Esaú sempre exigiu um prato de lentilhas; ao Público basta uma pizza quentinha

Na celebre história bíblica, Esaú trocou o seu direito de primogenitura por um simples prato de lentilhas. Um momento que, convenhamos, representa um marco de ingenuidade, mas também de desespero gastronómico. Na verdade, e eu sei bem disso; sempre fui boa boca, com bigodes a condizer, e quando a fome aperta até a ética vai pelo ralo. Por isso, nem me surpreende em demasia que alguns redactores contemporâneos adoptem Esaú como patrono das suas lides.
A este propósito, parece-me deliciosamente paradigmático o recente caso do Público, e mais uma vez do seu suplemento Fugas, que trocou o seu direito de ser levado a sério por… pizzas e prosecco na Lx Factory.
Sim, meus prezados humanos, ao preço de uma refeição – que, espero, tenha ao menos incluído sobremesa –, o jornal da Sonae conseguiu publicar um hino de propaganda de um espaço de culinária travestido de reportagem. Ah, não confundam: não se trata de uma publireportagem (longe disso!): é, garantem-nos, uma “rigorosíssima e isenta peça jornalística” escrita pela jornalista Inês Duarte de Freitas, competente na sua carteira profissional 8181, também ela uma Esaú moderna a trocar o bom senso pelo direito a um lugar à mesa. E ao sol, provavelmente.

Afinal, por que não permitir que a ética jornalística saia para um passeio enquanto se saboreia uma Alessandro de 15 euros, “com tomate, mozarela, stracciatella, pistácio, mortadela e grana padano” ou a mais clássica Paolo de 13,5 euros, “com tomate, mozarela, tomate amarelo, pepperoni e manjericão”.
Mas não nos apressemos. Antes de falarmos das virtudes da Sophia Pizzoteca – “residente italiana” da Lx Factory, como bem entoado no artigo –, detenhamo-nos um pouco no contexto. O texto começa com um desfile de adjetivos tão vibrantes quanto as luminárias do restaurante. Há “irreverência do conceito”, “tons néon”, e até um bar aberto de prosecco que, pelos vistos, é a mais recente maravilha do mundo moderno. A página resplandece com descrições de massas finas e está estampada com palavras quase poéticas sobre o papel de parede desenhado à mão, porque não basta uma pizza; é preciso uma aura.
Ninguém poderá estar contra uma boa pizza. Eu mesmo, na qualidade de um felino sofisticado, não recusaria um pedacinho (de stracciatella, obviamente, que o resto é para amadores) ou qualquer uma que tenha fiambre, sendo que sempre comerei o fiambre antes do resto. Mas permitam-me levantar uma questão: onde está a linha entre uma reportagem e um press release? Ou melhor, quando o já duvidoso estilo da publireportagem se transforma em carta de amor disfarçada de jornalismo e assinada á descarada por uma jornalista?

A questão é ainda mais pertinente se recordarmos que a mesma autora, dias antes, voou até Paris para assistir a um espectáculo de magia do Luís de Matos… a convite da Luís de Matos Produções.
Fico, entretanto, expectante sobre os próximos passos. Se este artigo sobre a pizzaria, uma verdadeira obra de arte da sugestão velada, termina com a frase “A Fugas jantou a convite do Sophia Pizzoteca&Bar”, o que virá depois? Artigos sobre calçados com o jornalista calçado pela marca? Reportagens sobre companhias aéreas em que o jornalista voa em classe executiva oferecida pela companhia? Avaliações imparciais de smartphones feitas por um jornalista que recebe um novo dispositivo da marca em ‘empréstimo permanente’? O céu é o limite. Mas se até eu tudo faço por um bom petisco, se a ética se pode trocar por uma requintada iguaria, então recomendo aos jornalistas do Público que subam os padrões: nada menos do que um Filet Mignon Rossini, perfeitamente selado, com cobertura de foie gras e finalizado com lascas de trufas negras frescas. Neste contexto, valha-me Deus!, uma pizza é pior do que o bíblico prato de lentilhas.
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