a deriva dos continentes

Trinta e sete anos mais tarde

por Clara Pinto Correia // Novembro 14, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Já vi como são os gajos que andam por aí sozinhos a trabalhar nos ranchos,” disse George. “Não é bom. Não se divertem. Depois de algum tempo tornam-se muito maus. Tornam-se aquele género de gajo que está sempre a querer lutar.

                “Pois, tornam-se gajos maus,” concordou Slim. “Tornam-se incapazes de falar seja com quem for.

                John Seinbeck

                ON MICE AND MEN (1938)


Quando eu lhes sugeri que, se toda a gente – sobretudo o patrão – estivesse de acordo, podíamos usar o piano ali do bar para fazermos, com mais instrumentos e até talvez com mais vozes, os mesmos espectáculos de fado falado que eu tinha feito em tempos em Lisboa e no Algarve, os olhos do David iluminaram-se de entusiasmo e de antecipação. Quando eu lhe respondi que não via nenhuma razão para ele não contribuir para esse espectáculo com o som do ukelele que ele já andava há mais de um ano a aprender a domesticar – muito pelo contrário, e uma vez mais desde que o patrão concordasse, era uma contribuição porreira, de um som que raramente ouvimos em espectáculos portugueses, e certamente em espectáculos de fado – o David quase que começou a levitar. Repetiu vezes e vezes sem conta que era agora, finalmente, era agora, aos trinta e sete anos: era agora que ia fazer alguma coisa radicalmente diferente das rotinas de Estremoz. Estremoz, onde tinha nascido. Estremoz, onde sempre tinha vivido. Estremoz, onde nunca acontecera nunca nada realmente mau, mas também nunca acontecera nada francamente bom.

Ah, mas isso agora ia mudar.

Aos trinta e sete anos, ele ia chegar ali com o seu ukelele e participar num espectáculo radicalmente diferente.

Diferente, diferente, diferente.

Aqui mesmo, em Estremoz.


Foi um café-bar que abriu na última Primavera numa das esquinas do Centro Histórico, um sítio grande, misterioso, cheio de pilares e de esquinas, com mesas e cadeiras todas diferentes e todas muito confortáveis, um lugar onde podiam entrar os cães, onde os empregados eram jovens e sorriam, onde tudo o que serviam era feito na hora na cozinha lá de trás e imensas receitas tinham segredos especiais – era um sítio para a pessoa se sentir mesmo bem e não ter grande vontade de sair a correr. O piano fazia parte de todo este bem-estar. Era antigo, muito bem envernizado, pousado em cima de um estrado espaçoso frente a uma banqueta de veludo a condizer. Foi só dizerem-me que sim, que estava afinado, e que tencionavam usá-lo para dar espetáculos nocturnos no Verão. Lembrei-me logo dos espectáculos de fado falado, que ficariam tão bonitos com um piano. Ainda por cima, funcionavam como uma homenagem a uma Lisboa já quase inexistente, devorada como andara a ser nos últimos anos por legiões cada vez mais cerradas de turistas. Estremoz também estava a ficar submerso em turistas. Talvez um toque nas letras tornasse a homenagem mais explícita.

Em torno do piano, com o bar ainda vazio, o entusiasmo ia subindo de tom. Eu precisava de uma voz de homem para falar os fados comigo. Era necessário ver quem seria a pessoa mais indicada, falar com ela, convencê-la a juntar-se a nós. Havendo gente, havendo espaço, um coro a entoar a música de alguns dos fados junto do piano era capaz de funcionar muito bem. E esse coro cantava como, a uma voz? Duas vozes? Estava tudo em aberto, a partir do momento em que até entrava um ukelele.

         “Uma coisa que era capaz de ter graça,” continuei eu, “era se de vez em quando, mas nunca se sabia mesmo quando, houvesse na assistência um grupo disperso de pessoas que se levantasse de repente, entoasse uma passagem, e voltasse a sentar-se.”

         “Ah!”, gritou o David com os olhos a brilhar. “Uma flash mob? Isso era brutal!”

         Eu não sabia se seria possível organizar qualquer flash mob naquele espaço. Nem se poderíamos ter minimamente a certeza de que os seus elementos viriam disciplinadamente aos ensaios e estariam organizadamente presentes sempre que houvesse espetáculo. Aliás, não fazia ideia de como é que se coreografa e se ensaia uma flash mob. Mas, como não queria desapontar ninguém, sorri e disse “qualquer coisa assim, depois logo se vê.

         Acabámos por combinar que eu escreveria o roteiro completo do espectáculo, com indicação de intervenientes, instrumentos, letras, e por aí fora. Depois mandava por mail para eles. Depois falava com o patrão, que chegava para a semana. Depois, se toda a gente estivesse de acordo e gostasse do projeto, avançávamos.

         Havia muito que fazer até ao Verão.

         O David saiu comigo, e subimos juntos as escadas que levam ao Castelo. Há muito tempo que não via um homem tão feliz.

         “Ah, finalmente!”, repetia ele. “Finalmente, ao fim de 37 anos, vou fazer uma coisa mesmo diferente em Estremoz! Vou fazer uma coisa que vale a pena fazer! Esperei tanto, tanto, tanto, que já tinha desistido. Agora não. Agora vou recomeçar os ensaios do ukelele já esta noite. Ah, finalmente!

         Depois eu lá consegui encontrar o ficheiro dos fados falados. Dei-lhe vários toques, emprestei-lhe mais conotações estremocenses, substituí o nome de uma casa de fados em Alfama pelo nome daquele café-bar que acabara de abrir com tão bons auspícios. Falei com o patrão, que se mostrou muito interessado e me pediu que lhe mandasse o ficheiro para ele ver.

         Mandei o ficheiro para toda a gente.

         Ninguém me respondeu.

         E fez-se o longo silêncio que se segue às batalhas.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


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