Brasil: entre a amnistia e a democracia

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Arthur Maximus|14/11/2024

Na língua portuguesa, o vocábulo “amnistia” adquiriu ao longo do tempo feições diferentes. De inspiração divina, a noção de amnistia está de certo modo associada à idéia de perdão. Quando Pedro pergunta-lhe se deveria perdoar até sete vezes o irmão que pecasse contra si, Jesus responde-lhe: “Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete” (MT 18:21-22).

No contexto histórico, o termo quase sempre esteve associado a transições pacíficas de poder, quando um sistema autoritário cedia passo – por pressão ou por exaustão – a regimes democráticos. Foi assim que a Espanha deu adeus ao franquismo (1977). Foi assim que o Uruguai despediu-se de quinze anos de ditadura (1986). E foi assim que a África do Sul conseguiu superar, sem enfrentar uma guerra civil, a pesada herança do Apartheid (1995).

O Brasil, contudo, preferiu outra toada. Ou, por outra, levou ao paroxismo o conceito de amnistia. Como se quisesse dar razão à canção de Chico Buarque, o Brasil adotou o lema segundo o qual não há pecados ao sul do equador. Tudo valia para olvidar o passado, desde que não fosse necessário encarar suas cicatrizes históricas. Por pior que fosse o delito, sempre haveria uma pedra para colocar em cima do assunto.

Christ Redeemer statue, Brazil

A “teoria da pedra” era, a um só tempo, simples e sedutora. Simples, porque resolvia numa só canetada todas os imbróglios que porventura existissem entre diferentes facções políticas. E sedutora porque, não sendo possível punir infratores, dispensavam-se os próceres do novo regime de contrariar poderosos. Daí, por exemplo, a amnistia aos golpistas de 1955, que se levantaram contra a eleição de Juscelino Kubitschek, impedidos tão-somente pelo contragolpe do Marechal Henrique Teixeira Lott. Daí, também, a amnistia aos sediciosos da Força Aérea, que tentaram derrubar o mesmo JK alguns meses depois, na Revolta de Jacareacanga, no Pará.

Foi com esse mesmo espírito que se arquitetou o último perdão da qual se tem registro no Brasil: a amnistia de 1979. Uma vez que a ditadura não estivesse fraca o suficiente para sucumbir, nem a oposição forte o suficiente para derrubá-la, o retorno à normalidade democrática ficou vinculado a um arranjo de bastidores entre a turma da caserna e aquela liderada por Tancredo Neves. Coube a Tancredo negociar um arreglo através do qual se aceitava a autoamnistia requerida pelos militares, condicionada a uma transição pacífica de poder após o fim do governo de João Figueiredo.

Os militares, claro, cumpriram apenas parcialmente o prometido. Dois anos depois da Lei da Amnistia, integrantes da linha dura do Exército tentaram literalmente explodir a abertura política, ao colocar uma bomba no show de 1 de Maio de 1981. Enterrado sem exéquias em um inquérito policial-militar de fancaria, o atentado do RioCentro entraria com desonras no panteão de maiores vergonhas da historiografia nacional. A morte dos incompetentes militares terroristas – que deixaram a bomba explodir ainda dentro do carro que guiavam – foi atribuída a “elementos de esquerda” e nunca mais investigada, a despeito de ser cronologicamente impossível que o crime estivesse sob o abrigo da lei de 1979.

Obviamente, as sucessivas amnistias retiraram dos golpistas tupiniquins a percepção de perigo. Como as ações ilegais praticadas por paisanos ou militares golpistas jamais eram punidas, o risco de ir para a cadeia deixou de ser considerado nessa equação. Ao contrário da Argentina, onde os militares foram condenados em um julgamento histórico, aqui a idéia sempre foi a de colocar uma pedra em cima do assunto e simplesmente esquecê-lo. Com todas as desgraças que já se abateram sobre nuestros hermanos desde a última ditadura – e elas não foram poucas –, nunca se ouviu sequer sussurro de gente propondo golpe de Estado por aquelas bandas. Por quê? Porque Jorge Rafael Videla, o mais emblemático dos presidentes-generais portenhos, morreu aos 87 anos sozinho e esquecido na prisão, sentado em um vaso sanitário imundo e fétido, siderado por uma diarréia.

A close up of a barbed wire with a blurry background

Cá no Brasil, ao contrário, ao invés de ser exorcizado, o fantasma da intervenção militar ficou apenas trancado no armário. Bastava alguém disposto a abri-lo para que ele voltasse a assombrar-nos. Foi exatamente o que aconteceu com a eleição de Jair Bolsonaro, ele próprio um elemento subversivo da tropa, “expulso a convite” depois de um julgamento absolutamente bizarro do Superior Tribunal Militar, por ameaçar colocar bombas em quartéis e na adutora do Guandu, no Rio de Janeiro (para quem quiser se aprofundar no assunto, recomenda-se a leitura do livro O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel, de Luiz Maklouf Carvalho). Tudo que se sucedeu no país após sua eleição é reflexo directo dessa “cultura do perdão” expressa na “teoria da pedra”.

Que houve uma tentativa de golpe no dia 8 de Janeiro de 2023, parece inteiramente fora de questão. O roteiro para a ação golpista – e, portanto, criminosa – é claro como água de bica: os “patriotas” invadiriam a Praça dos Três Poderes, detonariam tudo e clamariam pela “intervenção militar constitucional”. No melhor cenário (para os golpistas), os comandantes mandariam tirar seus homens dos quartéis, tomariam de assalto (literalmente) o poder e prenderiam Lula e todo o seu governo. Bolsonaro, então, faria um regresso triunfal do seu autoexílio na Disney, descendo ao campo de batalha para “matar os feridos”, isto é, iniciar o expurgo contra a ordem derrubada. O primeiro da lista, evidentemente, seria Alexandre “Xandão” de Moraes. Depois dele, Luís Roberto “Boca de Veludo” Barroso e Edson “Advogado do MST” Fachin. O resto a combinar.

No “pior cenário”, os militares não dariam um golpe clássico, mas o governo – pego de calças curtas pela destruição das sedes dos três poderes – convocá-los-ia através de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (as famosas GLOs) para “pôr ordem na casa”. Nesse caso, depois de ver a ordem restabelecida pelos mesmos militares a quem os golpistas pediam intervenção, Lula estaria magnificamente emparedado. Ou bem seria obrigado a renunciar, em prol de uma suposta “pacificação nacional”; ou então ficaria na Presidência como um animal empalhado, sem poder algum, tutelado pelo pessoal da caserna. Felizmente, contudo, ocorreu o “pior pior cenário” para os golpistas: o golpe malogrou e a maioria foi em cana. O que se desenrola, agora, é a tentativa de saber até onde vai a responsabilidade de cada um pelo que sucedeu naquela fatídica data.

Mesmo a saber de tudo isso, parte da mídia especializada e da classe política insiste na concessão de uma amnistia à cúpula do golpismo. Segundo essa gente, somente assim seria possível “moderar” o bolsonarismo e diminuir a temperatura da polarização política que nos aflige. É o tipo do raciocínio que só pode ser produto de tabagismo com cannabis apodrecida. A uma, porque não existe “bolsonarismo moderado”, eis que o próprio movimento depende, para sobreviver, de um estado de tensão e provocação institucional permanentes. A duas, porque o que modera golpista é cadeia. Repetindo: CADEIA. Bolsonaro não foi condenado quando capitão. Deu no que deu. Donald Trump saiu ileso da intentona golpista do 6 de Janeiro. Deu no que está dando.

A esperança de que uma amnistia traga um futuro melhor, de calma e tranquilidade, já foi desmentida vez após vez. Ela só funciona – quando funciona – se for fruto de um pacto genuíno em que a parte amnistiada exerce um ato sincero de contrição. Isso no Brasil nunca houve. Em todos os casos, a amnistia serviu apenas de muleta jurídica para resolver sem grandes traumas nosso crônico problema de accountability.  Deixar impunes os pecados pretéritos não representa senão um convite à repetição desses mesmos pecados no futuro. Errar é humano. Insistir no erro tem outro nome.

Por todas essas razões, se, ao final do processo, ficar comprovado que Bolsonaro e seus generais estiveram de facto envolvidos numa tentativa de golpe de Estado, que a espada da Justiça caia sobre as suas cabeças com todo o rigor que dela se pode exigir. Não se pede nada além disso. Não estamos mais em 1964. Não estamos mais em 1979.

Amnistia?

Nunca mais.

Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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