A umidade é o primeiro dos feitiços.
Quando Deus fez o mundo e nele jogou o primeiro homem, a primeira pedra e a primeira palavra tudo – ou seja, todo o nada – estava coberto pela umidade. Deus, bom e justo que é, achou bonitas aquelas inofensivas gotinhas de água. Por isso, recolheu-se feliz e satisfeito às sombras do seu reino de justiça e liberdade.
As gotículas de umidade, porém, quando se viram sem governo, resolveram que apenas cobrir o nada era pouco. E decidiram então possuí-lo em todas as suas dimensões e extensões.
Foi por isso que se infiltraram pelas paredes das casas de todos nós, casas erguidas mais como chacota do que como abrigos nas ruas desertas desta cidade fantasmal, que se chama Tapera, assim nomeada porque, na língua dos primeiros homens que habitaram as margens desta Lagoa assombrada, Tapera quer dizer aldeia abandonada contra a mancha negra da noite. Depois elas penetraram até as fibras mais recônditas das tábuas dessas pontes vacilantes. E, também, encharcaram as roupas dos homens para que eles se tornassem fracos e doentes e servis e cabisbaixos. E, ainda, se apossaram da areia para que nela os meninos e as meninas não pudessem brincar e se transformassem nos pálidos fantasmas que vemos por trás das vidraças de todas estas janelas fechadas.
Quando o mundo começou a respirar no primeiro pulmão a umidade já cobria e possuía tudo. É por isso que nossas sempre atormentadas mães varejam os quartinhos de despejo em busca de velhos jornais amarelados para com eles cobrirem as tijoletas gotejantes de suas cozinhas. E depois, quando partimos sobraçando a pasta repleta de lápis de cor do nosso jardim de infância, elas trocam as folhas empapadas por outras, secas.
O mais certo de tudo, dizia-nos a tia-avó, dando golpes no ar com suas agulhas de crochê, é que não se pode aprisionar nem o mar, nem o vento, nem o frio, nem o calor e muito menos esta maldita umidade.
Da umidade virão o mofo e o musgo, cinza e verde. Nascerão em todas as coisas, especialmente sobre as pedras polidas do calçamento destas ruas abertas sobre a pestilência de antigos mangues. O verde veludo é o musgo. O traço cinzento é o mofo. O musgo costura estas ruas, umas nas outras, para que não se dissolvam sob os passos de todos esses enfeitiçados. O musgo veda as rachaduras das paredes descascadas para que espíritos sem paz não adentrem a sonolência dos nossos lares.
O mofo é mais forte porque é cinzento, da cor dos nossos pesadelos. O mofo gris recobre nossos corações e faz com que amemos esta terra inóspita e sombria, até mesmo nos seus piores dias, que começam quando o vento se apresenta na sua carruagem, terrível e barulhenta, na boca daquela rua que acaba dentro das águas barrentas do rio.
O mofo toma conta de todas as coisas que estão perdidas nos porões da memória (relógios de parede, lanças de ébano e escarradeiras de bronze) até que a mão ensanguentada do Negrinho do Pastoreio as venha resgatar.
O musgo cobre até mesmo as alças destes caixões que mãos azuladas e trêmulas conduzirão ao cemitério em um dia de chuva.
O calor é o segundo feitiço.
Quando ele aponta, no alto do morro que domina esta cidade, os homens arrebentam os botões do colarinho e as mulheres escancaram as pernas enquanto dão de mamar ao filho recém-nascido. A praça fica repleta de pessoas afogueadas que se entreolham com amarelados olhos vazios. Na fresca da noite, anunciada pelo cheiro da erva-mate, os velhos vão para as calçadas com suas garrafas térmicas e suas bocas chupadas e mostram à lua suas geométricas dentaduras enquanto seus peitos encatarrados tentam conseguir um pouco de ar. O suor se transforma em rios quando todos aqueles velhos insones pressentem que naquela noite não resistirão ao apelo das forças primitivas e que, por fim, se transformarão em lobisomens. Assim aconteceu com o meu e com o teu avô, enquanto nossas avós percorriam alucinadamente as contas negras dos rosários com seus dedos ossudos e bondosos e murmuravam orações piedosas para a salvação de nossas almas.
O calor é o tempo das noites curtas e dos longos dias vermelhos porque o sol se detém no meio do firmamento, sobre a cúpula da nossa catedral, e ali se queda fustigando e incendiando tudo até a chegada da brisa noturna. Por isso é que só de manhãzinha, bem cedo, quando os raios alaranjados dançam no cume do morro, nossa avó asmática, fatigada pela insônia, consegue adormecer.
O calor é o tempo da mula-sem-cabeça. Por isso todos aqueles meninos se reuniam na frente da nossa casa, ao redor do vô que, sentado em seu mocho cambaio, pitando aquele cigarro de fumo Ouro Pelotense enrolado em papel Colomy, gostava de contar a história do negro Luís e de como ele se transformou em lobisomem numa noite assim escaldante e de como ele mordeu o lençol de linho branco da baronesa e de como o guarda-caça do castelo dos Simões Lopes o feriu com um tiro de bacamarte e de como o médico descobriu no dia seguinte – depois de ter-lhe retirado estilhaços de chumbo da nádega ferida – fiapos de linho entre seus fortes dentes de africano.
E por todo o penoso arrastar desta noite, no intervalo entre um e outro pesadelo, ouviremos a voz de nossa avó que recita com seu cantante sotaque lusitano os versos que nos salvarão do fogo do inferno.
O verão é a gota de suor que é quase a mesma coisa que a primeira gotícula de umidade que estava sobre todas as coisas quando Deus, nosso criador e criador de todas as coisas, admirou Sua obra. O calor é o murmúrio de todos esses homens encerrados como ladrões entre as altas e grossas paredes dessas fábricas fumacentas que são os verdadeiros braços desta nossa cidade febril. O calor é a cantiga dos teares que ensurdece nossas tias operárias e que leva para todo o sempre suas impressões digitais. O calor é também o raio de fogo que fere o cérebro de nossos gatos pretos que nessas noites de labaredas correm desatinados sobre o zinco fervente dos telhados musguentos. Lúdicos gatos lúbricos, lascivos.
O calor é o nosso pai com uma garrafa de cerveja diante dos olhos e um lápis na mão. O calor é tão bruto e insensível quanto a conta que ele faz e refaz, acabrunhado pela fria e indestrutível certeza da matemática, a conta que o mantém escravo daqueles pavilhões sufocantes. O calor é a certeza de que o inferno é aqui mesmo, agora, mas é também a certeza de que esta garrafa de cerveja, coberta de pequenos diamantes de suor, é o único anjo que Deus enviou para nos resgatar deste vale de lágrimas.
A chuva é o terceiro feitiço.
A chuva é o vidro moído que cai sobre esta cidade que um dia foi chamada Tapera, que quer dizer casa sem gente dentro, oco, vazio e nada.
A chuva, nos outros lugares do mundo, nas outras taperas, é destruição e força, ímpeto e arrogância. Aqui não, é serenidade e constância, equilíbrio e delicadeza, porque cai como flocos de algodão ou outra coisa ainda mais leve e mais acariciante. Lenta e doce, ela vai caindo e se amontoando sobre a superfície luminosa dos paralelepípedos centenários. Do jeito que cai, mansa e ordeira, fica. Por isso ninguém sabe, antes que se escoe uma semana, que está chovendo. Até que o primo tagarela nos avisa, quando estamos com o nariz enterrado no vapor cheiroso da xícara de café com leite, que a rua está alagada e que teremos que tirar os sapatos e caminhar três quarteirões até o ponto do ônibus que nos levará à escola.
Ela chegou tão de mansinho, tão manhosa, tão encantadora, que nem percebemos que os nossos dois pares de sapatos, o da missa de domingo e o de ir à escola, estão completamente úmidos e que é preciso colocá-los perto do fogão para que sequem junto com a nossa japona azul empapada. E então, um belo dia, quando faz mais de um mês que esta outra praga veio do céu para nos provar, descobrimos, por fim, que estamos ilhados. As ruas são agora pequenos rios. É por isso que reviramos a casa em busca daquele baralho mofado que não tem o Rei de Espadas ou daquele jogo de víspora que não tem o número 22, marrequinhas com arroz. E nosso pai se irrita e ameaça espatifar na parede aquele radinho japonês que comprou de um contrabandista em Rio Grande porque a minúscula porcaria não serve nem para captar os tangos da Rádio Taperense, até que nosso irmão mais velho se aproxima dele e diz com sua voz cambiante de adolescente que a essas alturas até mesmo a antena da Rádio deve estar debaixo d’água e que o cadáver inchado e insepulto do nosso bisavô possivelmente estará flutuando entre os transmissores.
A nossa chuva é aquela mesma de quarenta dias que está na Bíblia, diz o padre com sua voz alemã cheia de erres e depois ergue seus olhos de esmeralda para o teto do templo a fim de observar o balé daqueles milhões de pardais que, voando entre as vigas do teto alto, esperam a estiagem. Certamente, morreremos todos nós afogados – afirmou ele no sermão da missa das seis, para assustar as beatas que se escondem sob mantilhas negras – porque neste raio de cidade não há nenhum Noé.
Não existe Noé, eu sei, mas acontece que o leiteiro e o padeiro contaram à nossa madrinha que o padre se levanta às quatro da manhã só para rezar uma missa especial, em latim, para os pardais adormecidos. Eu garanto que é ele o nosso Noé porque o leiteiro e o padeiro viram quando os passarinhos entoaram o “Glória a Deus nas alturas” e, depois, bateram com as asinhas no peito enregelado recintando o mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa…
O vento é o quarto feitiço.
Num dia qualquer, os eucaliptos, os plátanos, os umbus e as figueiras voltam a sacudir suas cabeleiras molhadas. É sinal de que as nuvens negras se foram na direção do mar distante. Os homens abrem as portas enferrujadas de suas casas e espicham os ouvidos pelas vielas desta cidade que se chama Tapera, palavra que quer dizer campo arrasado, bandeira aviltada, barco à deriva…
Então chega o vento para revirar os olhos das raparigas nos seus leitos incendiados de virgens imaculadas, para acariciar seus seios de bicos arrepiados, para soprar entre suas coxas vermelhas, para submetê-las a todas essas torturas deliciosas.
Todos os rapazes, até mesmo os musculosos remadores do Clube de Regatas, voltam seus olhos para dentro de si e assombrados observam o que se passa no interior de seus peitos glabros: a louca corrida do sangue que pulsa e explode desgovernado em busca de uma brecha naquele corpo rijo. Por isso, eles se levantam no meio da noite, sonâmbulos, e batem com a testa latejante contra as cerâmicas úmidas do banheiro enquanto resmungam desconexas rezas de primeira comunhão.
O vento é como o apito do marinheiro, triste e solitário. À noite, observado apenas pela lua e pela coruja, ele arranha as paredes sem reboco da nossa casa, aplaina as arestas das esquinas e varre os campos semeados. O vento vai e volta, sereno, por esses becos, mas torna-se furioso, destruidor, quando se defronta com todos os obstáculos que o homem insiste em construir: estátuas, túmulos e palanques.
Por causa do vento nosso tio não larga mais aquela maldita garrafa de cachaça, nem mesmo para ir ao banheiro. O vento não lhe dá sossego, persegue-o por todos os corredores desta casa, espicaçando-o, enlouquecendo-o. Mas nós sabemos que aquele vento, aprisionado no labirinto dos ouvidos do nosso pobre tio, jamais sairá dali.
O vento é meio cabeça-de-vento, diz o professor de História, enquanto nós todos, meninos, damos gargalhadas e nos cutucamos e sussurramos: como é louco este velhinho! Mas nós somos ainda mais patetas – acrescenta o professor, folheando seu álbum de selos franceses – porque nos irritamos com o vento, mesmo sabendo que um dia ele também vai desaparecer dentro da Lagoa, que é o fim de todas as coisas que nos cercam.
Pois bem, certo dia o vento some nas curvas do canal levando consigo seus cortejos de esqueletos, seus comboios de folhas secas e suas caravanas de panelas amassadas. Lento, a passo miúdo, vai dançando sobre charcos e pântanos sempre em busca do Sul do mundo.
Depois vem o frio, quinto feitiço.
O frio é a pedra de gelo que nos recobre as pernas e o sexo e que eletriza nossas gengivas e nossos dentes. O frio é o frio mesmo, diz nossa falecida mãe enquanto coloca fralda sobre fralda na bunda de nosso irmãozinho menor mesmo sabendo que de pouco vai adiantar já que dentro de duas horas, três no máximo, ele vai despertar chorando todo mijado por causa dessa frialdade que nos encaranga a todos, indiferentemente.
O frio é o frio mesmo, sem tirar nem pôr, diz a mãe, puxando as pontas das fraldas, alfinete de segurança entre os dentes, enquanto lança olhares vigilantes para nós que, entrouxados em roupas de lã piniquenta, estamos virando cambalhotas sobre o sofá-cama.
O frio deve ter chegado a esta terra – nossa terra úmida e fria – em companhia dos tropeiros que vieram para fundar sangrentos matadouros nesta perdida parte do Sul do mundo. Eram homens casmurros e teimosos porque construíram aqui sua casa e seu trabalho sem prestar atenção ao que lhe diziam os índios: isto aqui é terra sem gente, gente sem terra, povo sem voz, fogo sem brasa e outros disparates.
O frio percorre todos os andares de nossas costelas e faz com que nos encolhamos entre os ombros e por isso sejamos homens macambúzios e cismáticos sentados ao redor de uma fogueira enquanto algum velho de largas bombachas e barba por fazer vai enfileirando mentiras e se esquece de nos passar a cuia do chimarrão.
E nós, quando nos interrogam, não sabemos responder se é por causa deste frio ou daquele calor, desta umidade ou daquele vento que muitos destes homens e mulheres foram findar seus dias entre as altas paredes do Sanatório, de onde nunca mais sairão por causa daquele enorme portão de ferro e dos cacos de vidros que cintilam sobre o muro depois da chuva.
Lourenço Cazarré é escritor
Texto originalmente integrado no livro Enfeitiçados todos nós
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