Revólver Vacilante

Dunas que falam com o céu

por Paulo Vero // Novembro 14, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Telefonei para um grande amigo a incitá-lo:

— Viste a notícia?

— Que cena marada!

— Vamos lá amanhã?

No dia seguinte, à hora marcada, mais minuto menos minuto, seguimos rente à vertigem.

Animava-nos uma irrequietude de ver o invisível. Desejávamos a devastação que irrompe do insondável. Intuíamos que quem se compraz a invocar prodígios terá visões que se derramarão sobre toda a carne e todo o espírito.

Estava um tempo esplêndido. O carro seguia ligeiro raspando as estradas do litoral alentejano. Conversávamos com bonomia, brio e provocações brejeiras. O som saía das colunas e obrigava-nos ao trauteio, ao vociferar, ao canto.

Com entusiasmo, parávamos em tascas e cafés, perguntando por aquilo.

— Não, não ouvi falar de nada disso.

— Como é que soube? Eu cá não sei…

— É melhor perguntarem mais à frente.

Aparentemente, a informação pretendida não queria chegar-se à rede, mas acossá-la-íamos até cair nos nossos braços. Um velho com vontade de ajudar falou que a coisa estava na praia das Areias Brancas.

Ainda mais seduzidos pelo nosso desígnio, quase tremíamos, cheios dessa bravia inclinação de quem não quer esquivar-se a nada.

Uma seta com o nome do lugar deu-nos rumo: via sem asfalto onde as pedras estalavam contra o carro, e a poeira entrava sem vagar pelo habitáculo. Margens feitas de pinheiros mansos estreitavam o percurso.

Um aroma de resina enleada em sal entrava pelas narinas.

— Estamos lá quase, puto.

— Já cheira!

O céu parecia querer casar-se mais e mais com o mar. O horizonte abria-se com doçura, cedendo à violenta pulsão que nos guiava.

Eis-nos chegados onde tudo parece estar em ordem. O barulho das ondas é como sino que reverbera interminável ladainha — cada dia sem exaltar Deus é uma afronta.

O manto dourado e branco das areias vem das dunas altas e termina chão deste oceano. Viramos para o lado direito e marchamos com avidez. O calor varre as frontes e deixa-nos sedentos de água e acontecimentos. Não tarda.

Os pés ardem nos quilómetros. Chego-me ao mar para poder molhar-me.

Sabe bem a humidade atlântica.

Ao longe, ao longo duma duna recortada contra definido azul, vai-se definindo uma matriz cujo sentido ainda nos escapa.

O espanto renova-se a cada passo. À medida que nos aproximamos a admiração toma-nos mais e mais e mais. Letras enormes, do tamanho dum homem alto, formam, ao longo de dezenas de metros, abreviaturas que levam a versículos da Bíblia. Isaías, Coríntios, Actos, Romanos, Hebreus, Génesis, Jó, Provérbios, Salmos — excertos escolhidos dos Testamentos.

Tudo feito com plantas daquelas que aguentam o calor, o fraco solo, o sal.

Verde linguagem virada para o céu como solene exposição de perturbadoras jóias.

Aquilo esmagou-nos. Estava ali trabalho de meses, pesado amor. Nada ali poderia ser corrigido. Que desmesura. Salmos 91:15 Ele me invocará, e eu Lhe responderei; estarei com Ele na angústia; dela O retirarei, e O glorificarei.

Jó 17:11 Os meus dias passaram, e malograram-se os meus propósitos, as aspirações do meu coração.

Só não choro porque estou acompanhado, mesmo que de um grandioso amigo. Humanidade rima com orfandade. Ninguém é livre. Ninguém se livra.

2 Coríntios 4:18 Assim, fixamos os olhos, não naquilo que se vê, mas no que não se vê, pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno.

Actos 2:17 E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do Meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos sonharão sonhos.

Actos 22: (fragmentos seleccionados e livremente sequenciados) E persegui este caminho até à morte, de repente rodeou-me uma grande luz do céu. E caí por terra, e ouvi uma voz que me dizia: porque me persegues? E, como eu não via, por causa do esplendor daquela luz, fui levado pela mão dos que estavam comigo. E aconteceu que, voltando eu para Jerusalém, quando orava no templo, fui arrebatado para fora de mim.

Tirámos várias fotografias, de perto e ao longe, atentas a pormenores ou de vistas mais largas. Por mim, mais do que poder contar toda a história com recurso a imagens, queria era compreender o fito de tudo aquilo. Depois de trocar aqueles símbolos e citações por frases e parágrafos, revelar-se-iam apenas esparsos aforismos, ou à luz viria um arrebatamento, um milagre?

Possuídos por aquela ignição, regressámos às nossas casas. Nem me lembro de nada desse caminho de volta. Cada um na órbitra do seu Sol, a congeminar o soberbo.

No dia seguinte, claro, um telefonema de troca de perplexidades e tecer de hipóteses poéticas. Mas, e depois? O que fazer de tudo aquilo?

— Nada, olha que merda. Fascista do caralho, deixa que se renove o Mistério!

Mas eu ardia do querer-saber. Assim que pude, fui ao laboratório buscar as revelações das fotografias. Continham tudo, mas não Tudo. E foi essa a ponte que quis atravessar. Através duma Bíblia, fiz corresponder boa parte daquelas abreviaturas a texto.

Apareceram-me trechos como se fossem o silêncio que antecede o trovão, palavras como arados que rasgam raízes, desagregam terra e abrem sulcos.

Quanto a agarrar o porquê de alguém querer falar com o Céu através destes índices plantados nas dunas — nada. O sangue que alimentou aquele projecto permaneceria passível de ser usado para transfusões mil, cama para todas as especulações.

Havia de lá voltar, anos mais tarde. Poucos vestígios restavam. Um sentimento igual a pernoitar num local sacro. Mas o aroma mais claro e intenso vinha dum cheiro a aventura só possível na irmandade que se borda nas grandes amizades — sem compromisso senão o de um gosto pelo que é vasto. Imponentes nos braços da fortuna, fervilhávamos nos meandros do combate contra a indiferença das estrelas

Paulo Vero é homem dos sete ofícios


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