ENTREVISTA COM MARTIN KULLDORFF, EPIDEMIOLOGISTA E BIOESTATÍSTICO

‘É preciso voltar à tomada de decisões baseadas na evidência’

por Elisabete Tavares // Dezembro 14, 2024


Categoria: Entrevista P1

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Martin Kulldorff foi professor de Medicina na Universidade de Harvard durante duas décadas. O trabalho desenvolvido pelo proeminente epidemiologista e bioestatístico sueco é amplamente reconhecido. Membro da comissão da norte-americana Food and Drug Administration (FDA). dedicada à segurança de medicamentos e gestão de risco, os seus modelos de software são muito utilizados, nomeadamente pelo CDC, nos Estados Unidos, para a rápida detecção de surtos de doenças infecciosas e de reacções adversas graves a vacinas. Durante a pandemia da covid-19 foi uma das vozes a favor de uma estratégia que salvasse vidas sem deixar danos colaterais graves na saúde pública e na sociedade. Foi um dos três reputados professores que escreveram a histórica Declaração de Great Barrington. Mas suas posições valeram-lhe a censura, insultos e difamação. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, Kulldorff fala sobre as lições da pandemia e a sua esperança de que, na Ciência e nas políticas de saúde pública, se vai voltar aos factos e às decisões baseadas na evidência científica. Também revelou que prepara o lançamento de uma publicação científica na qual os cientistas poderão publicar os seus estudos e artigos, com transparência, criando o espaço para o debate.



Os ventos são de mudança e a ‘idade das trevas’ da censura e perseguição de cientistas, que regressou com a pandemia de covid-19, parece estar moribunda e cada vez mais perto do fim. Que o diga Martin Kulldorff, proeminente epidemiologista e bioestatístico, que foi professor de medicina na Universidade de Harvard durante duas décadas, mas que se viu a ser alvo de censura e difamação por ter feito o seu trabalho e defendido a medicina baseada na evidência.

Nesta entrevista ao PÁGINA UM, realizada por videochamada, num Sábado, em vésperas do Dia de Acção de Graças, Kulldorff afirmou que não se arrepende de ter sido uma voz em defesa da Ciência, contra os dogmas e o falso consenso promovido pelas autoridades nos Estados Unidos, durante a covid-19. “Percebi, logo no início, que a minha carreira estava em jogo por estar a falar. Mas como posso ser cientista se não falar?” Contudo, sendo um epidemiologista, Kulldorff viu-se forçado a falar. “Não tive escolha, senão não conseguia olhar os meus filhos nos olhos”, afirmou.

Martin Kulldorff é um proeminente epidemiologista e bioestatístico sueco. Foi professor de medicina na Universidade de Harvard durante duas décadas e fundou a Academy of Science and Freedom. É consultor da FDA como membro da comissão ‘Drug Safety and Risk Management Advisory Commitee’. Os programas que desenvolveu para detecção de surtos de doenças infecciosas (SaTScan) e para detectar reacções adversas graves a medicamentos e vacinas (TreeScan) são amplamente usados, nomeadamente pelo CDC (Centers for Disease Control and Prevention).

Martin Kulldorff / Foto: D.R.

Nos últimos anos, ficou também conhecido por ter sido um dos três reputados professores de respeitadas universidades que escreveram a Declaração de Great Barrington. Escrita em Outubro de 2020, em plena pandemia, o texto defendia uma resposta à covid-19 centrada na protecção das pessoas mais velhas e vulneráveis e alertava que os confinamentos e medidas mais restritivas iriam causar danos graves em termos de saúde pública, no curto e no longo prazo, prejudicando, sobretudo, a classe trabalhadora e as crianças e jovens. Além de Kulldorff, escreveram a Declaração o professor Jay Bhattacharya, da Universidade de Stanford − que foi nomeado para director do National Institutes of Health (NIH) na nova administração Trump −, e a professora Sunetra Gupta, da Universidade de Oxford. O documento criado a 4 de Outubro de 2020 conta com 940 mil assinaturas.

Em Março deste ano, e após duas décadas como professor de medicina na Universidade de Harvard, Kulldorff anunciou que tinha sido dispensado, numa confirmação do estado dogmático e da ‘idade das trevas’ que atingiu o mundo científico e académico, pautado pelo ‘cancelamento’, censura e até perseguição de cientistas e professores devido às suas posições distintas, num mundo que ficou fechado ao debate. Kulldorff escreveu, nessa altura, um artigo, que foi publicado também em português no PÁGINA UM com o título ‘Universidade de Harvard espezinha a verdade‘.

Kulldorff salientou que, com a pandemia, se aprendeu que “temos de seguir os princípios da saúde pública e da medicina baseada na evidência”, o que não aconteceu na covid-19, com medidas que deixaram um rasto de danos colaterais gigantescos na saúde pública, na sociedade e na economia. Outra lição da pandemia é de que “nunca devemos permitir a censura, o ‘bullying’ ou a calúnia”, que foi uma realidade para muitos cientistas e médicos de topo desde 2020. (Em Portugal, vale a pena recordar que comentadores nas TVs, políticos e jornalistas insultavam – e ainda hoje insultam – os defensores de medidas baseadas na evidência científica, classificando-os de ‘negacionistas’ ou ridicularizando-os com nomes como ‘chalupas’.)

Nesta entrevista, Kulldorff também revelou que vai lançar, nos próximos meses, uma publicação científica através da qual os cientistas podem divulgar os seus estudos e artigos científicos, de uma forma mais transparente. Recorde-se que várias das principais revistas de natureza científica falharam na pandemia, ao cederem a políticas enviesadas e censurando cientistas, que se viram em dificuldades para conseguir publicar o resultados dos seus trabalhos de investigação. Enquanto isso, alguns cientistas próximos da ‘narrativa’ oficial conseguiam publicar em tempo recorde, mesmo se o seu trabalho estivesse rodeado de muitas dúvidas. “Precisamos de ter uma forma diferente de publicar resultados científicos”, disse Kulldorff, frisando que é crucial que haja debate científico livre e aberto.

O epidemiologista sublinhou que, para que se possa restaurar a confiança na Ciência e nas universidades, “o primeiro passo é restaurar a integridade da comunidade científica”. “Penso que os cientistas de base vão conseguir dar a volta, mas o fundamental é que haja uma nova liderança”, frisou, destacando que a nomeação de Martin (Marty) Makary para liderar a FDA é um sinal de esperança. Kulldorff também manifestou a esperança de que Bhattacharya fosse nomeado director do NIH, o que se confirmou já após a entrevista.

Segue a transcrição em português da entrevista feita em inglês.

Foi professor em Harvard, na escola de Medicina de Harvard, durante duas décadas, até Março passado. E em que está a trabalhar agora? Qual é o seu dia-a-dia?

Trabalho como consultor, na detecção de surtos de doenças infeciosas. Trabalho com vacinas. Faço um trabalho semelhante ao que fazia antes, mas não fazendo parte da Escola de Medicina de Harvard.

E desenvolveu um software importante, uma ferramenta de recolha de dados. Um software que permite a detecção de surtos em hospitais, por exemplo, e em termos geográficos, e também software na área de monitorização de segurança de vacinas.

Sim. Criei dois softwares: SaTScan, que é geográfico, para detectar rapidamente surtos de doenças infeciosas, que podem ser a salmonela ou a doença do legionário. Também criei um software que se chama TreeScan, que detecta reações adversas inesperadas a medicamentos ou vacinas, porque, uma vez que o medicamento ou a vacina é aprovado, sabemos em última análise que está a funcionar, mas é impossível saber se há reacções adversas raras graves. Temos de fazer essa vigilância, depois de [as vacinas ou medicamentos] terem sido aprovados pela FDA, ou a EMA [European Medicines Agency], na Europa.

Os autores da Declaração de Great Barrington: Martin Kulldorff (Harvard), Sunetra Gupta (Oxford) e Jay Bhattacharya (Stanford). A Declaração dos três professores e cientistas detende uma resposta à pandemia de covid-19 focada nas pessoas mais vulneráveis e alerta para os efeitos devastadores que os confinamentos e restrições duras têm na saúde pública a curto e longo prazo, afectando desproporcionalmente a classe trabalhadora e as crianças e os jovens. Os três reputados professores acabaram por ser alvo de campanhas de difamação e perseguição pelas autoridades de Saúde nos Estados Unidos e os media ‘mainstream’. / Foto: D.R.

E o professor também trabalha com a FDA e um dos seus softwares é usado pelo CDC, na detecção de reacções adversas a vacinas.

Sim. Esses dois métodos são amplamente utilizados pelo CDC e a mineração de dados também é usada pela FDA. E também são usados por departamentos de saúde estaduais e municipais.

Muitos não sabem o trabalho que é necessário para detectar não só surtos de doenças, mas para monitorizar as reacções adversas. É necessário muito trabalho envolvendo software e mineração de dados.

Sim. Por exemplo, na detecção de novos casos de salmonela, por exemplo: iremos querer saber se, de repente, há um pico de doença num determinado bairro, com mais casos do que seria o esperado. Por acaso, pode haver a indicação de que talvez um restaurante esteja a servir algum alimento contaminado ou que alguma mercearia está a vender frango que foi contaminado. Então, vai querer saber-se o mais rápido possível. Porque, mesmo se for detectado mais rápido, isso pode salvar pessoas de ficarem doentes e, às vezes, de morrerem. É importante poder ter este tipo de sistema automatizado e rápido para detectar rapidamente quando há esse tipo de problemas.

Sendo um especialista nestas áreas, ficou surpreendido com as políticas que foram implementadas na pandemia de covid-19? O professor foi um dos três autores da Declaração de Great Barrington, que defende uma abordagem focada para se salvar vidas. Esperava o tipo de comportamento que as autoridades adoptaram em resposta à covid-19?

Não, eu fiquei extremamente surpreendido. Porque a forma como lidámos com a covid-19 ignorou os princípios fundamentais da saúde pública, bem como a medicina baseada na evidência. Ficou claro, logo no início de 2020, que qualquer pessoa poderia ser infectada com a covid-19. E o risco dependia da idade. As pessoas mais velhas tinham um risco de morrer 1000 vezes maior do que as pessoas mais jovens. Portanto, a única coisa que havia a fazer era proteger as pessoas mais velhas, permitindo que as escolas permanecessem abertas e permitindo que os jovens adultos prosseguissem com as suas vidas, perto do normal. E um dos princípios da saúde pública é que não se pode estar focado em apenas uma doença, tentando eliminar a covid-19, porque causaria enormes danos naturais colaterais em outras áreas da saúde pública, como no caso das doenças cardiovasculares ou diabetes ou pessoas com cancro. Na verdade, no caso do cancro, estava a diminuir, mas não porque as pessoas não estavam a ter cancro, mas porque não estava a ser detectado. Se não é detectado, não pode ser tratado. Vamos ter de viver com esse tipo de coisas. Há pessoas que vão morrer mais cedo porque o seu cancro não foi detectado. E, claro, houve problemas com a saúde mental e a educação, com o encerramento das escolas. Houve enormes danos colaterais de saúde pública devido a estas medidas de resposta à covid-19, porque as autoridades estavam unicamente focadas na covid-19 e ignoraram tudo o resto. E isso não se faz na saúde pública.

Nasceu na Suécia, é um cientista sueco. Na Suécia, a abordagem foi completamente diferente. Os números relativos ao excesso de mortalidade são muito melhores do que no resto do mundo, nomeadamente face aos de Portugal, onde os números de excesso de mortalidade são enormes. Porque é que a maioria dos países ocidentais seguiu uma abordagem e a Suécia seguiu uma abordagem diferente?

Não sei. Acho surpreendente que a Suécia tenha sido o único país a adotar uma abordagem baseada na evidência, durante a epidemia, e entre os principais países ocidentais. Alguns outros locais também seguiram a mesma estratégia [da Suécia], como as Ilhas Faroé, por exemplo. Mas não sei porquê. É muito surpreendente. O que aconteceu na Suécia é que houve, realmente, um debate robusto sobre os prós e contras das diferentes abordagens. Os grandes jornais tinham pessoas a debater as duas abordagens, a abordagem sueca de protecção focada, bem como a abordagem de confinamentos severos em outros países. Penso que foi algo bom que houve na Suécia. Nos Estados Unidos, esse debate foi esmagado. Os que tentaram falar sobre a protecção focada, em vez de se fazer confinamentos, foram caluniados ou ridicularizados. Demorou muito, muito tempo até conseguirmos chegar ao público e informar o público de que não existia um consenso científico para esses confinamentos.

Não apenas na comunidade científica, mas também nas universidades, existiu uma enorme onda de censura nos Estados Unidos e também em outros países. Ficou surpreendido com isso? Para mim, nunca pensei vir a ter de enfrentar a censura. Mas enfrentámos censura. Por que é que isso aconteceu?

Sim, fui censurado pelas redes sociais por fazer afirmações cientificamente factuais sobre a pandemia. Fui censurado pelo Twitter, pelo Facebook, YouTube, LinkedIn, Tiktok. E eu fico chocado. Se me tivessem dito que isso iria acontecer cinco anos antes, eu não teria acreditado. Pensava que a liberdade de expressão estava enraizada na cultura ocidental, na Europa Ocidental e na América do Norte. Mas foi como se estivéssemos na União Soviética ou num país fascista e não em países do Ocidente. Fiquei completamente chocado. Fui censurado, a mando do governo norte-americano, bem como muitos outros cientistas e indivíduos.

E, recentemente, o Professor Jay Bhattasharya escreveu no X sobre o facto de a Universidade de Stanford ter votado para manter a censura aplicada ao professor Scott Atlas. Não têm a consciência pesada e ainda pensam que a censura foi acertada. Poderíamos esperar que, de alguma forma, universidades como Harvard ou Stanford reconhecessem que erraram, mas parecem não ter uma consciência culpada.

Sim. E, na verdade, há quatro anos, quando escrevi a Declaração de Great Barrington com o Dr. Bhattacharya, de Stanford, e a Dra. Sunetra Gupta, de Oxford, tivemos um debate. Eu disse: com algumas excepções, iria ser muito difícil convencer os políticos e os jornalistas ou os principais cientistas, mas conseguiremos convencer o público. E depois, como o público é que estava a ser afectado por todos os danos colaterais, acabariam por convencer os políticos e, eventualmente, os media. Os cientistas de base foram sempre muito razoáveis, mas foi a liderança científica que fez de tudo para houvesse esses confinamentos. Eu disse-o há quatro anos e ainda penso que nunca, nunca os vamos convencer, nunca seremos capazes. Nunca irão admitir que estavam errados sobre a pandemia. Há um ditado na Ciência que diz: A Ciência prossegue um funeral de cada vez. A próxima geração na Ciência vai perceber o enorme erro que isto foi, mas penso que a liderança atual, como [Anthony] Fauci ou [Francis] Collins ou [Ralph] Baric ou vários professores universitários ou editores dos grandes jornais científicos, nunca vão admitir que erraram totalmente e que impuseram pseudociência em vez da medicina baseada na evidência.

Mas acredita que ainda é possível salvar a credibilidade e a confiança na Ciência e nos académicos depois do que aconteceu? Acha que há esperança nisso?

Espero que sim, porque acho que é muito importante. Mas o primeiro passo, antes da confiança, o primeiro passo é restaurar a integridade da comunidade científica. Acho que os cientistas de base vão conseguir dar a volta. O fundamental é que haja nova liderança. Um sinal de esperança, por exemplo, foi ontem o Dr. Martin (Marty) Makary ter sido nomeado para ser o próximo diretor da Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos. É preciso voltar à tomada de decisões baseadas na evidência. E penso que o Dr. Makary vai fazer isso. Esse é um sinal de esperança. Há outras pessoas que fazem ouvir a sua voz. Ele foi uma das pessoas que falou e há muitos outros que o fizeram. Por isso, espero que estas pessoas possam chegar a alguns dos cargos de liderança da comunidade científica.

Kulldorff, Scott Atlas (radiologista e antigo professor na Universidade de Stanford) e Jay Bhattacharya. / Foto: D.R.

Mas mesmo essas pessoas, aquelas novas nomeações que a administração Trump tem vindo a fazer, por exemplo, aqui em Portugal, na comunicação social, estão sendo difamados. Nos media ‘mainstream‘ ainda continua a impor a narrativa daqueles que foram responsáveis por políticas que levaram ao enorme excesso de mortalidade e tudo o que mencionou.

Isso é verdade. Ontem houve um artigo na NBC News, nos Estados Unidos. Estavam a criticar o Dr. Martin Makary por ter acreditado na imunidade natural, que é algo que conhecemos desde 430 a.C. Então, criticar o nomeado para a FDA por acreditar na imunidade natural é como criticar o chefe da NASA por pensar que a Terra é redonda e não plana. Penso que é inacreditável que isso ainda esteja a acontecer. Simplesmente surpreendente.

Talvez demore algum tempo também para alguns jornalistas e outros de reconhecer que estavam enganados, e talvez tenham sofrido uma lavagem cerebral com toda a programação e a repetição de disparates que vimos durante a pandemia, nomeadamente, em relação à imunidade natural.

Sabe, isso já começou a acontecer, na verdade. Tive alguma interacção com alguns jornalistas que estão agora genuinamente interessados no que estivemos a dizer nos últimos quatro anos. Eles começam a perceber que o que acreditavam não era verdade.  Estão interessados em descobrir e aprender sobre a pandemia e epidemiologia e saúde pública. Penso que as coisas estão a mover-se nessa direcção, o que é esperançoso.

São óptimas notícias. Posso supor que está optimista que a administração Trump vá trazer, de algum modo, uma nova política de saúde pública, mais baseada na evidência e defendendo a Ciência e os académicos.

Estou com muita esperança na FDA. É uma excelente escolha, com o Dr. Martin Makary a ser o próximo director da FDA. Vamos ver quem é que é nomeado para o NIH. A minha esperança é que seja o Dr. Jay Bhattacharya, de Stanford, mas ainda não sabemos isso. [Entretanto, após a entrevista, Jay Bhattasharya foi nomeado para liderar o NIH].

Seria bom ver que essas áreas não estarão nas mãos nem de políticos nem de burocratas. Será bom que sejam lideradas por cientistas e especialistas nessas áreas.

Nos últimos anos, tem havido portas giratórias entre a FDA e a indústria farmacêutica. Por exemplo, o ex-diretor da FDA Scott Gottlieb entrou para o conselho de administração da Pfizer. Esse é apenas um dos muitos, muitos exemplos. Isto acontece tanto ao mais alto nível como ao nível intermédio. Pessoas que trabalham na FDA e depois vão para a indústria farmacêutica. Isso cria um problema porque se o papel da FDA é ser o ‘watchdog’ da indústria para se certificar de que os produtos têm a eficácia que afirmam ter e que não provocam reacções adversas e para remover [do mercado] qualquer medicamento ou vacina que seja perigoso. Espero que haja melhorias na FDA, agora.

Caso contrário, a FDA não é um ‘watchdog’, mas um ‘petdog’. Pensa que é necessário que haja nova legislação para acabar com estas portas giratórias?

Sim. O que for preciso para acabar com isso. Outra questão são as comissões consultivas da FDA. Muitos membros das comissões consultivas são também remunerados por farmacêuticas, como investigadores recebem bolsas de empresas da indústria farmacêutica. Não podem receber de empresas cujos produtos eles estejam a analisar. Isso é bom, mas penso que é melhor que as regas sejam mais amplas, para que os membros das comissões sejam, realmente, completamente independente das farmacêuticas.

Especialmente, quando existem grandes empresas, tanto na indústria farmacêutica como na indústria alimentar, e essas empresas poderiam estar a conceder financiamento para pesquisa em várias áreas. Penso que é difícil monitorizar tudo.

Sim, é verdade.

E, em relação, à covid-19, quais são as lições que se aprenderam para o futuro e as que talvez não tenham sido aprendidas até agora?

Bem, o quadro geral, é que temos de seguir os princípios da saúde pública e da medicina baseada na evidência. E nunca devemos permitir a censura, o ‘bullying’ ou a calúnia. É prejudicial. E, por exemplo, na Suécia havia um debate aberto. Havia pessoas a publicar artigos nos jornais a criticar a abordagem sueca. Apesar de discordar 100%, estou realmente muito feliz que escreveram, porque fizeram um serviço ao país e à saúde pública. Isso significou que houve um debate público, e isso foi muito importante, para que as pessoas pudessem realmente ouvir esses lados da história, e decidir o que era mais razoável. Outros países fizeram as coisas de forma diferente. Por isso, estou muito grato. E estou grato aos jornais que publicaram esses artigos com opinião oposta.

Pensando numa nova pandemia ou numa crise de saúde pública, o que pode ser feito agora para gerir melhor uma nova crise no futuro? Para que não caiamos nos mesmos erros que foram cometidos na covid-19 e também para proteger todos, se possível?

Sim, vamos ter outra pandemia, porque tivemos pandemias ao longo da história. Se vai ser daqui a cinco ou 50 anos, não sei. Mas haverá outra pandemia. E a minha esperança é que aprendamos com os erros. Penso que se houver uma nova pandemia dentro da próxima década ou duas, será impossível cometer o mesmo erro que se cometeu na covid-19 porque há muitas pessoas entre o público que se iriam opor a isso. Porque no início da covid-19, as pessoas estavam confusas. A maioria das pessoas não tinham estudado epidemiologia. Era natural para a maioria das pessoas acreditar em Anthony Fauci, apesar de ele estar errado e apesar de ter posto de lado os cientistas que sabiam mais sobre saúde pública. As pessoas confiaram nele. Mas não penso que as pessoas irão fazer isso da próxima vez. Tenho esperança que faremos melhor da próxima vez.

Em relação ao seu trabalho, tem ressentimento por ter sido demitido de Harvard? Foi justo? Trabalhou duas décadas e deu tanto. Como vê Harvard neste momento?

Não acho que foi justo. Acho que erraram e estão em pior situação por causa disso. Espero que se recomponham algum dia. Não fui o único que foi demitido. Espero que façam algo para recuperarem a sua integridade e a sua posição. Mas não vejo nenhuma evidência disso neste momento. Veremos o que acontece.

Em termos da sua vida e do seu trabalho, vê que está melhor agora? Talvez tenha algum tempo para se concentrar em algum projecto que queira fazer? Como se vê nos próximos anos?

Bem, eu sou uma pessoa de sorte no sentido de que eu sempre pareço encontrar problemas científicos interessantes para trabalhar. Em termos dos colegas com os quais colaboro, tenho uma boa relação com a maioria.  A maior parte deles pensa que eu estava certo sobre a pandemia. Não disseram nada porque não queriam ser atacados ou caluniados, o que eu entendo. Mas continuei a trabalhar com os meus antigos colegas e gosto disso. Estou a fazer algumas das mesmas coisas que fazia em Harvard, mas agora como consultor privado. E também tenho a oportunidade de estar a fundar uma nova revista científica sobre saúde pública, que esperamos que seja lançada nos próximos meses para combater os problemas que existem com as revistas científicas. Sabia que era algo problemático há muitas décadas, mas foi algo que veio mesmo à tona durante a pandemia. Precisamos de ter uma forma diferente de publicar resultados científicos.

Para que possa haver um escudo face a outros interesses, ideologias ou políticas.

Sim. Temos um processo de publicação mais aberto onde se podem publicar, onde os cientistas podem publicar coisas que eles acham que são importantes. E agora o sistema de revisão pelos pares [‘peer review’] é escondido, é secreto. Penso que deve aberto. Queremos publicar os ‘peer reviews’. Isso é uma forma de abrir o debate científico.

Isso seria muito importante. Arrepende-se de ter sido uma voz que falou sobre a pandemia e todas as políticas, a forma como as políticas erradas estavam a ser implementadas? Porque mencionou que alguns colegas não se manifestaram porque tinham medo de serem insultados e difamados.

De maneira nenhuma. Percebi logo no início que a minha carreira estava em jogo por estar a falar. Mas como posso ser cientista se não falar? Sou um epidemiologista de doenças infeciosas por isso tenho de falar sobre essas coisas. É a minha área. Se fosse um professor de química poderia ter ficado em silêncio. Mas eu não era. Por isso tinha de falar. Não tive escolha, senão não conseguia olhar os meus filhos nos olhos. Por isso, não me arrependo, de todo.

NOTA: Transcrição editada e adaptada para português de entrevista feita em inglês.


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