Virada do avesso 

Author avatar
Sílvia Quinteiro|28/11/2024

Quando nasceu Odete, a mãe colocou-a numa cesta junto à máquina de costura.  Embalada pelo som ritmado do pedal, a menina cresceu sem conhecer outra realidade. Da cesta passou para uma cadeira de criança trazida de um passeio a Reguengos.  Foi nela que aprendeu a dar os primeiros pontos. Dali observava a mãe a tirar as medidas das clientes, a talhar e alinhavar os modelos, a experimentar e fazer os últimos ajustes.  A mãe dizia que gostava que a menina tivesse outra vida. Que não ficasse ali presa na casa de fora, a ver o mundo passar na rua. Mas Odete cedo revelou ter mãos de fada. A chegada da segunda máquina, comprada a prestações na Singer, foi uma espécie de diploma. Primeiro em dupla, depois sozinha, Odete trabalhou grande parte da sua vida como modista.

person holding white and red plastic toy

Mas chegou o pronto-a-vestir. Abriram lojas modernas um pouco por toda a cidade. Os vestidos da moda estavam agora à mão de semear. Odete já pouco podia mostrar da sua arte. Vivia de fazer pequenos arranjos. Ganhava bem. Mas o trabalho não brilhava. Os clientes eram desconhecidos com os quais poucas palavras trocava. Dias, meses, anos, sentada a uma máquina que agora era elétrica.  Um rádio. Um pequeno cão peludo, sonolento, enrolado sobre a velha cadeira alentejana. O sol a bater-lhe no focinho tranquilo. Entre bainhas, botões e fechos, Odete encontrava tempo para fazer peças que mostravam a sua destreza e talento. Pendurava-as na porta de reixa, viradas para rua. Entre elas, um talego de cores vibrantes saltava à vista. As pessoas passavam, paravam, perguntavam o preço:

– Esse não está à venda. – respondia Odete.

– Que pena! Tão bonito. – comentavam.

Odete sabia disso. Era justamente essa a razão pela qual não o vendia. Para que admirassem a sua habilidade. Depois, regressava o silêncio.

Certo dia, uma turista curiosa parou a admirar o talego. Quis saber o que era, para que servia. Odete, entusiasmada com a conversa, respondeu-lhe elevando cada vez mais a voz:

–  TA-LE-GO! É PA-RA PÔR O PÃ-O! TA-LE-GO!

A turista enfiou a mão no saco e repetiu sorridente:

–  TA-LE-GO! PÃ-O!

Mas no fundo do talego, não foi pão que encontrou. Foi um brinco de ouro. Espantada, entregou-o a Odete que o rejeitou. Não era dela. A turista voltou a meter a mão no talego e encontrou o par do brinco.

Passados dias, uma outra mulher que parou para ver o talego retirou de lá de dentro um cordão de ouro de duas voltas.  Odete insistiu que ficasse com ele. Não lhe pertencia.

Cedo correu a notícia pela cidade.   As pessoas começaram a passar com mais frequência àquela porta. Primeiro vinham a medo, disfarçadamente. Como quem  não quer a coisa. O talego nunca desiludia. Não havia por esses dias quem não se lembrasse de vir cumprimentar diariamente a Odete. Passado algum tempo, tinha tantos amigos que a fila se formava durante a madrugada. Quando abria a porta para pendurar o objeto, todos se apressavam a tentar a sua sorte e  já nem se davam ao trabalho de lhe dar os bons-dias. Pelo contrário. Reclamavam. Insurgiam-se:

– O que custava ao raio da velha deixar aqui o saco durante a noite?

Tiravam o que queriam e iam embora. Até que um dia, ao chegarem à porta, encontraram o talego virado do avesso. Metiam as mãos e nada. De um lado. Do outro. Nada. Não podiam acreditar. Bateram tão violentamente à porta que a arrombaram.  Invadiram a casa para exigir explicações. Mas não  encontraram a costureira. Estava tudo nos sítios do costume, menos ela e o cão.  Nunca souberam que numa tarde de inverno, cansada das dores do reumático que há muito lhe davam que fazer, Odete resolveu meter a mão dentro do talego na esperança de encontrar uma pomada que a aliviasse. Mas o que de lá saiu foi um cartão dourado. Odete Mendonça diziam as letras em relevo. Não havia dúvidas de que era para ela.

Há quem diga que a viu deitada numa espreguiçadeira, com o seu Pompom ao lado, a beber água de coco, em Copacabana.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


Partilhe esta notícia nas redes sociais.