Desconfianças há muitas sobre a promiscuidade entre jornalistas, agências de comunicação e entidades públicas, mas raramente existem provas. Mas, desta vez, existem. João Póvoa Marinheiro, jornalista e conhecido pivot da CNN Portugal, que ainda na semana passada entrevistou António José Seguro, foi contratado em Outubro pela agência LPM para apresentar a cerimónia dos 125 anos da Direcção-Geral da Saúde (DGS) com a presença da ministra da Saúde e ‘aparições virtuais’ do primeiro-ministro e do Presidente da República. A entidade pública pagou à LPM mais de 77 mil euros pela organização deste evento de apenas três horas e por um vídeo de menos de dois minutos, e impôs ainda uma condição expressa no caderno de encargos: para a apresentação deveria ser contratada uma “figura pública”. João Póvoa Marinheiro predispôs-se assim a ‘mercadejar’ o seu estatuto de jornalista, disponibilizando-se a prestar serviços de ‘mestre de cerimónias’ à LPM, a conhecida agência de comunicação fundada por Luís Paixão Martins. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista promete intervir, e o pivot da CNN Portugal arrisca a cassação do seu título.
A agência de comunicação LPM, fundada por Luís Paixão Martins e actualmente gerida por um filho, contratou o jornalista João Póvoa Marinheiro (CP 6766), um dos mais conhecidos pivots da CNN Portugal, para apresentar, sob a forma de prestação de serviços, o evento comemorativo do 125º aniversário da Direcção-Geral da Saúde (DGS), que se realizou no mês passado.
A garantia de contratação do jornalista para um serviço de marketing e de relações públicas – absolutamente incompatível com o Estatuto do Jornalista e susceptível de cassação da carteira profissional – consta do caderno de encargo de um contrato entre a DGS e a LPM no valor de 62.820 euros, recentemente colocado no Portal Base. Com IVA, tudo ficou em 77.269 euros.
De acordo com esse documento, além da concepção de um vídeo sobre a DGS “até 10 minutos” – mas que foi ‘despachado’ em 1 minuto e 45 segundos –, a LPM comprometeu-se a realizar a “gestão, organização e coordenação do evento de aniversário dos 125 anos, para até 400 pessoas, a realizar a 4 de Outubro de 2024”, e que deveria obrigatoriamente incluir “a contratação de figura pública para apresentação do evento”, além da realização de assessoria de imprensa e actividades de logística.
João Póvoa Marinheiro foi assim a “figura pública” paga para fazer de ‘mestre de cerimónia’ de todo o evento que decorreu durante a manhã desse dia, dando as boas-vindas, de introdução e prestação de agradecimento aos convidados – que incluiu presencialmente a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e em vídeo do primeiro-ministro e do Presidente da República –, de anúncio do ‘coffee break’ e de despedidas. Foi uma dezena de aparições do jornalista João Póvoa Marinheiro ao melhor estilo de apresentador de uma qualquer ‘Miss Portugal’. O pivot é jornalista acreditado desde 2017.
A contratação, a troco de uma compensação financeira, por parte de uma empresa de consultadoria e de comunicação de um jornalista é uma prática que viola claramente o Estatuto do Jornalista, ainda mais grave por se tratar do pivot da CNN Portugal com uma intervenção pública relevante no canal da Media Capital. Por exemplo, ainda no dia 22, João Póvoa Marinheiro co-entrevistou, ao lado de Nuno Santos, director da CNN Portugal, o ex-secretário-geral do PS José António Seguro, putativo candidato às presidenciais.
Fazer apresentações públicas usando-se da credibilidade da profissão é considerado, no Estatuto do Jornalista, uma grave incompatibilidade. Esta lei de 1999 considera impeditivo que um jornalista exerça funções de marketing e relações públicas, que se enquadram em eventos da natureza do aniversário da DGS, onde João Póvoa Marinheiro se prestou a ser um mero ‘mestre de cerimónias’, vendendo a cara e a voz. Na verdade, o pivot da CNN fez mesmo actos de publicidade, uma vez que uma norma do Estatuto do Jornalista determina que se deve considerar “actividade publicitária incompatível com o exercício do jornalismo a participação em iniciativas que visem divulgar produtos, serviços ou entidades através da notoriedade pessoal ou institucional do jornalista, quando aquelas não sejam determinadas por critérios exclusivamente editoriais”.
De acordo com a mesma lei, se o pivot da CNN quisesse mesmo assim receber o dinheiro pago pela LPM teria então de entregar previamente o título profissional, antes da realização do evento, à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, mas ficaria depois sujeito um ‘período de nojo’. Ou seja, estaria impedido, devido a essa incompatibilidade, de exercer actividade jornalística “por um período mínimo de três meses”.
Além disso, findo o período dessa incompatibilidade, continuaria impedido, “por um período de seis meses, de exercer a sua actividade em áreas editoriais relacionadas com a função que desempenhou, como tais reconhecidas pelo conselho de redacção” da CNN Portugal. Nada disso sucedeu.
João Póvoa Marinheiro não é, porém, ‘virgem’ as andanças de cometer violações ao Estatuto do Jornalista. No seu site pessoal, que funciona também como de promoção, o pivot da CNN Portugal lista as suas prestações como ‘host’ de eventos pagos, que iniciou em 2021. Nos últimos dois anos, se incluirmos o evento da DGS (que ainda lá não está), contabilizam-se seis participações desta natureza.
O PÁGINA UM pediu esclarecimentos tanto à LPM, através do seu administrador João Paixão, como ao jornalista João Póvoa Marinheiro. Nenhum respondeu. Contactada pelo PÁGINA UM, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) diz não haver nenhum registo de depósito da carteira profissional do jornalista João Póvoa Marinheiro, confirmando-se assim que agiu na apresentação do evento enquanto tinha título activo, e acrescenta que “qualquer situação que possa configurar uma violação do regime de incompatibilidades” será “devidamente investigada, o que acontecerá no caso vertente, e, se for o caso, serão desencadeados os procedimentos previstos na lei”.
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