correio mercantil

Gouveia e Melo, o Almirante dos Sete Egoceanos

minuto/s restantes

Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima sétima edição, o piparote de Brás Cubas torpedeia o inchado Gouveia e Melo que, seduzido pelo canto da sereia, se comparou ao Princípe Perfeito.


Vaidade. Ah, a vaidade dos homens, esse perfume barato da alma que tão frequentemente sobe à cabeça como vinho azedo de má colheita. Desde tempos imemoriais, os mortais nutrem uma irresistível tentação por se fazerem grandes, mesmo que, no processo, se agigantem apenas na sua pequenez. Tal é o destino da Humanidade: querer ser mais do que se é e acabar menos do que se imaginou.

E eis que, não faltando nada, veio a Revista da Marinha, essa proclamação moderna de epopeias sem métrica, desencantar um retrato que figurará de rompante no mais ridículo salão dos egos do Parnaso, com um Gouveia e Melo ao lado de D. João II, o Príncipe Perfeito. Não cura, isto, por certo, a nostalgia de grandeza de um país, mas parece-me ser um pequeno paliativo para o ego de quem parece desejar ser lembrado pelos séculos vindouros.

Permitam-me uma introdução à memória descritiva deste fresco ao ego moderno, da autoria de Vasco Ferreira, cuja mestria ombreia, sem hesitação, com a do inigualável escultor Emanuel Jorge da Silva Santos – aquele mesmo que, para escarmento de uns e pesar de outros, foi tragicamente desviado para as lides políticas da freguesia do Caniçal. Perdeu-se assim, de forma prematura, um verdadeiro génio do grotesco monumental. O célebre busto de Cristiano Ronaldo, saído das suas mãos, foi um grito de Fídias às avessas, com escopro e cinzel aos ares, uma prova viva da capacidade humana para alcançar alturas cósmicas no domínio do cómico involuntário. Tal obra não apenas arrancou risos à escala global como também revelou que o verdadeiro génio artístico reside, muitas vezes, na audácia do improvável.

Ilustração de Vasco Ferreira para a Revista da Armada retratando Gouveia e Melo ao lado do Príncipe Perfeito.

Assim como Emanuel transformou o rosto de um ícone do futebol numa alegoria surrealista de perplexidade e espanto, Vasco Ferreira eleva a ilustração digital a novos patamares de enlevo egocêntrico, onde o Almirante Gouveia e Melo se perfila, impávido e seguro de si, ao lado do Príncipe Perfeito.

E, tal como o busto de Ronaldo foi posteriormente substituído por uma versão mais “realista” – embora à custa de perder o seu carácter icónico –, agora esta ilustração do ‘fresco naval’ talvez devesse ser consagrada em manhoso pechisbeque ou em escaiola polida, para as futuras gerações contemplem os perigos do narcisismo mal calibrado.

Em todo o caso, não sendo eu, Brás Cubas, almirante ou príncipe, reconheço, contudo, que os homens gostam de se eternizar na sombra dos grandes. E aqui temos, pois, o Chefe do Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo, com o seu sorriso largo e ares de semideus, de braço dado – metaforicamente, que a História não permite tamanha ousadia literal – com o Príncipe Perfeito, D. João II, que introduz toda uma nova escola artística: o realismo egocêntrico em solfejos de ironia.

A ironia começa só com a memória descritiva, que invoca o “mar” como “nossa maior riqueza”. Ora, é curioso como a língua pode ser traiçoeira, pois, em alguns contextos, mar pode significar também vastidão: “No seu olhar, um mar de memórias submergia-me, numa vastidão insondável.” Pode significar, de igual modo, infinito: “Naquele instante, o silêncio tornou-se um mar infinito de espera.” E, enfim, retratar o vazio: “Na imensidão do universo, sentia-se um grão de areia perdido num mar infinito de nada.”

Um busto

Ora, aqui chegamos. O mar parece-me uma analogia perfeita para descrever o discurso vazio que se segue. “Novos tempos, novas tecnologias…” – e assim, minhas elegantes senhoras, e meus estimados senhores, seguimos a par e passo a ladainha dos tempos modernos, onde tudo se resume a inovação e inteligência artificial, como se o espírito humano fosse apenas uma extensão de algoritmos e drones.

Mas o cúmulo da audácia surge na prosápia de que D. João II, se vivo fosse, “certamente não hesitaria em trocar ideias” com o Almirante. Ah, sim, porque o monarca, mestre do equilíbrio geopolítico e estratega incomparável, ver-se-ia agora reduzido a uma espécie de tutor tecnológico de alguém que se atreve a equiparar-se ao seu legado. Imagino o Príncipe Perfeito a debater com Gouveia e Melo sobre a operacionalidade de drones, enquanto, nos bastidores, Diogo Cão e Bartolomeu Dias reviram os olhos em uníssono.

E quanto á qualidade artística da imagem? Confesso que me arrancou um riso, meio amarelo, meio pitoresco. Eis o Chefe do Estado-Maior da Armada com uma pose que evoca não só D. João II mas, atrevo-me a dizer, uma espécie de Almirante Napoleónico à moda lusitana – só lhe falta a mão no peito e o cavalo branco. Ao fundo, oferecem-nos um submarino com uma árvore de Natal em plena torre – uma alegoria profunda, certamente, à navegação espiritual do consumismo natalício. Que imaginação, que grandiosidade! Quase posso ouvir Luís Vaz de Camões, dos confins desta nossa eternidade, murmurando: “Por minha culpa, Portugal canta estrelas valorosas; por culpa vossa, só restam caricaturas presunçosas.”

Um Almirante dos Sete Egoceanos de antanho…

E já que falamos em caricaturas, que dizer mais deste texto? “O glorioso passado e presente”? Certamente, trata-se de uma ode mal disfarçada ao espírito empreendedor de um país que, nostálgico, ainda almeja a antiga grandeza imperial. No entanto, fá-lo com uma curiosa amnésia dos próprios limites que se impôs ao longo do tempo – pela inércia, pela procrastinação estratégica e pela resistência em aceitar que a verdadeira força de uma nação moderna não reside apenas nas memórias de epopeias marítimas, mas na capacidade de enfrentar os hodiernos desafios com pragmatismo e visão realista. Este texto não só romantiza um “destino marítimo” como parece esquivar-se ao incómodo reconhecimento de que o mar, embora uma dádiva, é um recurso cuja exploração exige mais do que sonhos grandiloquentes: exige planeamento, ética e competência sem a máscara de bacoca retórica saudosista. E sobretudo sem laivos de superciliosa empáfia.

Conjugando ilustração com memória descritiva, confrontamo-nos com um curioso exemplo de culto de personalidade, mas de uma personalidade que não se contenta com a sua contemporaneidade. Não, Gouveia e Melo precisa de algo mais – quer se imortalizado ao lado de D. João II. A História, porém, é uma amante cruel: tolera as mais desvairadas pretensões, mas nunca as valida.

E não podemos ignorar o peso filosófico deste retrato e da narrativa que o acompanha. Se fôssemos ouvir Epicuro, ele talvez nos recordasse que o verdadeiro prazer reside na simplicidade – mas o Almirante, com o peso de tantas medalhas e a grandiosidade de um retrato que mais parece um afresco de catedral, certamente confundiu ‘simplicidade’ com ‘extravagância’ e ainda ‘prazer’ com ‘ostentação’. Um equívoco comum entre aqueles que preferem a vanglória ao bom senso.

Um Almirante dos Sete Egoceanos pós-GM…

 Mas se Epicuro não vos convence, permitam-me trazer Diogénes, o cínico, que certamente encontraria no Almirante Gouveia e Melo um candidato perfeito para um sermão sob a luz da sua lanterna. “Procuro um homem honesto”, diria ele, com ironia, enquanto o Almirante, de farda entupida de galões e medalhas, impecável, mas com uma árvore de Natal em cima de um submarino, proclamaria que a honestidade reside em se enaltecer ao lado do Príncipe Perfeito. Diogénes, sem dúvida, reviraria os olhos e retirava-se para o seu barril, concluindo que, afinal, a loucura moderna ainda é mais insondável que os oceanos.

Maquiavel, com o seu pragmatismo mordaz, talvez visse neste retrato um jogo estratégico mal concebido – afinal, a política da imagem exige precisão. Contudo, em vez de arte calculada, temos aqui um manual improvisado de como confundir ambição com glória maquinada, provando que, mesmo na era moderna, ainda há quem se derrote em batalhas antes de sequer entrar no teatro da guerra.

E já que estamos em clima de sátira, chamemos ao palco Molière, o mestre do ridículo. Imagino-o a esboçar uma nova comédia: ‘O Admirável Almirante no Mar das Ilusões’. Nesta peça, o protagonista seria um homem de convicção inabalável – sobretudo em si mesmo – que, na ânsia de imortalizar o seu nome nos anais da História, constrói um monumento ao seu próprio ego. Contudo, em vez de aplausos, encontra apenas gargalhadas, pois o público, longe de se maravilhar com a sua grandeza, delicia-se com a sua pompa desmedida. Certamente, Molière saberia temperar a narrativa com um humor irresistível: o Almirante, num momento de exaltação, explicaria a D. João II as maravilhas da tecnologia moderna – drones, inteligência artificial, inovações náuticas – apenas para ouvir o rei, com pragmatismo, responder: “Para traçar o destino do Mundo, me bastou um astrolábio.” E assim, o Almirante, de rosto corado e discurso em ruínas, terminaria a cena a contemplar o “mar das ilusões” por si criado, enquanto o público, às gargalhadas, o aplaudiria – não pela grandeza, mas pela comédia.

Um pavão…

E o que diria Mark Twain, com o seu humor cáustico, se lhe mostrássemos este quadro moderno de lusitana vaidade? Sem dúvida, veria aqui material perfeito para uma nova coletânea de ensaios sarcásticos. “Os factos são teimosos,” poderia ele escrever, “mas não tanto quanto um homem que acredita que um uniforme cheio de medalhas pode colocá-lo ao nível de um rei que conquistou oceanos e nações.” Twain, com o seu pragmatismo, certamente acrescentaria que o verdadeiro perigo não reside num submarino decorado, mas na audácia do homem que se imagina como sucessor de um dos maiores estrategas da História, sem sequer uma batalha à sua conta. Até a Padeira de Aljubarrota conseguiu melhor sem molhar os pés.

Enfim, em última análise, não há como fugir à constatação de que o grande inimigo da vaidade não é a crítica, mas a própria realidade. E esta, como sabemos, tem uma habilidade peculiar para desmascarar ilusões com uma precisão quase cruel. Este retrato do Almirante, ao lado do Príncipe Perfeito, é uma lição viva de como a vaidade é a mais ardilosa das sereias: canta melodias doces aos ouvidos de um homem, prometendo-lhe glória e imortalidade, apenas para o arrastar para os abismos do ridículo. E saiba o Almirante que assim dita uma velha sentença: o tempo, sempre imparcial no seu cinismo, dissolve o louvor efémero e, em assuntos mais rasteiros, peneira os homens para assim descartar o joio da sua inflada soberba. Em muitos, nem sobra sequer o eco de um nome.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

APOIOS PONTUAIS

IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

MBWAY: 961696930 ou 935600604

FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.