CMVM ‘fecha os olhos’ ao acordo milionário entre SIC e Cristina Ferreira
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Ao contrário do que sucede quando, por exemplo, uma sociedade anónima desportiva (SAD) tem de pagar ou receber uma indemnização, a Impresa – o grupo de media que controla o Expresso e a SIC – não revelou os montantes do acordo milionário firmado este mês com a apresentadora Cristina Ferreira. Os investidores também desconhecem qual o impacto que o encaixe milionário terá nas contas anuais da SIC e da Impresa, apesar de a lei exigir que as empresas com acções ou obrigações emitidas no mercado de capitais divulguem informação relevante, incluindo eventos com impacto contabilístico. O ‘polícia’ da Bolsa portuguesa, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) não quis explicar a razão de o valor da indemnização ‘choruda’ estar ainda no ‘segredo dos deuses’. Além disso, a CMVM também está a ‘fechar os olhos’ ao impacto da insolvência da Trust in News nas contas do grupo fundado por Pinto Balsemão. Nos últimos cinco anos, esta é a terceira vez, pelo menos, que a Impresa não divulga informação clara e transparente ao mercado.
Nem ‘ai’ nem ‘ui’. Apesar de a lei obrigar as empresas cotadas em Bolsa a divulgar informação relevante, os investidores continuam sem ser informados sobre o valor da indemnização que a SIC, estação de televisão da Impresa, acordou com Cristina Ferreira, uma verba que deverá ter impacto nos resultados da Impresa, o grupo liderado por Francisco Pedro Balsemão.
Em causa está a indemnização milionária que a apresentadora acordou pagar à SIC pela sua saída intempestiva da estação. Um comunicado-conjunto de Cristina Ferreira, da empresa da apresentadora, Amor Ponto, e da SIC, enviado à imprensa no dia 11 de Dezembro, apenas mencionou a existência do acordo entre as partes. O comunicado, que foi citado pela generalidade dos media portugueses, não inclui detalhes do acordo.
“A SIC, a Amor Ponto e Cristina Ferreira informam que chegaram a um acordo mútuo no âmbito do litígio que opunha a primeira às segundas”, informava o comunicado citado pela Impresa. nota. Adiantava que o “acordo, alcançado após negociações construtivas, põe termo ao litígio existente entre as partes” e que “ambos os lados expressam satisfação com a resolução encontrada”.
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Recorde-se que, em Junho passado, o Tribunal de Sintra condenou a Amor Ponto a pagar mais de 3,3 milhões de euros à SIC por quebra do contrato com a apresentadora, mas assinado pela empresa. Cristina Ferreira recorreu da sentença, mas não pediu efeitos suspensivos da decisão. Entretanto, o PÁGINA UM noticiou a 11 de Junho que a actual apresentadora da TVI estava a descapitalizar a empresa e a sociedade também não tinha constituído uma provisão para fazer face ao pagamento da indemnização, o que espoletou a SIC a agir. Assim, no passado mês de Novembro, o Tribunal acabou por executar bens da Amor Ponto num montante até 4,7 milhões de euros, segundo noticiou a agência Lusa.
Contudo, consultado o site da CMVM, onde as empresas cotadas e todos os emitentes do mercado divulgam informação relevante, não se encontra nenhum comunicado da Impresa ou da SIC referente a esta matéria. No caso da SIC, a última informação divulgada ao mercado é um comunicado divulgado no dia 9 de Dezembro referente à assembleia dos titulares das obrigações ‘Obrigações SIC 2021-2025’ que estava agendada para aquela data e que não teve lugar por falta de quórum, tendo sido convocada numa reunião de obrigacionistas para o dia 27 de dezembro de 2024.
Ora, o Código dos Valores Mobiliários (CVM), que rege o mercado financeiro português, estabelece no artigo 7º que “a informação respeitante a instrumentos financeiros, a formas organizadas de negociação, às actividades de intermediação financeira, à liquidação e à compensação de operações, a ofertas públicas de valores mobiliários e a emitentes deve ser completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita”. Tanto a SIC como a Impresa são ‘emitentes’.
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Segundo o número 1 do artigo 389.º do mesmo Código, “constitui contra-ordenação muito grave: a) a comunicação ou divulgação, por qualquer pessoa ou entidade, e através de qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita”. Também é considerada uma contra-ordenação muito grave “a falta de envio de informação para o sistema de difusão de informação organizado pela CMVM” bem como toda a “a prestação de informação à CMVM que não seja completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita ou a omissão dessa prestação”. As coimas referentes a contra-ordenações muito graves oscilam entre os 25 mil euros e os 5,0 milhões de euros.
Claramente, os investidores não têm informação completa, verdadeira, actual, clara e objectiva sobre a SIC e a casa-mãe, Impresa. Do mesmo modo, não se sabe qual o impacto que a indemnização, cujo valor a CMVM e o mercado desconhecem, terá nas contas da SIC e da Impresa em 2024.
Mas a CMVM não diz se vai ou não obrigar a Impresa e a SIC a divulgarem informação clara e objectiva sobre a indemnização e o seu impacto nos resultados das duas empresas. Uma porta-voz do ‘polícia’ da Bolsa justificou que “a CMVM encontra-se vinculada por deveres legais de sigilo profissional que a impedem de se pronunciar sobre casos concretos”. Disse ainda que “compete aos emitentes [neste caso, a SIC e a Impresa], em primeira linha, aferir os factos que, em função das características próprias do emitente, constituem informação privilegiada”. E garantiu que “a CMVM mantém uma supervisão contínua sobre as entidades emitentes sujeitas à sua supervisão, nomeadamente sobre o cumprimento dos deveres de divulgação de informação ao público”, citando assim o artigo 362º do CVM.
Contudo, cabe à CMVM, nomeadamente, garantir a “protecção dos investidores” e fazer o “controlo da informação”, como estabelece o artigo 358º do mesmo Código, relativo aos princípios da supervisão do mercado financeiro. Um dos procedimentos de supervisão atribuídos à CMVM pelo artigo 360º do CVM é “acompanhar a a[c]tividade das entidades sujeitas à sua supervisão” e “fiscalizar o cumprimento da lei e dos regulamentos”.
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Cabe também à CMVM, segundo o CVM, organizar “um sistema informático de difusão de informação acessível ao público que pode integrar, entre outros aspetos, elementos constantes dos seus registos, decisões com interesse público e outra informação que lhe seja comunicada ou por si aprovada, designadamente, informação privilegiada, participações qualificadas, documentos de prestação de contas e prospetos”.
Tanto a SIC como a Impresa, bem como a empresa de Cristina Ferreira, estão na posse de informação privilegiada, que pode ter impacto na avaliação das empresas, bem como das acções ou obrigações emitidas no mercado . O CVM define informação privilegiada no número 4 do artigo 378º “toda a informação não tornada pública que, sendo precisa e dizendo respeito, direta ou indiretamente, a qualquer emitente ou a valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, seria idónea, se lhe fosse dada publicidade, para influenciar de maneira sensível o seu preço no mercado”. É caso do registo de perdas ou ganhos que influenciem os resultados de uma empresa cotada.
Por sua vez, o Regulamento da CMVM n.º 4/2023 sobre ‘os meios de cumprimento dos deveres de informação dos emitentes’ estipula no número 1 do artigo 2º que “os emitentes divulgam as informações legalmente requeridas, no sistema de difusão de informação da CMVM, mediante envio das mesmas à CMVM”.
Ou seja, tudo aponta que os investidores vão continuar sem saber, ao certo, o valor da indemnização e os contornos do acordo firmado entre a ‘emitente’ de obrigações SIC, da empresa cotada Impresa.
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Em todo o caso, esta não é a única situação na Impresa sobre a qual a Bolsa está ‘às escuras’. O grupo de media é um dos principais credores da Trust in News, empresa unipessoal de Luís Delgado à qual a Impresa vendeu, em 2018, o seu portfólio tóxico de revistas, numa altura em que se encontrava em sérias dificuldades financeiras, com o mercado de crédito ‘fechado’ e após ter falhado uma emissão de obrigações. Ora, a Trust in News está a meio de um processo de insolvência. Contudo, os investidores também não têm acesso a informação clara sobre os impactos previstos deste ‘calote’ nas contas e da Impresa.
A Impresa chegou a reconhecer um ‘calote’ parcial de Delgado nas suas contas de 2023, como o PÁGINA UM noticiou. Contudo, mais uma vez, os investidores não têm sobre o desenrolar deste negócio a informação completa, clara, verdadeira e objectiva, como manda a lei. Certo é que o anúncio do negócio de venda das revistas, incluindo a Visão e a Exame, foi publicado no site da CMVM, com a divulgação de um encaixe de 10,2 milhões de euros. Desde então, nunca mais houve um comunicado ao mercado sobre o andamento do negócio. Mas é assumido que a insolvência da Trust in News terá impacto nas contas do grupo que é dono do Expresso e da SIC e que já não irá ‘ver a cor do dinheiro’ anunciado no comunicado feito ao mercado em 2018.
Mas, nos últimos cinco anos, houve, pelo menos, uma outra ocasião em que a informação prestada pela Impresa ao mercado não foi clara nem objectiva: o negócio de recompra do seu edifício-sede ao Novo Banco. Também neste caso, a venda do edifício situado em Paço D’ Arcos foi anunciada através de um comunicado divulgado no site da CMVM. A venda rendeu 24,2 milhões de euros à Impresa e ajudava a ‘tapar’ o buraco que o grupo não tinha conseguido tapar com a emissão de obrigações que falhou. o Novo Banco ‘investiu’ no imóvel, apesar de estar a receber injecções estatais, do Fundo de Resolução, e numa altura em que a ‘ordem’ na banca era para os bancos se desfazerem de imobiliário e de créditos tóxicos. O Novo Banco não só comprou o edifício à Impresa, como financiou Luís Delgado na compra das revistas ao grupo de Balsemão. No caso do imóvel, a Impresa recomprou o edifício, no final de 2022, pagando menos do que o valor pelo qual o vendeu, como o PÁGINA UM noticiou. O negócio foi feito em surdina e sem direito a comunicado ao mercado.