correio mercantil

Pedro Nuno, o rapaz dos losangos

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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima sexta edição, o piparote de Brás Cubas vai para o pedantismo de Pedro Nuno Santos, secretário-geral do Partido Socialista, por querer imortalizar, através de uma fotografia, o seu encontro juvenil com Mário Soares.


Concedei-me, neste meu mundo, que há-de ser também vosso, minhas belas leitoras e meus ilustres leitores, o prazer de vos conduzir por estas linhas como quem desce um rio de águas mansas, mas traiçoeiras, onde o reflexo das coisas é tanto a verdade quanto a mentira.

A Humanidade, antes do advento do daguerreótipo e, mais tarde, da fotografia, era como uma criança num bosque: livre para se imaginar heróica, nobre, reluzente e eternamente bela, sem jamais confrontar-se com o espelho implacável da realidade. Mas eis que o progresso, esse artesão do inevitável, nos legou uma arma terrível: a eternização da imagem. Com isso, os nossos grandes feitos passaram a ter um companhia desconfortável: as nossas tristes figuras.

Natureza Morta, daguerreótipo de Louis-Jacques-Mandé Daguerre, 1837, na colecção da Société Française de Photographie.

Sim, porque onde antes a memória se vestia em sedas e ouro, adornada pelas lantejoulas da imaginação e o pincel do artista, agora jaz a cruel objectividade da imagem. Tomemos, por exemplo, Napoleão Bonaparte. Nos retratos pintados, ele surge como um semideus guerreiro, alado pela glória. Porém, as primeiras experiências fotográficas captaram os seus seguidores em posições um tanto desajeitadas. Pobres soldados, com botas enlameadas e bigodes mal aparados, pareciam mais figurantes de uma peça provinciana do que o exército que aterrorizava a Europa. Que diria o próprio Napoleão se pudesse ver a posteridade estampar, lado a lado, suas vitórias em Austerlitz e uma fotografia de um batalhão de barrigas salientes e espingardas tortas?

E Luís II da Baviera, cognominado ‘Rei Louco’. Nos seus retratos pintados, ele surge em trajes de sonhador melancólico, rodeado por castelos de contos de fadas, símbolo de uma alma sensível e refinada. Porém, a fotografia fez questão de o registrar em caminhadas solitárias, envergando um casaco demasiado grande, o calçado maculado pelo ímpeto das lamas e uma expressão que não evocava sonho algum, mas antes um sujeito perdido a meio de uma caçada.

Mais precavido foi o meu criador, Machado de Assis, que nunca foi de muitas fotografias, para que os vindouros sempre o recordassem com ar sério, taciturno, os óculos redondos conferindo-lhe mais uma aparência burocrática do que a de um gênio literário. Não há grande pompa nem pose – apenas um homem discreto, talvez desconfortável com a ideia de que a sua imagem pudesse perdurar mais do que os seus textos. Enfim, até eu, nas minhas memórias, reflecti sobre como a posteridade nos transforma, seja para o bem ou para o mal, dependendo de quem conta a história, e como a quer contar. E a vossa história é agora contada, cada vez mais, pelas fotografias, digitais agora, tiradas a torto e a direito. E, embora haja sempre a ideia de que a imagem capturada pela lente corresponda mais ao que desejamos ser do que àquilo que realmente somos, muitas vezes glorifica menos e humilha mais, imortalizando não os feitos, mas os defeitos.

Fotografias de Machado de Assis.

Na verdade, a fotografia, essa amante traiçoeira, conspira em demasia contra as ilusões construídas em denodado esforço. Os heróis tornam-se trapalhões, os visionários ganham ares de desastrados, e todos, inevitavelmente, ficam à mercê do riso incontrolável da posteridade.

Uma questão filosófica que os antigos gregos nunca poderiam ter previsto: a verdade da imagem mostra-se mais destrutiva do que a mentira da memória. Porque, convenhamos, havia algo de nobre em recordar uma batalha como Homero fazia, com deuses, trovões e sangue glorioso. Hoje, porém, somos condenados a revisitar os feitos como meros mortais suados e desengonçados, capturados na luz fria e impiedosa do real.

Mas não vos enganeis, minhas caríssimas leitoras e meus não menos caros leitores. O verdadeiro espectáculo sempre estará nas figuras menores, nos protagonistas dos episódios mesquinhos que a fotografia fez questão de iluminar – e de os iludir na grandeza.

E na semana passada, a pretexto do centenário do nascimento de Mário Soares, um destes protagonistas nos veio relembrar um seu pretenso feito memorável, quando há umas duas dezenas de anos, imberbe, um milionésimo de segundo o eternizou ao lado do estadista português, algo que, acredito, tem guardado como uma relíquia mais preciosa do que a Vera Crux ou o Sanctum Praeputium.

Pedro Nuno Santos e Mário Soares, circa 2000.

Confesso que há nesta fotografia um microcosmo de tudo o que a política moderna tem de fascinante e risível. De um lado, à direita, o bonacheirão Mário Soares, um dos pais da democracia portuguesa, olhar terno e condescendente, talvez a cogitar sobre o fado inexorável da política portuguesa, como quem contempla uma tapeçaria já concluída, sabendo que os fios da sua obra política estão bem tecidos, ainda que por vezes desfiados pelos caprichos alheios. Eis o semblante de um estadista que já viu tudo e mais alguma coisa – e que, naquele momento específico, talvez lamentasse não estar numa esplanada de Paris com um bom vinho. Soares, o homem que enfrentou Salazar e Caetano, que devolveu ao povo o poder, observa um jovem com a bonomia irónica de quem sabe que os grandes não se fabricam nas juventudes partidárias. Há naquele olhar um quê de Voltaire, um eco de Talleyrand, uma chispa de Willy Brandt, como se pensasse: “Este caramelo, tão cheio de si, acredita que a História o espera. Mas mal sabe ele que a História não tem paciência para jovens vaidosos com camisolas horríveis e ideias vagas.”

À esquerda, por sua vez, o ‘caramelo’ é o jovem Pedro Nuno Santos, empertigado, de ar compenetrado e gesto inflado, envolto numa camisola de losangos que faria corar um fabricante de tapeçarias do século XVIII. Estaria a pensar, por certo, até por agora revelar a fotografia num artigo evocativo a Mário Soares, ter esculpido ali o seu nome no mármore da História. Pobre ingénuo: pela fotografia emana uma retórica que não passa de gesso. Ali se assume como um Robespierre antes do terror, cheio de convicções, mas sem a argúcia para compreender que os grandes não se fazem apenas de discursos inflamados.

Aliás, esta camisola merece um parágrafo à parte, porquanto não é somente uma peça de guarda-roupa: é uma metáfora em estado puro. Os losangos, com as suas cores berrantes e desconexas, representam perfeitamente a carreira de Pedro Nuno Santos. Uma colecção de peças encaixadas às pressas, sem unidade nem estética, mas que, de longe, pode parecer algo decente. Se ao menos tivesse escolhido algo mais clássico – um casaco escuro, uma camisa discreta, já nem falo em gravata –, poderia ter disfarçado o vazio das suas palavras. Mas não, ele optou por um traje que grita tão alto quanto os seus discursos, como quem quer compensar a falta de substância com a excentricidade visual.

Pedro Nuno corporiza, em todo o esplendor, o protótipo de uma escola bem conhecida da História: a dos políticos que fogem da adversidade e se encostam aos gigantes na esperança de que, por osmose ou reflexo, o brilho dos outros os ilumine. É o mesmo fenómeno que se viu em Carlos de Bourbon, o duque que orbitava Napoleão sem nunca conquistar nada próprio; ou Dutra, o presidente brasileiro que viveu da sombra de Vargas sem criar luz própria; ou mesmo Cesare Balbo, um teórico que apenas planeou quando Garibaldi agiu.

Pedro Nuno Santos, circa 2024.

O problema não é apenas por causa de quem vive no reflexo dos gigantes, mas de quem nunca ousa desafiar a luz por conta própria. A mediana vulgaridade moderna não é só a do imitador, mas também a do conformista — aquele que aceita a inércia como caminho, perpetuando discursos sem obras, como Pedro Nuno Santos, que se confunde entre a glória alheia e os próprios losangos berrantes.

E, nesse aspecto, numa vintena de anos, Pedro Nuno não me tem desiludido, seguindo o padrão dos jovens do início do século que usavam camisolas de losangos quando cresceram: fez nada. Ou vá, quase nada, porque agora é o secretário-geral do Partido Socialista e foi ministro das Obras Públicas, um cargo que, pelo nome, sugeria acção, mas que, nas suas mãos, deu para pontapear discursos em vez de construir algo digno de uma cabeça.

Mas por mais que o pintemos, ou retratemos, ele comporta-se, na verdade, como um discípulo tardio de Nero, um incendiário da retórica, mas sem o talento de erguer algo das cinzas. Agora, na oposição, ensaia o habitual tirocínio para voos mais altos, ou, quem sabe, para a queda definitiva – aquela que a sua camisola já prognosticava com precisão quase bíblica.

Minhas digníssimas leitoras e meus não menos dignos leitores, finalizo com uma refexão de filosofia política. Há algo profundamente intrigante na perpetuação dos medíocres no mundo partidário, um fenómeno que transcende tempos e geografias. Não é apenas um produto da política, mas de um sistema onde a aparência, o discurso vazio e a gestão da imagem muitas vezes substituem a verdadeira substância. Os senadores romanos que preenchiam o vazio deixado por César, os conselheiros de Luís XVI que discutiam reformas enquanto o povo erguia guilhotinas, ou os líderes modernos que parecem mais preocupados em acumular ‘likes’ do que em construir legados – todos são sintomáticos de um mesmo padrão: o poder é frequentemente ocupado não pelos melhores, mas pelos que melhor sabem ocupá-lo.

‘Anão esperando a luz do gigante’, de autor desconhecido exposto em lado nenhum.

E no mundo contemporâneo, onde a política se tornou uma extensão do espectáculo mediático, este padrão não apenas persiste como se amplifica. Redes sociais e campanhas de marketing criam a ilusão de grandeza, e figuras vazias ascendem pela habilidade de parecer mais do que são. Assim, o fenómeno que outrora se limitava a salões de corte e câmaras legislativas, encontra agora fértil terreno num palco global. Pedro Nuno Santos, tal como muitos outros, parece moldado por esta nova dinâmica: muito barulho, muita pose, mas pouco conteúdo. Se os grandes constroem legados e os medíocres vivem deles, Pedro Nuno ainda nem escolheu o que quer ser.

Esta é talvez a verdadeira tragédia do nosso tempo: ao contrário dos grandes líderes do passado, cujas falhas eram frequentemente compensadas por feitos marcantes, os políticos modernos deixam-nos apenas a memória das suas ambições desmedidas e das suas promessas não cumpridas. A mediocridade, assim, não é apenas um estado passageiro – é o destino inevitável de um sistema que confunde imagem com substância, projecção com liderança e ruído com impacto.

Pedro Nuno Santos, como muitos outros, é o epítome deste espírito: muito barulho, muita fanfarra, muito gesto, muita bravata, muito desassossego, muita prosápia, muito nada. Ele é como um Colombo sem caravelas, um Einstein sem fórmulas, um Garibaldi sem revolução, um Marx sem ideais, um político sem obra – salvo a obra de se manter na ribalta.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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