Tanto mar

Brasil: Parlamentarismo bastardo, ou o sequestro do orçamento

sea waves on brown shore at daytime

por Arthur Maximus // Dezembro 26, 2024


Categoria: Opinião

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Promovida a redemocratização, o Brasil transformou-se numa república sui generis. Quem lê com atenção a Constituição de 1988, enxerga em seu texto coisas assaz curiosas. Embora o sistema de governo esteja definido com um representante eleito por voto maioritário para exercer a chefia de Estado e de Governo (o Presidente da República), quase nada se faz sem que o Congresso dê o seu aval. Não só isso. Em muitos casos, o Congresso pode literalmente decidir sozinho. Ainda que reste ao Presidente o direito de vetar certas proposições, o Congresso pode simplesmente derrubar o veto e fazer valer sua vontade à força. No caso de emendas à Constituição, nem direito a veto existe. Os parlamentares aprovam a alteração no texto constitucional, promulgam a emenda e fim de papo. Quando muito, restará ao Governo tentar recorrer ao Supremo caso haja alguma inconstitucionalidade na iniciativa. Por mais que não se queira admitir, a prevalência política – no sentido de “poder para fazer as coisas” – no nosso sistema constitucional está estruturada em torno do Congresso, à semelhança do que ocorre no parlamentarismo.

Ainda que a Constituição claramente tenha sido desenhada para operar sob um sistema parlamentarista, optou-se por estabelecer um sistema presidencialista, de modo a não confrontar a tradição política instituída desde a Proclamação da República. Para além disso, ainda estava muito viva na memória a campanha das “Diretas Já!”, na qual a imensa maioria da população foi às ruas pedir a volta da democracia com o lema: “Quero votar para presidente!”. Saindo de uma ditadura de 21 anos, os constituintes não tiveram muita margem de manobra para dizer que, agora com a democracia restabelecida, o povo seguiria sem escolher o mandatário máximo da Nação.

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Os defensores do parlamentarismo, contudo, estabeleceram um artifício constitucionalmente engenhoso. A despeito de manterem o sistema presidencialista, fizeram incluir no art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a obrigatoriedade da realização de um plebiscito contados cinco anos da promulgação da Constituição de 1988. Nessa consulta popular, o povo escolheria tanto o regime (monarquia ou república), quanto o sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo). A idéia era a de que nesses cinco anos após a promulgação do texto constitucional ficassem claros os inconvenientes do sistema presidencialista, fazendo com que a própria população optasse pela mudança de sistema. Quando isso acontecesse, tudo se encaixaria. A Constituição parlamentarista seria doravante seguida por um governo parlamentarista.

Faltou, contudo, combinar com o povo. Realizado a 21 de Abril de 1993, os parlamentaristas conseguiriam reunir pouco mais de ¼ do eleitorado, com direito a 10% de monarquistas que pretendiam abolir a República (embora não estivesse claro no plebiscito se o país seria devolvido à dinastia dos Orleans e Bragança). Ficámos, pois, condenados a um modelo político esquizofrénico, em que a maior parte do poder estava reservada ao Congresso, mas o Poder Executivo ficava a cargo do Chefe de Estado, que detinha a chave do cofre.

Como se isso não bastasse, as excentricidades do nosso sistema eleitoral acrescentaram diversas incongruências práticas ao bom funcionamento desse modelo. Enquanto Presidente da República e os senadores são eleitos em sistema maioritário (quem tiver mais votos, leva), os deputados federais são eleitos seguindo o voto proporcional em lista aberta. Contam-se os votos e distribuem-se as cadeiras da Câmara de acordo com os votos obtidos por cada partido. E, dentro de cada partido, são escolhidos os candidatos que foram mais votados. Com mais de 30 partidos registados no Tribunal Superior Eleitoral, disso resulta que, em todos os casos desde a redemocratização, nenhum Presidente eleito pelo povo contava com maioria absoluta no Congresso.

Para contornar a circunstância de chefes de governo minoritários no Parlamento, desenvolveu-se uma espécie de “modelo de coabitação”, no qual os parlamentares faziam emendas ao orçamento da União. Indicadas como prerrogativa sua, as emendas nasceram com o propósito de destinar verbas a pequenas obras ou instituições nos seus redutos eleitorais. A intenção, por óbvio, era transformar dinheiro em votos. No ano seguinte, o Executivo – senhor dos recursos federais – decidia quais e quando as emendas seriam pagas. Foi através desse sistema que os sucessivos presidentes, de Fernando Collor a Lula III, conseguiriam formar suas bases de apoio, naquilo que o sociólogo Sérgio Abranches viria a definir como “presidencialismo de coalizão”. Até aí, nada de mais. Politics is politics.

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O problema, como o leitor amigo pode imaginar, é que esse “arranjo” somente funcionaria enquanto o Presidente da República se mantivesse politicamente forte. Na hora em que ele ficasse fraco, seria apenas questão de tempo até que o Congresso “descobrisse” que era ele quem de facto mandava. Bastaria aumentar a quantidade de emendas no orçamento ou, pior, torná-las de execução obrigatória, para que o Executivo perdesse seu principal instrumento de barganha política.

E foi justamente isso o que aconteceu a partir de 2015. Primeiro, Dilma Rousseff resolveu enfrentar Eduardo Cunha, sendo derrubada por impeachment em seguida. Depois, seu vice, Michel Temer, caiu em desgraça após a delação dos notórios irmãos Batista, tornando-se politicamente zombie até o fim de seu mandato. Por fim, tivemos a “terceirização” do governo promovida por Jair Bolsonaro, preocupado apenas em formas de organizar uma ditadura que lhe permitisse governar como autocrata. Numa sequência cada vez mais voraz, os deputados e senadores resolveram assenhorar-se de parcela cada vez maior dos recursos arrecadados da população, relegando o Governo Federal praticamente à condição de pedinte para seus próprios programas. Estabeleceu-se, portanto, de forma completamente anómala, um “parlamentarismo bastardo”, cevado por verbas sequestradas ao orçamento da República.

A coisa atingiu tal nível de selvageria que, entre 2019 e 2024, nada menos do que R$ 186 mil milhões (cerca de EU$ 30 mil milhões) esvaíram-se pelos desvãos do orçamento em emendas parlamentares. Pior. Com a lógica do “orçamento secreto”, manufacturada no governo Bolsonaro, não se sabe sequer: 1) quem foram os parlamentares responsáveis por essas indicações; 2) quanto foi gasto em cada emenda.

É bem verdade que Lula da Silva já pegou o bonde a andar, com a casa desarranjada pelo que (não) fizeram seus predecessores. Mesmo assim, o atual mandatário tem feito pouco ou quase nada para mudar esse estado de coisas. Parte dessa inação deriva do fato de que boa parte do PT abraçou-se gostosamente ao Centrão, funcionando como linha auxiliar de Arthur Lira, o todo-poderoso Presidente da Câmara e responsável directo pela criação do “orçamento secreto”. Não por acaso, o Presidente da Câmara mantém alguns dos principais próceres do partido da estrela vermelha como seus fiéis escudeiros.

Quem sabe movido pela esperança de que o tempo acabe por resolver essa questão de uma forma ou de outra, Lula talvez tenha achado que pudesse empurrar a situação com a barriga até a eleição da nova mesa diretora da Câmara no ano que vem, quando Lira forçosamente deixará o terceiro posto mais importante da República. O problema é que a barriga do Planalto não está suficientemente sarada para empurrar o Presidente da Câmara e o Centrão até 2025. Maior prova disso foi o que ocorreu nesta última semana.

Como o Planalto não fizesse nada para restaurar o mínimo de moralidade na distribuição das emendas, coube ao Supremo Tribunal Federal tentar colocar alguma ordem nessa zona. Com o voto condutor do Ministro Flávio Dino, o Supremo determinou que, doravante, os recursos para emendas somente poderiam ser liberados caso fosse apresentado um plano de trabalho previamente aprovado pelo ministério responsável pela obra. Mais: toda e qualquer emenda deveria indicar precisamente o parlamentar responsável por sua indicação. Para além disso, o STF ainda determinou que o valor total das emendas não poderia crescer além dos limites estabelecidos pelo arcabouço fiscal. Foi o que bastou para detonar uma revolta congressual.

Acreditando que a decisão do Supremo fora combinada com o Planalto, os parlamentares interditaram a agenda legislativa, a ameaçar deixar de votar um pacote de corte de gastos enviado pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para fazer frente à descrença com o compromisso fiscal do Governo. Emparedado pelo Congresso, Lula da Silva chamou ao Planalto os presidentes da Câmara e do Senado, que de lá saíram com a promessa de que, independentemente do que decidira o STF, a verba das emendas será liberada.

Ainda que o dinheiro venha a ser liberado, o refrigério obtido pelo vendaval de emendas será apenas temporário. Mais hora, menos hora, Lula vai ter que encampar a discussão sobre a função e os limites das emendas parlamentares. A melhor forma de fazer isso é abrir o jogo e trazer a luz do Sol para dentro dessa contenda. Um debate honesto, a mostrar para onde está sendo direcionada a verba das emendas e o que se está a deixar de fazer para manter esse mimo do Parlamento, certamente faria acordar o “monstro da opinião pública”. Sem ter como defender o indefensável, nem Arthur Lira teria forças para barrar a pressão que viria de fora pra dentro do Congresso.

Se até o momento não se fez a luz sobre essa discussão, parte disso deriva do facto de que Lula não quer confrontar o Congresso (e, dentro dele, o PT) com seus próprios demónios. É um erro, porém, apostar na inércia, acreditando que é melhor deixar tudo como está, para ver como é que fica. Em 2014, Dilma Rousseff foi avisada de que havia algo de errado na Petrobras. A “gerentona”, contudo, achava que Paulo Roberto Costa era apenas mais um diretor da estatal e que Sérgio Moro era apenas um juiz de Curitiba.

Deu no que deu.

Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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