Recensão: Psiconautas

Luminoso mundo subliminar

por Rute Cerqueira // Dezembro 26, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Psiconautas

Autor

MIKE JAY (tradução: Luís Filipe Pontes)

Editora

Zigurate (Setembro de 2024)

Cotação

18/20

Recensão

Mike Jay, um escritor britânico premiado, escreve sobre História da Ciência e Medicina navegando entre temas como a loucura, memória, alucinações e é um perito sobre o impacto individual e colectivo de drogas que alteram estados de consciência.

Uma viagem pelo mundo das drogas, termo que adquiriu um significado ilegal, clandestino, evocando o submundo, para designar ópio, heroína, cocaína e haxixe no século XX por oposição ao século XIX em que o seu consumo livre e estimulado era anunciado como terapia e viagem química de libertação do individuo. As drogas eram comercializadas em farmácias, espaços luminosos de vidros e mármores, como excipientes de tratamentos manipulados por modernos boticários ou para funções recreativas.

Os efeitos dissociativos da consciência, em que os sujeito consumidor se metamorfoseava simultaneamente em experimentador e observador alimentavam a literatura, como em ‘Confissões dum opiómano’, de Thomas Quincey, ‘O clube de comedores de haxixe’. de Theophile Gautier, e ‘Paraísos artificiais’, de Baudelaire, bem como em relatos de auto-experimentação de médicos e investigadores que eram publicados em folhetos jornalísticos.

No mundo ocidental, as publicações subjectivas das experiências com drogas tinham as suas raízes no laboratório oitocentista do químico Humpry Davy com oxido nitroso, o gás do riso, que em experiências limite levara um grupo de filósofos da ciência à inconsciência. Só décadas mais tarde, em pleno século XIX, foi descoberto o poder anestésico do gás nitroso iniciando-se a era da cirurgia de larga escala.

Em paralelo com as associações perceptivas intuitivas e com a percepção sinestésica, o impacto psicoemocional e fisiológico induzia – no caso do ópio, heroína e haxixe – um estado de beatitude serena e bem-estar relaxado. Ou o ´kif’, termo árabe para bem-estar, alegria, felicidade, que traduzia, nos meios magrebinos frequentados por aventureiros europeus, a euforia química dos consumidores de haxixe. “A sinestesia era tida como prova científica de que o haxixe - e agora o peiote/mescal – tinha o poder de criar experiências sensoriais que ninguém podia alcançar na vida normal, a não ser alguns indivíduos excepcionais”.

O êxtase arrebatador de sobrecarga sensorial foi deliciosamente narrado por Baudelaire no poema ‘O comedor de ópio’:

Estou submerso e deliciosamente afogado

Música suave como um perfume e luz doce

Dourada com aromas requintados e audíveis

Também drogas estimulantes de actividade física e mental e antídotos contra a fatiga, como a cocaína, eram não só excipientes de fármacos como objectos de auto-experimentação em personalidades do mundo da Psicologia, como Freud.   

O irmão do romancista Henry James, de seu nome William James, criador do conceito de fluxo de consciência – “uma confusão fluorescente e ruidosa de muitas maneiras diferentes de pensar onde correntes profundas de experiência mística se misturavam frequentemente com a espuma da vida quotidiana” – afirmava: “Sinto que não temos nenhuma desculpa filosófica para dizer que o mundo invisível ou místico não é real”.  A dessincronização cerebral sob ação dos psicadélicos ao dissolver as fronteiras tempo-espaço e o ego permite uma viagem ao inconsciente, uma experiência transformadora, um renascimento psíquico. William James sugeria que “a mente, nascida uma vez, por mais saudável que fosse, tinha tendência para um conservadorismo presunçoso e aborrecido, ao passo que o nascido duas vezes procurava a aventura e transformação”.

As autoexperiências dos investigadores e o consumo colectivo no fim do século XIX, a época decadentista, filha dos valores emocionais e individualistas e dos mitos dos românticos criou o terreno para uma revolução artística e cientifica que estendeu as suas influencias para as vanguardas artísticas e cientificas do século XX: as impressões subjectivas dos impressionistas (1), os significados ocultos das obras dos simbolistas (2),  as utopias coloridas de Van Gogh (3), o terramoto terapêutico da Psicanálise e em pleno século XX os ângulos sobrepostos dos quadros de Picasso (4), a angústia visual de Edward Munch (5) e a teoria da relatividade espaço-tempo de Einstein.  

A fruição das drogas estava associada ao estilo de vida de ‘dandy’, personificado por Oscar Wilde, ou a flâneurs, como Baudelaire, autor dos poemas ‘Paraísos artificiais’. Neste ambiente ‘fin de siécle’, o médico, esteta e critico de arte Havelock Elllis descreveu a sua primeira experiência com peiote (um cacto mexicano com conotações religiosas e espirituais das tribos indígenas) como sendo um novo paraíso artificial.

As repercussões fisiológicas das drogas – como a dependência, ausência de controlo psicoemocional, busca incessante em detrimento de todas as outras actividades e as mortes prematuras de figuras públicas e ameaças crescentes à saúde pública – motivaram a regulação seguido do controlo legal internacional no século XX. O cenário das drogas transitou assim dos círculos artísticos e boémios para os palcos subterrâneos do crime e das actividades ilícitas, e dos balcões luminosos das farmácias para becos e clubes clandestinos. 

No século XX, a Era Progressista da solidariedade social iria diluir o eu individual do século XIX, travar uma guerra feroz contra as drogas através da criação de Unidades Criminais de Narcóticos de âmbito internacional e a transformação do olhar social sobre o consumidor de droga de tolerante para critico, de ‘bon vivant’ para doente.    

Na investigação de fármacos/drogas assistiu-se igualmente à supressão dos métodos de auto-experimentação dos investigadores, dado o carácter individual, subjectivo e dissociativo da experiência (o investigador ao consumir a droga era simultaneamente o observador e o observado) e à regulação dos estudos farmacológicos na forma de ensaios clínicos com dados objectivos, mensuráveis e replicáveis independentes do sujeito testado.    

Nos anos 60 e 70, a corrente de contracultura, os movimentos hippie e New Age e o Maio de 1968 – simbolizado pelo grito de revolta anti-conformista ‘É proibido proibir’, de Cohn Benedict –, fariam renascer o eu inconsciente, subliminar com necessidades místicas e espirituais facilitadas pela expansão da consciência, a abertura das ‘Portas da percepcão’, relatada por Aldous Huxley nos anos de 1940. O LSD tornou-se um símbolo da cultura hippie e da ‘beat generation’, foi celebrizado e festejado no tema ‘Lucy in the sky with diamonds’, dos Beatles.

O recente e crescente interesse pela psilocibina, como agente terapêutico das depressões refractárias à terapia convencional e poderoso indutor de prazer, de experiências místicas transcendentais e de introspeção, fenómenos psíquicos  altamente recompensadores, deve-se à dessincronização cerebral e à alteração da conectividade cerebral, esbatendo as fronteiras do tempo/ espaço e do eu.  

O passeio circular das drogas desde a atmosfera complacente e livre do século XIX passando pelos obstáculos sociais e legais do regulado e conformista seculo XX, com escapes transitórios da cultura de ‘laissez faire’ dos anos 60 e 70 e de estimulo energético da frenética cultura contemporânea de consumo desregrado reflecte-se  nas drogas de cada época: os opiáceos contemplativos e relaxantes dos românticos e simbolistas novecentistas e dos 'hippies' e New Age do século XX, as anfetaminas e cocaína estimulantes do seculo XX e XXI. O poder dissociativo do eu, e os mundos paralelos de ilusão e alucinação dos psicadélicos do novo século são o equivalente químico farmacológico do metaverso e dos jogos de 'roleplay', e dos alter ego e avatares que animam e mascaram as redes sociais, mas com pontos de estimulação do universo emocional interno e possibilidade, através do auto-conhecimento, de ‘reset’ psicoafectivo.

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