Sob o comando de Gouveia e Melo, a Marinha bateu este ano o máximo de, pelo menos, seis anos, na adjudicação de contratos sem concurso público. A despesa em compras por ajuste directo, em 2024, já ultrapassou os 18,1 milhões de euros, num total de 703 contratos, dos quais 66 acima de 50 mil euros. Só estes últimos atingem, no total, 13,3 milhões de euros. Os ajustes directos serviram para comprar tudo: desde peças para navios até serviços de limpezas, passando até por chouriços e farinheiras. Nos últimos três anos, sob completa responsabilidade de Gouveia e Melo, os ajustes directos em contratos acima de 50 mil euros rondam os 30 milhões de euros. O recente ‘puxão de orelhas’ à Marinha, seguido de perdão, por parte do Tribunal de Contas, não serviu de nada.
O recente ‘puxão de orelhas’ que o Tribunal de Contas deu a Gouveia e Melo por causa de contratos por ajuste directo feitos pela Marinha caíram em saco roto. Não só a Marinha prosseguiu com a prática de efectuar contratos sem concurso, como este ano bateu o recorde: até 1 de Novembro foram celebrados, através deste procedimento, um total de 703 contratos, envolvendo 18,1 milhões de euros. Se se excluir os ajustes directos inferiores a 50 mil euros, encontram-se ainda 66 que totalizam quase 13,3 milhões de euros. Trata-se do valor mais alto de pelo menos seis anos.
De acordo com um levantamento do PÁGINA UM no Portal Base, ao todo, apenas somando os ajustes directos de maior montante (acima de 50 mil euros), a Marinha gastou nos últimos três anos, sob a liderança de Gouveia e Melo, perto de 30 milhões de euros em compras de bens e aquisição de serviços sem concurso público ou sequer consulta prévia, ou outro qualquer procedimento de transparência pública e de fomento da livre concorrência.
O valor total dos ajustes directos da Marinha em particular em 2024 – que ainda não terminou, sendo também habitual que haja atrasos na colocação dos contratos no Portal Base – está bem acima dos montantes globais tanto dos primeiros dois anos de ‘mandato’ de Gouveia e Melo como dois seus dois antecessores. Apenas incluindo os contratos acima de 50 mil euros, no ano passado contabilizam-se 56 ajustes directos no valor de cerca de 7,8 milhões de euros, enquanto em 2022, o primeiro ano completo com liderança de Gouveia e Melo, contam-se 71 ajustes directos envolvendo 8,6 milhões de euros. Em 2021, quase todo sob liderança de Silva Ribeiro, houve 70 contratos por ajuste directo acima de 50 mil euros, num montante global de 10,6 milhões de euros. Também sob as ordens de Silva Ribeiro, a Marinha realizou, acima dos 50 mil euros, 71 ajustes directos em 2020 e 60 em 2019, gastando 10,1 milhões e 7,2 milhões de euros, respectivamente.
Este ano, além de chorudos contratos feitos para aquisição de serviços de limpeza, como o PÁGINA UM já noticiou, em Agosto passado, a Marinha adjudicou outros tantos milhões de euros numa panóplia de compras de bens e serviços. É o ‘vale tudo’. O modelo do ajuste directo serviu tanto para a compra de peças para navios de guerra, como a aquisição de software, serviços de limpeza, de vestuário profissional, de combustíveis, de purificadores do ar, de medicamentos, de serviços de telecomunicações, de máquinas para tratamento de águas residuais e até de enchidos, designadamente chouriço mourão, farinheira, fiambre e presunto.
O ajuste directo com o valor mais elevado efectuado este ano pela Marinha, no montante de 735.681 euros, consistiu na contratação de serviços à empresa Reparaciones Navales Canarias, S.A., para a reparação urgente do navio patrulha ‘Zaire’. O contrato foi celebrado a 29 de Agosto sendo fundamentado com o já estafado e abusado argumento da “urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis”.
Já o segundo maior contrato, no valor de 728.670 euros, diz respeito à contratação de serviços de limpeza à empresa Interlimpe – Facility services, SA e foi celebrado a 19 de Julho com a mesma fundamentação. Este contrato consistiu, em concreto, na “aquisição de serviços de Higiene e Limpeza no período de junho a outubro de 2024, com possibilidade de prorrogação para o mês de novembro de 2024, para o Comando Naval, a Escola de Tecnologias Navais, o Centro de Educação Física da Armada, o Centro de Avaliação Psicológica, o Centro de Medicina Naval, o Departamento de Logística Sanitária, a Escola Naval e o Departamento Marítimo do Sul”. De resto, nos ajustes directos acima dos 50 mil euros efectuados este ano, a Marinha conta com 12 contratos feitos com empresas de limpeza, superando os 3,3 milhões de euros.
Ainda no pódio dos ajustes directos, consta ainda um contrato celebrado a 14 de Julho com a Empresa de Investigação e Desenvolvimento de Electrónica no montante de 601.972 euros com o argumento de que a adjudicação só podia ser confiada a esta entidade por ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”. Não é incluído no Portal Base qualquer documento que justifique cabalmente essa decisão.
Mas na longa lista de compras sem concurso feitas pela Marinha encontra-se mesmo de tudo. Até um contrato no valor de 215.640 euros para a compra de enchidos, designadamente chouriços mourão, farinheiras, fiambre e presunto, à empresa Carnes Loução – Industrial Carnes. Este contrato não está disponível, surgindo uma mensagem de erro na ligação para o documento, mas sabe-se que o ajuste directo foi concretizado a 4 de Abril. A justificação para este expediente remete para uma norma do Código dos Contratos Público que permite ajustes directos quando “em anterior concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação para a formação de contratos de valor inferior aos limiares […], consoante o caso, todas as propostas ou todas as candidaturas tenham sido excluídas”. Também não há documentos no Portal Base que indiquem as razões para as exclusões.
O recurso aos ajustes directos por parte da Marinha tem-se intensificado, apesar do ‘puxão de orelhas’ do Tribunal de Contas em Agosto passado, numa inspecção iniciada em 2022, que perdoou a Gouveia e Melo inúmeras infracções à lei dos contratos públicos, na sequência de dezenas de contratos que foram adjudicados à mesma empresa, a Proskiper, sem concurso e à margem do que a legislação permite, além de outro tipo de irregularidades.
Recorde-se que Gouveia e Melo exerce as funções de Chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional desde 27 de Dezembro de 2021, sendo que entre 2017 e 2020 foi Comandante Naval. Foi nesse período que assinou diversos contratos de ajuste directo à Proskipper. No relatório de auditoria a contratos da Marinha, o Tribunal de Contas entendeu que o então vice-almirante e outros responsáveis não tinham actuado com a intenção de violar a lei e concluiu que as suas acções foram passíveis de “um juízo de censura de falta de cuidado e mera negligência”, pelo que escapou a multas.
Contactada para explicar este volume de ajustes directos, o Estado-Maior da Armada (ou Marinha) justificou que “está a celebrar estes contratos no estrito cumprimento do normativo em vigor e para satisfação das necessidades decorrentes da especificidade das suas atividades e meios, ressalvando-se a necessidade de celebração de contratos por inexistência de concorrência por motivos técnicos e por proteção de direitos exclusivos nas aquisições decorrentes das ações de manutenção dos meios navais operacionais e seus equipamentos, sistemas e respetivos componentes”. Indicou ainda que “este conjunto de procedimentos representam entre 65% a 70% da despesa por ajuste direto”.
Instada a explicar a razão para invocar sistematicamente a “urgência imperiosa”, mesmo em casos que poderiam ser programados, para celebrar contratos por ajuste directo, a Marinha apenas se limitou a explicar a situação da aquisição de serviços de limpeza, que já tinha adiantado ao PÁGINA UM numa notícia anterior.
Questionada sobre se a Marinha pretende, no futuro, optar por fazer mais vezes concursos em vez de ajustes directos, a Marinha respondeu que “tem vindo a introduzir melhorias significativas nos seus procedimentos de contratação pública e está a consolidar as medidas com esse objetivo”. Destacou, por exemplo, “a criação de um gabinete específico de normativo e apoio à contratação pública, que produziu e divulgou internamente diversas diretivas, normas técnicas, modelos padronizados e vários documentos de apoio à contratação pública”.
Por outro lado, ressalvou “a reestruturação da organização financeira e patrimonial da Marinha tendo resultado na concentração de competências financeiras, concentração das estruturas executivas de compras, recursos e reformulação de processos”. Indicou que “esta restruturação permitiu a criação de centros de competências na área da contratação pública, incrementando as compras planeadas, agregadoras, de que resultou o aumento dos procedimentos concorrenciais e a redução do número geral de processos de despesa”.
Ainda segundo a Marinha, “a uniformização dos procedimentos e a alteração do modelo organizacional permitiram nos últimos três anos uma redução de 47% no número total de procedimentos aquisitivos, com um aumento de 76% no número de procedimentos concorrenciais”.
Apesar disso, no Portal Base o cenário é de um aumento no montante despendido através de ajustes directos, pelo que, pelo menos em 2024, as medidas da Marinha aparentam servir para encher chouriços.
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