Monte-Leste

Um poema de Li Bai

Icra Iflas Piled Book

por José Melo Alexandrino // Novembro 28, 2024


Categoria: Opinião

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Uma folha de mim lança para o Norte,

Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;

Outra folha de mim lança para o Sul,

Onde estão os mares que os Navegadores abriram;

Outra folha minha atira ao Ocidente,

Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,

Que eu sem conhecer adoro;

E a outra, as outras, o resto de mim

Atira ao Oriente,

Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,

Ao Oriente pomposo e fanático e quente,

Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,

Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,

Ao Oriente que tudo o que nós não temos.

Que tudo que nós não somos,

Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,

Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo…

[…]

Álvaro de Campos, Vem, Noite antiquíssima e idêntica (1914)


Tendo dado à sua última crónica semanal o título “Os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis”, Ana Cristina Leonardo concluía a sua reflexão afirmando que, perante a hipótese de uma III Guerra Mundial, se deviam esquecer os poetas, porque «os exércitos irão salvar o mundo»[1].

Cavaleiros a cavalo (séc. VI d.C.)
 (a partir de uma pintura mural, na província de Shanxi, na China)

1. Havendo todas as razões para nós, povo aberto a todos os horizontes, línguas e lugares, fazermos o inverso do que aparentemente anunciavam o título e a conclusão daquela nossa escritora[2], recuemos um pouco no tempo, para ir ao encontro de Li Bai (701-762 d.C.)[3], poeta de que as crianças chinesas ainda hoje aprendem a decorar alguns versos, poeta que em vida ficou conhecido como o “imortal exilado do Céu” e que, não obstante tudo, continua a ser divinizado em zonas rurais da China e no Vietname.

Li Bai

2. Do cancioneiro de cerca de 1100 poemas seus que nos chegaram, o poema aqui apresentado, composto em estilo yuefu[4], não versa nem sobre o vinho, nem sobre a Lua, nem sobre a vida de retiro, nem sobre a saudade das esposas-meninas – temas que seguramente o imortalizaram –, mas sobre a guerra, que também acabou por conhecer de perto, pois, se até meados do século VIII, o Império conhecera a paz, é também a partir de 750 que o tema da guerra se desenvolve na sua poesia[5].

Refere António Isidro a propósito deste poema (a que cada tradutor dá um título diferente) que Li Bai terá assistido ao embarque de tropas para uma campanha, saindo a voz «embargada do seu pincel, para contar a tragédia da guerra e o cataclismo que ameaça o reinado do imperador Tang Xianzong»[6].

Não obstante a existência de pelo menos duas traduções portuguesas do poema[7] (além das múltiplas traduções inglesas a que tive acesso)[8], por diversas razões, optou-se por fornecer aos leitores do PÁGINA UM uma versão elaborada a partir da tradução feita por Pietro de Laurentis, Professor da Universidade de Nápoles “A Oriental”, um orientalista que se tem dedicado de modo especial à caligrafia e à estética da China medieval[9].

Um poema de Li Bai – Museu Gugong (Pequim)[10]

Combates a sul das muralhas

No ano passado lutámos na nascente do Rio Sanggan.

Este ano lutámos

no curso do Rio Pamir.

Os cavalos de guerra banham-se nas ondas do Lago Tiaozhi,

ao galope nas pastagens nevadas das Montanhas Tianshan.

Expedições de guerra com dez mil milhas de comprimento,

terminado o combate, as nossas tropas envelheceram.

Matar e massacrar são as ocupações dos Tártaros,

desde tempos antigos, vêem-se apenas ossos brancos nas areias amarelas.

Para se defenderem dos bárbaros, os Qin construíram a Muralha,

no tempo em que os Han queimavam as tochas lá do alto.

As tochas de avistamento ardiam incansavelmente,

e as expedições de guerra não terminavam nunca.

Morria-se em campo aberto combatendo corpo a corpo,

os cavalos exaustos relinchavam de dor em direcção ao Céu[11].

Corvos e falcões bicavam dos corpos humanos as entranhas,

que apertadas no bico transportavam para as árvores secas e deixavam dependuradas nos ramos.

Soldados espalhados entre ervas desoladas, que benefício tem a vida de um general?

Sabe-se, objectos nefastos são as armas,

o sábio apenas as usa se não tiver alternativa[12].

Pavilhão Memorial de Li Bai (em Jiangyou)

José Melo Alexandrino é professor universitário


[1] Crónica publicada no caderno ípsilon do jornal Público, em 22 de Novembro de 2024, pp.  30-31 (disponível on-line, para assinantes, aqui).

[2] Basta para o efeito ler e reflectir no artigo, para concluir que a lição a extrair é a inversa.

[3] Para uma, aliás excelente, biografia daquele que é considerado por muitos (ou juntamente com Du Fu) o maior poeta chinês, veja-se Pietro de Laurentis, Li Bai – L’uomo, il poeta, cit., pp. 1-20; para uma biografia em português, António Graça de Abreu, Cem Poemas de Li Bai, Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim, 2021, pp. 22-69.

Sobre o poeta, em língua portuguesa, merecem referência as obras de António Graça de Abreu: Poemas de Bai, 2.ª ed., Macau, Instituto Cultural de Macau, 1996 (tendo a 1.ª edição, datada de 1990, contado com uma intervenção de Natália Correia, em palavras publicadas em 2021, na obra já citada, Cem Poemas de Li Bai, pp. 12-21); ainda em obra coordenada por António Graça de Abreu e Carlos Morais José, Quinhentos Poemas Chineses, Lisboa, Nova Vega, 2014, pp. 135-152 (na tradução de diversos autores), por último, numa belíssima edição, António Isidro, Li Bai – A via do Imortal, Macau, Livros do Meio, 2022.

[4] Sobre o qual, Pietro de Laurentis, Li Bai – L’uomo, il poeta, cit., p. 56.

[5] António Graça de Abreu, Cem Poemas…, cit., p. 66.

[6] António Isidro, Li Bai – A via do Imortal, cit., p. 191.

[7] Assim, António Graça de Abreu: Poemas de Bi Bai…, cit., pp. 226-227; Id.,  Cem poemas de Li Bai, cit., pp. 184-185 (com o título “Lutámos a sul das muralhas”); António Isidro, Li Bai – A via do Imortal, cit., pp. 191-192 (com o título “As Guerras a Sul da Cidade”).

[8] A maior parte das quais acusando influência da tradução de 1919 de Arthur Waley (e dos excessos de liberdade poética que esse renomado sinólogo britânico confessadamente se concedeu nessa versão).

[9] Cfr. Pietro de Laurentis, Li Bai – L’uomo, il poeta, Milano, Edizione Ariele, 2016 p. 93.

[10] A partir da tradução oferecida por Pietro de Laurentis (obra citada, p. 317), uma versão possível deste poema autógrafo de Li Bai pode ser a seguinte:

Altos os montes, longos os rios,

milhares e milhares os fenómenos do universo.

Privado de um adequado pincel,

poderias realmente descrever tanta pureza e potência?

[11] Dada a sua beleza poética, este verso é assim traduzido por António Graça de Abreu:

Relincham para o céu cavalos sem cavaleiro.

[12] Segundo António Graça de Abreu, os dois últimos versos são uma citação do capítulo 31 do Tao Te Ching, apresentando então a seguinte tradução (cfr. Cem Poemas.., cit., p. 185):

Abomináveis e cruéis as guerras!

O homem de bem só obrigado as faz.


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