Pena suspensa: Palavras
Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 13 de Agosto de 1988, sobre António, 45 anos, casado, pintor de automóveis, e a única pessoa ferida nesta história.
PALAVRAS
— A moral deste caso é que os agentes da Autoridade… Mais grave do que agredirem os cidadãos no exercício excessivo da sua autoridade é virem aqui aos tribunais e mentirem. Dizerem coisas que não se passaram ou ocorreram de forma diferente. — denuncia o homem.
António, o réu
António, 45 anos, casado, pintor de automóveis — um homem sereno e senhor de si que veio parar ao Tribunal de Polícia porque há dois anos teria injuriado e agredido um agente da PSP. Nota bastante curiosa à margem deste processo: António — acusado de agressão — é a única pessoa ferida nesta história.
A testemunha do crime
— Eu fui ao café mais o senhor António e umas pessoas amigas. Até que ele foi falar com a dona do estabelecimento para ela acabar com determinados problemas — telefonemas — lá para casa. Ela chateou-se. Deu-lhe com o tabuleiro dos copos. A seguir, deu-lhe com o rolo da massa. A gente acorreu para acudirmos. Entraram dois guardas de repente. O filho da dona do café saiu, entretanto, do balcão e atirou um soco ao senhor António. Aí, ele gritou logo para o guarda que o rapaz — o Manuel — acabara de lhe dar um soco. O guarda virou-se para o senhor António, que filho da p… era ele.
Aí, António sentiu estalar qualquer coisa dentro do coração. A brutalidade daquelas palavras sobre a sua mãe e o escarolado sorriso de desdém do polícia passavam das marcas. E o temporal, em vez de amainar, piorou. A partir daí…
A palavra da defesa
— O mais grave nisto tudo é que é fruto da sociedade em que estamos inseridos. A Polícia aproveita-se da farda que tem em cima do corpo e agride e insulta. Foi o caso do polícia que me chamou filho da p…
— Isso marcou-o?
— Isso marcou-me muito porque eu com seis anos fiquei sem mãe. Não a conheci. Não soube o que é chamar mãe. E de forma alguma aceitaria vir alguém — quanto mais uma Autoridade — chamar-me filho da mãe.
— Foi parar à esquadra. O que é que sucedeu?
— Fui agredido a caminho da esquadra. O polícia em causa deu-me um soco no rim do lado esquerdo. À noite, senti-me mal. Socorri-me ao Hospital de São José. Estive na sala de observações. Saí no sábado. Voltei a entrar novamente.
— O que tinha?
— O relatório acusou traumatismo craniano. Só que depois tinha de me apresentar aqui em tribunal na segunda-feira às 10 horas. Uma senhora doutora perguntou-me o que tinha no corpo. Mostrei-lhe. Despi a camisa. Ela viu. E por ordem deste tribunal este julgamento passou a criminal. Afinal de contas o julgamento acabou por se dar aqui.
A sentença
E demorou algumas horas até o juiz dar por finda a audiência. Veredicto do tribunal: não houve injúrias nem agressão a agente da autoridade. António foi simplesmente absolvido.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 13 de Agosto de 1988.