“e sentei-me, feliz, na irresponsabilidade da vitória”
Ernest Hemingway
GREEN HILLS OF AFRICA
Como é que se ganha uma campanha eleitoral num país democrático, com todas as condições para estar bem informado, quando se é um acabado imbecil e não se tem uma única ideia que beneficie as populações, dentro e fora das fronteiras? Alguns factores são bem conhecidos. Por exemplo, existir uma democracia significa, cada vez menos, que exista também qualquer espécie de meritocracia. E ter-se acesso à informação também não implica, cada vez menos, que se faça uso desse acesso – por exemplo, quando cheguei aos Estados Unidos em 2014, em pleno período Obama, já todos os Professores andavam muito preocupados porque os seus alunos iam buscar a sua informação aos late night shows, aos monólogos dos comedians, e aos posts apócrifos sempre perigosos da internet. Agora juntem à mistura um candidato que não tenha qualquer espécie de vergonha na cara e diga em público tudo o que lhe passe pela cabeça e soe bem, como faz Donald Trump. É assim que a mistura se torna explosiva, porque Trump está a servir a este povo maioritariamente ignorante fatias de bolo que podem não querer dizer nada mas sabem muito bem e são boas de cantar ao espelho enquanto se faz a barba.
Foi por via desta estratégia que, num fórum perto do fim da campanha e destinado especificamente às mulheres, para sacudir as acusações de ter apoiado o Supreme Court[1] a roubar às mulheres os seus direitos reprodutivos, Trump se saiu com a declaração bombástica,
“QUEM? EU? MAS EU QUERO QUE NASÇAM IMENSAS CRIANÇAS AMERICANAS, SEJA POR QUE VIA FOR! EU SOU O PAI DA FERTILIZAÇÃO IN VITRO!”
Os seus opositores, finos e educados, só conseguiram dizer que aquela declaração era “muito bizarra”. And the band played on[2].
Com as suas nomeações sucessivas de cristãos fundamentalistas para o Supreme Court, Trump já tinha feito estragos extremamente sérios nos direitos das mulheres sobre os seus corpos, com o regresso da proibição do aborto logo à cabeça. Esta nova proibição foi feita de forma extremamente pérfida, como se viu do Texas – foi absoluta e sem apelo nos condados interiores, aberta a casos devidamente fundamentadas aprovados em tribunal nos condados periféricos (mas era preciso a família ter fundos para pagar a um bom advogado, e isso é caro), e sem legislação nos condados em que a fronteira intersecta estados vizinhos em que o aborto é legal, sendo que, mesmo assim, é preciso guiar até à clínica mais próxima, que tem que estar a uma distância de mais de cem milhas da fonteira com o estado que tem como tabuleta distintiva DON’T MESS WITH TEXAS[3].
Ou seja.
No Texas, os pobres não têm qualquer possibilidade de fazer um aborto, embora o mesmíssimo procedimento seja muito fácil de fazer para o ricos. Lembram-se de séries como DALLAS, ou DINASTY? Em termos sociológicos, não havia ali qualquer exagero. Os ricos do Texas são incrivelmente ricos. Como tal, nada no seu quotidiano os distingue dos ricos de Bollywood. ou de Manila, ou de qualquer outro apeadeiro do Terceiro Mundo, porque todos os ricos precisam do mesmo. Precisam de um nevoeiro sempre activo de milhares pobres para que eles possam viver como ricos e ganhar como ricos. Toda a gente sabe disto. Donald Trump pode não saber muita coisa[4], mas isto sabe muito bem porque é a sua prática de uma vida inteira. A situação no Texas, que alastra perigosamente para outros estados, foi obra das suas nomeações para o Supreme Court, que agora só se revertem se morrer um dos juízes ou se algum for expulso devido a qualquer terrível escandaleira[5].
Ora acontece que, em mais um passo contra a liberdade de escolha das mulheres, mais recentemente o Supeme Court decidiu declarar que os embriões já são crianças[6]. Sendo assim, o seu processo de congelamento, destinado a permitir às mulheres que querem engravidar por Fertilização in vitro (FIV) e não têm sorte na primeira tentativa[7] possam repetir o ciclo sem voltar a passar pela colheita e sem gastarem mais dinheiro, é uma infâmia aos olhos de Deus, uma vergonha aos olhos dos homens, e portanto, sem dúvida, uma técnica que deve ser imediatamente proibida em todo o país.
Os ginecologistas com clínicas de FIV, já assustados pelo resultado potencial deste tipo de pregações, começam logo a não congelar mais embriões excedentários[8], o que faz com que as FIVs, já de si muito caras, se tornem ainda mais caras. É que, agora, se a primeira tentativa não funcionar, é preciso repetir todo o processo que vai até à formação dos embriões — estimulação dos ovários com quinze dias de duas injeções por dia, paragem do ciclo com uma injecção muito dolorosa que pode calhar às horas mais imprevisíveis da noite ou do dia, recolha dos ovos ainda não fertilizados com uma pequena cirurgia, fertilização destes ovos com os espermatozoides do parceiro, incubação conjunta de ambos por dois dias, e esperar que se formem embriões de aspecto saudável. Congelar os embriões supranumerários resultantes da primeira FIV de qualquer casal cobriria tudo até aqui, e há que ver que esta primeira fase é, de longe, a mais complexa e delicada de todas[9], sobretudo para as mulheres. Com embriões congelados só seria preciso fazer uma nova pequena cirurgia para a sua introdução no colo do útero e, durante mais quinze dias, rezar para que tudo corra bem.
Ter embriões congelados é tanto mais importante para quem faz FIVs quanto se sabe que as possibilidades de insucesso podem ser várias, até que, por fim, haja (ou não) sucesso.
De maneira que, mesmo entre os círculos cristãos mais empedernidos, a notícia de que o Supreme Court se preparava para cometer a iliteracia científica de comparar embriões a crianças para proibir o congelamento da bolinha indiferenciada de células dos primeiros, e com ele prejudicar toda a Reprodução Medicamente Assistida, estoirou como uma bomba e pôs toda a gente de braço no ar num protesto conjunto. Sobretudo as mulheres. E foi isto que levou os figurões que gerem as Relações Públicas da FOX a organizar o Forum das Mulheres, em que Donald Trump teria a oportunidade de se fazer ouvir sobre todo isto.
Mas francamente, o que é que Trump sabe sobre a FIV?
Boa pergunta.
À qual o homem tratou de responder imediatamente ele próprio, no seu próprio e colorido vocabulário.
“Antes de vir para aqui, falei com a nossa Conselheira dos Assuntos Científicos, uma mulher linda, linda, devo dizer-vos, realmente uma mulher linda. Pedi-lhe que me explicasse o que era a fertilização in vitro. Ela começou a falar, e eu não precisei de mais de dois minutos. Percebi tudo. Tudo! Claro que sou a favor da fertilização in vitro. EU SOU O PAI DA FERTILIZAÇÃO IN VITRO!”
Voaram bonés, bandeiras, t-shirts da campanha. A sala veio abaixo com aplausos. Mudava-se de canal a correr e todos estavam já a citar aquela maldita frase. Nos dias que se seguiram, Trump teve dezenas de oportunidades de repeti-la, sem que ninguém lhe perguntasse o que é que é que ele estava realmente a dizer. E, como os democratas ficaram tão desconcertados que em vez de exporem a falácia a varreram para debaixo de tapete, a águia americana voou a pique, como um grifo dourado, rumo ao País das Maravilhas onde – de facto – cada um pode dizer o que quiser.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Tribunal Supremo, que vigia as leis de todo o País.
[2] Literalmente “e a banda continuou a tocar”. Utiliza-se quando, apesar de vários protestos, as coisas ficam como estavam. O docudrama em que toda a comunidade inteligente, médica, científica, autárquica, e de grandes pesos-pesados do pensamento tenta alertar o presidente Reagan para as formas de transmissão da SIDA que seria para mim fáceis de evitar, e não recebe qualquer resposta da Casa Branca, chama-se, exatamente, AND THE BAND PLAYED ON.
[3] “Não se metam com o Texas”. As tabuletas de entrada nos outros 49 estados dizem, SEMPRE, “Bem-vindos ao South Carolina”, “Bem-vindos a New York”, e assim.
[4] Por exemplo, CLARO QUE NÃO SABE COMO É QUE VAI ACABAR COM A GUERRA NA UCRÂNIA, e deve ser o único homem em todo o Ocidente que ainda não percebeu que Putin pode estar interessado em comer-lhe muitas papas na cabeça – mas NÃO ESTÁ MINIMAMENTE INTERESSADO em ser seu amigo.
[5] Bem, mas num país onde um homem com 36 processos-crime em cima ganha as eleições…
[6] Não são, não. São uma bolinha oca de células ainda não diferenciadas. Mas lá iremos.
[7] Acontece muito mais vezes do que correr logo tudo bem.
[8] Os que sobraram da primeira inseminação. Podem ser muitos, e dar para várias tentativas. Vejam o meu caso. Tive 26 ovos, que deram 18 lindos embriões. Mas os ginecologistas só transferiam três, portanto sobraram 15. Se pudéssemos congelar embriões nessa altura, eu ficava ali com material para mais cinco FIVs…
[9] Sou boa menina. Não gosto de incomodar ninguém. Estou a poupar-vos educadamente ao termo “dolorosa”, mas claro que ele também conta. Muito. Com grande probabilidade, bastante mais do que o dinheiro.
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