Aquele número que ali estava diante de si, no seu smartphone, era inteiramente novo para a Cátia que odiava ter de atender números desconhecidos que não lhe diziam nada. Tinha medo.
Mas o aparelho até parecia que estava mais nervoso que o habitual e mesmo o som aparentava estar mais estridente e intenso.
E a proveniência podia muito bem vir do seu ex-namorado, o que seria um problema, pensou ela. Já em tempos o fizera, ligando de uma velha cabine perdida no tempo, achava ela.
Não queria falar com ele por nada deste mundo, e suspeitava que o rapaz pudesse estar muito bem a ligar de outro telemóvel, embora ele soubesse de antemão, que Cátia raramente atendia quando os números eram de origem desconhecida.
Desligou o som.
Para ela, ele era um stalker, mas, para ele, ela também era uma stalker.
Mas isso é outra história.
Ficou a olhar para o telemóvel a vibrar enquanto se decidia.
Já tinha tido problemas por não atender chamadas, sobretudo quando se tratava do campo laboral, tinha noção disso, e pagou um preço bem caro da ultima vez por ter investido nessa opção arriscada do não atendimento, mas era a pior coisa que lhe podiam fazer, e jamais queria ter de voltar a ouvir a voz do Marco, o seu stalker, isso é que não. A acontecer só no tribunal caso chegassem a esse ponto.
Tinham namorado dois anos e a relação acabara em violência doméstica segundo os dois e teriam mesmo acabado em tribunal, não fosse o aparecimento da pandemia mediática. Mas hoje ela pondera fazer queixa novamente. E ele também. São, até prova do contrário, ambos vitimas de “stalkerismo ”.
Estranho mundo o nosso.
Na altura ele fez queixa dela, alegando que levara um tareão à antiga, invocando que ela era cinturão castanho em Full Contact e até era mais alta que ele.
Mas ela sempre o negou. Ele era apenas cinturão verde em Judo.
Naquela altura atípica e singular da pandemia e de confinamentos loucos e radicais, cujas regras mudavam dia sim dia não, os advogados chegaram a acordo para não levarem o caso a tribunal. Nenhum dos quatro se via de máscara nas audiências. Áí estavam todos de acordo.
Mas isso é também outra história.
E agora que tudo aparentemente passou, o Direito e a verdade eram de novo uma hipótese de voltar à carga para ambos.
Mas talvez seja tarde. Os tempos mudaram.
Cátia era uma reincidente em não atender números anónimos, mas com algum desconforto, e depois de pensar bem, atendeu a chamada.
Era da Agência Funerária que estava a tratar da lápide do pai que já morrera há um ano, e só agora a família tinha decidido fazer uma, com uma inscrição a recordar o bom homem que o Sr. Américo Santos tinha sido, uma enorme mentira, uma vez que nenhum dos quatro filhos tivera entretanto qualquer tipo de saudades do pai, nem mesmo a mulher, que rejuvesnecera dez anos após a morte do marido.
O Sr. Américo tinha sido uma má pessoa e até um pai ausente, fazia tudo à sua maneira, não ouvia ninguém, era malcriado, gordo, corrupto e mil coisas mais bastante negativas por sinal, no entanto tinha sido em vida católico e a família estava a ser forçada pela outra parte da família para que essa lápide ganhasse vida.
No que resta do mundo católico, é assim.
Cátia ficou aliviada quando percebeu a origem da chamada.
O processo já tinha avançado, já estava até a maquete feita, e era por isso mesmo que esta ligação se estava a efectuar.
A senhora da Agência disse:
– Estou a falar com o Sr. Timóteo?
– Não! Sou a Cátia. O Timóteo é o meu irmão.
– Olá, eu sou a Dulce da funerária Anjos. Pode ser consigo também. Já trocámos uns e-mails.
A Cátia estava descansada naquele momento, não era nenhum desconhecido, nenhum stalker, nenhum ET, nenhum vampiro. E de forma calma respondeu:
– Sim, sim.
– Olhe, é porque a fonte de letra que me está a pedir nós efectivamente não temos.
– Não tem a Helvética?
– Não. Sabe, essa não tem muita saída. Nós trabalhamos com a Comic Sans. Normalmente os clientes ficam satisfeitos com essa. Não leve a mal, mas para mim também é a mais gira de todas. Eu uso-a para quase tudo… E aconselho.
– Sim. Mas eu trabalho na área do Design.
Interrompeu a Cátia, irritada.
– E não quero essa letra. Não tem nenhuma Garamond?
– Gara… quê?
– …Mond. Garamond. É um tipo de letra. Não conhece?
– Pois. É o que lhe digo. Nós aqui não trabalhamos com a Garamond. Pois… Se a senhora trabalha nessa área, deve ser mais exigente. É como eu com a Fórmula 1. Vej…
– Então trabalham com quais?
Interrompeu.
– Não lhe sei assim dizer. É que é a primeira vez que alguém se queixa da fonte.
– Sim, mas eu queria saber com que fontes trabalham, se não se importa. Até porque essa aí não tem nada a ver com a situação. Estamos a falar de uma pessoa morta não é!
– Pois. Estou a perceber. Queria assim uma coisa… Como dizer?.. Mais, vá… Pesada!.. Vá!
– Não é pesada. É ajustada.
– Pois. A Comic é assim mais leve e simpática. Mas percebo. Quer assim uma coisa…
– Mas diga-me, com quem é que posso falar aí da Agência que saiba do assunto?
Interrompeu a Cátia novamente, ainda mais irritada.
– Com o Sr. Alves mas está com covid em casa. Pelo menos ele acha que é. Está sem olfato e está muito irritado. Está isolado, sabe!.. Eu já lhe disse que não era preciso o isolamento mas é teimoso o raio do homem. E não quer falar com ninguém. Ainda há pouco tentei comunicar com ele e quase me ofendeu. Tente mandar um e-mail para o Sr.Alves.
– Dê-me o e-mail então.
Simultaneamente a Cátia recebe entretanto uma chamada na outra linha e o número é outra vez desconhecido, até diz sem ID, o que faz com que fique ainda mais nervosa.
– Espere, estou aqui à procura. Mas olhe, entretanto vi aqui qualquer coisa no nosso catálogo sobre isso das letras, quer que lhe diga?
– Sim.
Entretanto a chamada anónima caiu.
– Arial. Gosta?
– Não.
– Verdana?
– Também não. É horrível.
– Também acho.
– Bold.
– Isso não é fonte. Isso é quando se quer a letra mais marcada. Mais escura.
– Ai sim? Que engraçado. Mas fica muito gira, assim mais escurinha.
– Diga mais.
– Vicking.
– Não acredito que têm essa. Para que é que a usam?
– Pois, não sei. Tem de perguntar ao Sr. Alves. Deve ser para cartões. Aqui em Arouca usa-se muito. É assim… Dinâmica!
– Isso é absurdo.
– Só temos aqui mais uma, que é… Deixe ver… Ah!.. Times New Roman.
– Tem essa?
– Aqui diz que sim. Não é do meu departamento, repito. Isto é mais com o Sr. Alves. Mas pelo menos é o que diz aqui. Mas eu se quer que lhe diga, gosto muito da outra dos Comic Sans. É muito gira, mesmo para lápides. Torna assim a coisa mais leve sabe?.. Quando eu morrer q…
– Mas isto não é para ser giro.
Interrompeu a miúda novamente, e desta vez ainda de forma mais abrupta. Continuou:
– O meu pai está morto. Estamos a falar de uma lápide.
Aparece novamente a inscrição sem ID no telemóvel. A rapariga começa a ficar muito ansiosa.
– Olhe eu vou pensar melhor e mando um e-mail para vocês a dizer a nossa opção. Vou reunir com os meus irmãos e com a minha mãe. Mas por favor reencaminhe para o Sr. Alves a nossa opção.
– Já agora. Podia avaliar a minha prestação?
Sugeriu a empregada.
– Como?
– A seguir vai receber um inquerit…
– Agora não. Obrigada.
– É o meu irmão que vai ligar. É uma voz verdadeira. Nã…
Desligou e ficou a olhar para o telemóvel que entretanto já estava com o som do toque activo, cada vez mais estridente. Cada vez mais agudo. Até lhe pareceu que era a primeira vez que ouvia aquele toque.
E num ápice atendeu.
– Sim. Com quem falo?
Perguntou.
E o telefone ao fim de uns segundos desligou-se mas ainda se ouviu uma voz ao longe, meio cavernosa e imperceptível, embora com um tom bem marcado mas dúbio.
Estranho.
A Cátia ficou branca. Não queria acreditar no que achava que acabava de ouvir.
Foi à cozinha beber um copo de água. Sentiu um ligeiro frio interior que normalmente anunciava quebra de tensão e sentou-se numa cadeira da cozinha.
Ía jurar que era a voz do pai a pedir a Comic Sans.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero
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