliveiras, apontadas ao céu, como antenas dirigidas a um mistério maior do que a humanidade que cá em baixo se arrastava. A mais poderosa máquina de guerra do mundo chegava à mais santa das cidades, à cidade da paz, Oh Jerusalém devassada, que mais te aguardava? Que te iria suceder?

O marechal Rommel, numa das suas viaturas

À medida que entrou nas encostas urbanizadas de Jerusalém, a coluna mudou de dispositivo: para trás ficavam colonatos judaicos, aldeias de árabes cristãos e de árabes muçulmanos. Entrava-se agora nos arrabaldes e a estrada aberta cedeu lugar a ruas onde poderia espreitar o perigo. Os soldados empunhavam as espingardas nas mãos crispadas e as metralhadoras pesadas giravam nas torres dos veículos blindados. Contudo, não se via sinais de hostilidade e aqui e além, novos grupos saudavam a entrada dos conquistadores   

As colunas aproximavam-se da cidade velha. Na esquina da estrada de Jaffa com a rua de Malka, o general Bayerlein gritou ao condutor enquanto consultava o mapa “Vire à direita e siga na direção da avenida do Rei David. Nessa esquina, onde estava a loja do fotógrafo Marar, a sapataria Jevod com a sua bela montra, e a empresa de construção Seraphim, vários soldados saltaram dos veículos e ofereceram cigarros à população. Eram a guarda avançada aos veículos que agora avançavam em marcha lenta, com os motores a roncar. A serpente de aço estava agora no coração moderno de Jerusalém com ruas arejadas e edifícios de porte.

Nessa beira ocidental da cidade, avultava um edifício que tinha sido assinalado para estabelecer o quartel-general do Panzer Armee. No alto de uma colina rodeada de amplos jardins, erguia-se a Associação Cristã da Juventude, abandonado pelos proprietários norte americanos; era um marco orgulhoso erguido por Arthur Harmon, o mesmíssimo arquitecto do Empire State Building, contraponto do novo mundo da América à antiga torre de David que se erguia a pouco mais de um quilómetro de distância. Para ali se dirigiu a guarda avançada de Rommel.

O esquadrão passou pelos grandiosos portões abertos e entrou no pátio rodeado de palmeiras do complexo de edifícios do YMCA, imaculadamente brancos. Ao centro, destacava-se uma torre sineira ladeada por dois corpos de quatro andares. Os veículos pararam, os soldados montaram um dispositivo de segurança. Após uma primeira inspeção ao edifício pelos pioneiros, para lá se dirigiu o alto comando alemão. Ali se instalaria o novo senhor da guerra na Terra Prometida. Quantos conquistadores por lá tinham passado… Quantos tinham ficado às portas, como Ricardo Coração de Leão. Quantos tinham ali conhecido o triunfo e a glória. Quantos tinham ali saboreado a copa da vitória…

Militares britânicos em Jerusalém, 1940, próximos da torre de David.

Nabucodonosor arrasou o primeiro templo e expulsou os judeus para Babilónia. Tito e Vespasiano destruíram o segundo templo após a revolta de Simão bar Kosheba. Adriano aplanou a cidade e mudou-lhe o nome para Aelia Capitolina. Heráclio perdeu-a para o califa Omar. Os muçulmanos perderam-na para os Cruzados e Godofredo e Balduíno tornaram-se reis de Jerusalém. E estes voltaram a perdê-la para Saladino. Os britânicos de Allenby conquistaram-na em 1918 aos otomanos e agora perdiam-na para os alemães. As cruzes gamadas iriam drapejar em Jerusalém, não se sabe por quanto tempo. Por certo que o mundo se preparava para algo de terrível.

“Marechal, por quanto ficar tempo ficaremos aqui? “perguntou-lhe o tenente Berndt. Rommel deixou passar alguns momentos. “… Sabe uma coisa Berndt? Esta cidade é um mistério…”

[CONTINUA]


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