Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima quarta edição, o piparote de Brás Cubas afinfa no cronista Leonardo Ralha, que compõs um panegírico ao Almirante Gouveia e Melo no Diário de Notícias.
Entre as vantagens diversas de se estar morto — e olhem que há muitas, incluindo a ausência de contas por pagar e desacreditar nas promessas de um equilíbrio orçamental –, está o prazer de poder observar os vivos e as suas excentricidades com um olhar superior, sem dano nem mácula. E foi assim que, num repente, me vi folheando um jornal da terrinha, que nasceu quando eu ainda era vivo, e que me admira muito por não estar já enterrado como eu.
Falo-vos do vetusto Diário de Notícias e de um artigo do escriba Leonardo Ralha, que, talvez por queda de assunto importante, teve de despachar um ‘calhau’ de três páginas em forma de prosa, mas que se assemelha a poema épico barroco, dedicado ao novo Aquiles Português, ou melhor, ao Ulisses da Farda Lusitana, o senhor Henrique Gouveia e Melo.
Ralha, cujo nome já prenuncia o riso forçado e a incoerência (ah, como é irónica a Providência Divina), quis ontem erguer-se como o novo Homero das redacções, depois do saudoso Serpa na Bola, mas sem o discernimento de um cego inspirado. Em vez de nos dar um herói crível, mesmo se pouco credível, brindou-nos com uma figura tão sobrecarregada de atributos e qualidades que nem mesmo os deuses gregos, mestres em vaidades e falhas, ousariam reclamar para si.
Ralha, o jornalista cujo apelido já se imagina num boteco de esquina – “Mais um copo, pró Ralha!” –, resolveu transformar um Almirante em mito antes mesmo de o bom senso o permitir. O seu texto torna-se quase um insulto à própria ficção, que exige, por convenção, alguma verosimilhança. Pois se até os romances mais audaciosos de Balzac, as óperas mais dramáticas de Verdi e os épicos mais delirantes de Camões se sustentaram numa base mínima de lógica, deveríamos exigir que Ralha não fizesse um falso emplastro a que deu o horroroso título de “Coragem, visão e foco são marcas do ‘nada suave’”.
O ‘nada suave’ é, sabido está, o cognome envernizado e estapafúrdio aplicado ao Almirante, um disparate de marketing retórico que tenta mascarar o óbvio: o marujo, na verdade, apenas tropeçou em obrigações rotineiras, mas o alçaram por empenhos ao Olimpo político como se tivesse, à semelhança de Rousseau, redigido um novo Contrato Social que refundasse os laços entre o indivíduo e o Estado, ou, como Locke, lançado as bases de um governo guiado pela razão e pelos direitos naturais. Nanja! O homem destacou-se por ser um operador de logística afortunado de um só produto já em sezão de abastança vacinal.
Pois, mas que importa a substância da realidade quando podemos criar ditirambos – esses cânticos fervorosos dignos de Dioniso – em honra à gloriosa epopeia das insónias do Almirante, como faz Ralha na sua croniqueta? Sobre as suas madrugadas de mente vagueante, mais perdida que Ulisses sem Ítaca à vista? A cosmovisão de Gouveia e Melo não se mede, no ralhómetro do Ralha, em feitos concretos, em acções valorosas ou mesmo numa ideia que se sustente por mais de dois parágrafos. Não, o verdadeiro herói do nosso tempo não precisa de façanhas épicas, mas de noites mal dormidas! Que se erga um monumento à sabedoria ‘insonesca’, essa prodigiosa habilidade de responder a mensagens às três da manhã como se o destino do Mundo repousasse na ponta de um dedo vigilante.
Imaginemos o novo panteão dos deuses modernos: Apolo, com a sua lira, é dispensado; Atena, com sua lógica, é irrelevante; Deméter, com a sua abundância, é ignorada; Afrodite, com o seu encanto, é desprezada; e eis que entra em cena o Deus da Insónia, barbas brancas, farda marítima irrepreensível, coroado não com louros, mas com olheiras profundas, a segurar não uma espada, mas um telemóvel. Que paradoxo sublime! A coragem, antes reservada aos que enfrentavam sanguissedentos leões ou mares procelosos, é agora definida pela bravura de quem encara um ecrã luminoso no silencioso trevor.
Ora, não sei quanto a vós, mas cá deste lado do além, conheci gente de todas as épocas que dormia pouco, e nenhuma delas foi endeusada por isso. César, dizem, mal pregava olho enquanto cruzava o Rubicão, mas foi imortalizado pelo seu génio estratégico, não pelas olheiras. Da Vinci, que dividia o sono em curtos intervalos para maximizar o tempo, deixou-nos a Mona Lisa e o Homem Vitruviano, não um tratado sobre a arte de responder a mensagens nocturnas. Beethoven, surdo e insoniado, compôs a Nona Sinfonia, mas ninguém o coroou rei dos insones por isso. Churchill, que fazia sestas intermitentes durante a guerra, é lembrado pelas suas decisões históricas, não pelas noites em claro com charutos e conhaque. E até o meu ‘pai’, Machado de Assis dormia mal e deu-nos Capitu e Bentinho, e a mim próprio, mas ninguém o tratava como um semideus por mor das noites em claro.
Porém, para o Ralha, insónia é sinal de génio, de visão superior. Se ao menos essas insónias fossem produtivas! Se delas tivessem saído, como da caverna de Platão, ideias que iluminassem o Mundo… Mas não: o Ralha celebra o simples facto de o não-dormir ser virtude divina, quando é apenas um capricho humano elevado à categoria de mito por quem, incapaz de entender a grandeza real, decide fabricar heróis com barro de mediocridade. Poderei estar, confesso, a ser exigente, por mal ventura, às custas da minha ignorância: às tantas, o Almirante, entre mensagens nocturnas, já planeou o fim da fome, a paz mundial e o segredo da vida eterna. Lamentavelmente, não lhe tem sobrado tempo para nos informar disso.
Portanto, mesmo sem esse desfecho, cantemos, ó leitores, um novo ditirambo, não sobre o vinho ou a dança, mas sobre a nobre arte de perder horas de sono. E que ninguém ouse perguntar se essas insónias valem mais do que o sono profundo de quem, descansado, depois de acordar, constrói pontes, descobre curas ou, pelo menos, escreve algo que não seja uma ode ao vazio. Pois, no reino das insónias endeusadas, a lógica está a dormir profundamente.
Segue-se, no garrancho do Ralha, uma cascata de superlativos sobre o Almirante que causariam um rubor insuportável até aos mais fanáticos hagiografistas do Barroco. “Foco fora do normal”, “linguagem transversal a toda a sociedade”, e capacidade de “estar com 30 mil coisas ao mesmo tempo“, assim entre aspas por ser citação de uma ignota testemunha. Ou inexistente. Ao que parece, Gouveia e Melo não é apenas um homem, mas um híbrido de Leonardo da Vinci, Bismarck e Bill Gates, tudo numa só farda. Se ele tivesse vivido na Grécia Antiga, Sócrates teria parado de questionar a vida para apenas admirá-lo. Aristóteles teria rasgado a ‘Ética a Nicómaco’ e dito: “Já temos o modelo da virtude perfeita.” Platão, por sua vez, teria abandonado o ‘mundo das ideias’ e proclamado: “Eis aqui a forma encarnada do Belo e do Justo”.
Ah, mas que interessa a verdade, se com a ficção se consegue, sem escopro nem cinzel, erigir monumentos ao barroquismo jornalístico? Como não nos deleitarmos com uma ode à hipérbole descontrolada de Ralha que nos revela, sem citar vivalma nem corar de vergonha, que Gouveia e Melo identifica “primeiro coisas que mais ninguém estava a ver, o que tanto se aplica, ao que parece, no seu inédito delineamento de centros de vacinação (coisas nunca vistas em terras lusitanas) como na ousada escrita da obra ‘Preservativo das Bexigas e dos Terriveis estragos ou Historia da Origem e Descobrimento da Vaccina, dos seus Effeitos ou Symptomas, e do Methodo de Fazer a Vaccinação & c.’, embora ilegalmente apropriada pelo médico, certamente charlatão, Manuel Joaquim Henriques de Paiva, que se apropriou e a publicou em seu nome em 1801. E isto claro, mesmo sem gritar hosanas à missiva instrutora de autarcas para se uniformizarem procedimentos, ou à “antecipação da importância que os drones teriam em operações de guerra e patrulhamento”.
Ora, aqui jaz, perante a nossa admiração, um monstro da clarividência divina. Gouveia e Melo não é apenas um almirante, é um verdadeiro vidente, um oráculo vivo, o Delfos de farda. E o cronista está para celebrar. Onde todos vêem a banalidade do mar, Ralha vê que ele vê a Atlântida; onde outros vêem uns papeluchos bolorentos e esburacados pelas traças, Ralha vê que ele vê os manuscritos de Sun Tzu; onde outros vêem um militar burocrata rabugento, Ralha vê que ele vê um inventivo Leonardo da Vinci da logística.
É como se o almirante tivesse óculos de realidade aumentada, não aqueles comuns; antes umas gafas que permitem perscrutar até os pensamentos mais obscuros de Poseidon. Mas, atenção, não confundamos: estas visões reveladoras estão reservadas apenas àqueles iluminados que “trabalham com ele”. Para o resto de vós, meros mortais, sobra a escuridão da ignorância.
Além disso, reparem: o seu Almirante não sabe apenas dirigir uma frota ou enfrentar piratas modernos (ou narcotraficantes), mas criar composições dignas de uma exposição de arte naval, como seja centros de vacinação testados em plena Academia Militar. Imaginemos mais longe: Gouveia e Melo, pincel em punho, esboçando, não hospitais já, mas sim caravelas futuristas enquanto declama sonetos de Camões sobre a glória marítima na Capela Sistina. Nem sei como o Ralha não viu no Almirante um verdadeiro Miguel Ângelo dos estaleiros do Alfeite!
E se houvera pincéis, também haveria de haver penas com tinta feita à moda antiga, com vinho tinto, pau de figueira e bugalhos de carvalho. Também na arte da epístola, diz o Ralha, se sobressai o nosso Admiral das terras de Viriato (ou de Quelimane, ali mesmo ao lado), nem que seja na comezinha função de uniformizar procedimentos junto de autarcas. Ah, gritem louvores ao heroísmo burocrático! Eu nem sei o que mais me impressiona, se o acto da redacção escolar ou a transmutação, pelo louvaminheiro Ralha, de uma corriqueira carta em façanha titânica. Alexandre, o Grande, conquistou o Mundo; Gouveia e Melo, por sua vez, conquista os corações de autarcas com o poder de uma carta bem alinhada. Qual será o segredo? Uma caligrafia impecável? Metáforas náuticas? Selos com aroma de maresia? Parvoíces do cronista?
E que dizer de Ralha quando elogia a visão de Gouveia e Melo – por certo incrementada em horas passadas nas profundezas, quando o Albacora, o Barracuda e o Delfim despejavam óleo nos mares, de tão velhos que andavam no crepúsculo da pretérita centúria – em antecipar a importância de meios aéreos em operações de guerra e patrulhamento? Que descoberta revolucionária! É como se Gouveia e Melo tivesse inventado o avião, o radar e a própria ideia de patrulhar os céus, ou até a Passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão. Vou dar ali um peteleco ao Saramago por se ter esquecido de meter um Gouveia Sete-Faróis no seu ‘Memorial do convento’…
Ademais, imagino a vergonha dos Wright Brothers que devem andar escondidos no canto do purgatório, a murmurar: “Que desperdício, não antecipámos nada disto!” E eu aqui a pensar que o mundo militar viveu séculos de penumbra – que digo! –, de obscurantismo, sem perceber que os meios aéreos têm algum valor na paz e nas guerras! Que visão mais celestial, mais divina trazida por Gouveia e Melo, justamente agora alavancada pelo Ralha.
Na sua exaltação desenfreada, o Ralha até entroniza o Almirante ao símbolo dos “marinheiros de silício” em detrimento dos “marinheiros de carbono”. Que metáfora engenhosa! Que profundidade analítica! Que nada!… Pois, se me permitem um aparte filosófico, vos acrescento que até Platão sabia ser preferível um simples carpinteiro, que faça mesas úteis, ao poeta, que fabrica metáforas vazias. E cá entre nós, sejam os marinheiros de silício ou de carbono, estes sempre precisam de ventos e bússolas, ou equivalentes, e, acima de tudo, juízo. Já o Ralha, por outro lado, navega em mares de retórica vazia, onde o único farol é a adulação descabida.
Mas há mais. Ralha vendeu o bom senso, e meteu o processo das vacinas a par de um suposto combate aos narcotraficantes. Ou seja, Gouveia e Melo, depois de derrotar o vírus, tornou-se o terror dos cartéis. Seria a personagem perfeita para um filme de acção de segunda categoria. Imaginemos o título: “Almirante Implacável: Do Cabo das Tormentas ao Cabo do Medo”. Dirigido, claro, pelo próprio Leonardo Ralha, com uma trilha sonora que inclui hinos patrióticos e baladas épicas.
Mas há algo ainda mais delicioso neste escrito: o tom messiânico. Ralha, como os pregadores medievais, já não escreve apenas para informar; escreve para converter. O Almirante não é apenas bom; é perfeito. Não é apenas competente; é infalível. Não é apenas humano; é inumano. Isso faz-me lembrar a história da Carochinha, que, em busca de um noivo, enfeitava-se com moedas e promessas até atrair o rato para a panela de feijoada. Assim também vai o jornalismo, caro leitor, transformando os seus protagonistas em deuses, esperando que o público salte de cabeça no caldeirão da credulidade.
Mas no fundo, embora talvez apenas nas Fossas das Marianas, Ralha tem razão neste obelisco ao vazio inflado, onde veste ao seu Dionísio um fato épico por tarefas triviais: Gouveia e Melo é mesmo uma figura única. E ele, Ralha, também. Afinal, só um almirante de tão sublime mediocridade, cuja maior proeza parece ser a capacidade de respirar e existir em simultâneo, poderia ser catapultado a tamanhas esferas celestiais pelas mãos febris de um jornalista tão delirante que o ordinário ele transforma em prodígio, a monotonia em epopeia e o corriqueiro em cântico de louvor digno de um Homero embriagado a vinho carrascão.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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