COMPLEXO TITANIC

Os pobres

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Ruy Otero|26/12/2024

Aquele jornalista era sem dúvida o mais cão-de-fila de toda a cáfila jornalística que pululava pelas principais redacções de televisão.

Tinha uma postura agressiva sempre que o seu entrevistado parecesse estar numa posição antagónica à sua. Se estivesse então conotado, ou fizesse mesmo parte daquilo que é hoje considerada a nova direita, mordia.

Era agressivo, mal-educado, interrompia, sentia-se a vontade insolente de cuspir para cima do interlocutor e isso verificava-se num franzir de olhos bastante nervoso, sendo mesmo acometido por esse movimento muscular frequentemente, sobretudo defronte de entrevistados alvo.

Mas o jornalista era baixinho e parecia não ter físico que garantisse em caso de luta, uma vitória fácil, mesmo que se tratasse de uma mulher.

O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.

Para estes feministas de estúdio, ser mulher não interessa se não partilharem das mesmas ideias. Nesse caso o universo feminino não é para defender.

Imaginava-se até que fosse medroso e provocador tipo “Ò Evaristo tens cá disto?” 

Um toca-e-foge sempre que não tivesse as costas quentes de um estúdio ou de uma voz gélida a dar ordens no seu auricular.

Mas desta vez a entrevistada vinha do Partido Socialista e era Presidente de Câmara de uma pequena cidade. A realização da entrevista devia-se à senhora ter gerado alguma polémica por ter proferido na rádio local da sua cidade que existiam muitas pessoas dessa região a usufruírem de subsídio, quando se sabia que algumas ostentavam casas com piscina, ou vivendas caras, ou mesmo carros de luxo, incluindo Teslas e Audis.

A Presidente da Câmara denunciava-o de uma forma até convencional, pausada e calma, sem grandes oscilações térmicas tanto na voz como nas expressões faciais. Parecia querer aproveitar o facto de estar na televisão para apelar a que se resolvessem este tipo de situações que muito prejudicavam os verdadeiros pobres. Não denunciava nenhuma etnia em particular e embora fosse uma política ligada a um partido do Poder, parecia querer mostrar alguma sensibilidade para com o problema e queria torná-lo público.

Queixava-se também de certa forma do pouco orçamento que a sua autarquia tinha para poder ajudar a resolver o assunto.

Queria apenas que se investigassem essas pessoas, de forma que a investigação se certificasse de onde provinham os sinais de riqueza dos suspeitos para que se pudesse fazer justiça e uma outra redistribuição mais equitativa e justa pelos mais necessitados.

Pelo que parecia, era uma socialista convicta.

Mas o jornalista não estava a gostar da conversa. Interrompia constantemente e alegava com razão eventualmente, não fosse o seu tom, que as pessoas podiam ter smartphones e serem pobres. Não estava a perceber muito bem onde a Presidente queria chegar. Será que a senhora pretendia denunciar alguma etnia em particular?

No entanto percebia-se que a senhora queria sobretudo alertar os espectadores para essa situação anómala e desprestigiante para o ser humano. Isso era claro.

Infortúnio que o jornalista se recusava a aceitar como sendo prática comum e até parecia duvidar se alguma vez isso poderia vir a ocorrer, chegando mesmo a evocar a possibilidade caso acontecesse, de ser uma excepção com a qual não nos devíamos preocupar para assim se confirmar a regra da não existência desse tipo de abusos. O Estado é hoje um dos grandes financiadores das televisões.

Percebe-se.

Mas, no entanto, não deixa de ser absurdo.

No meio da entrevista sob o fundo verde-croma, a senhora entrevistada respondeu a uma pergunta idiota e ainda acrescentou:

—… Até lhe digo mais… Há por lá pela cidade um caso muito conhecido de um cidadão que aufere desse subsidio, mas que no entanto ostenta um Audi, eléctrico e tudo. Portanto é até um cidadão com cuidados ecológicos por sinal.

—Mas não pode, é?

Perguntou o jornalista cão-de-fila, mal ouviu falar em ecologia.

—Nada disso. Apenas estou a dizer que normalmente esses carros são mais caros e que pessoas muito necessitadas nem sequer se podem dar ao luxo de ter prioridades ecológicas por muito que o queiram.

Por momentos parecia até que o jornalista estava a deixar passar a ideia de que não gostava de pobres, tendo nesse caso uma doença chamada aparofobia, e é sabido que hoje muita gente padece dessa patologia. Até pobres.

Aparecia o reino do nonsense mais uma vez para pautar uma entrevista grotesca. Coisa comum hoje em dia nos canais televisivos cheios de estagiários, embora não fosse este o caso. Este jornalista já se arrastava há uns anos pelas cadeiras de pivot.

—Mas então como é que a senhora sabe que o carro não é emprestado?

Perguntou o jornalista convicto de estar a fazer a melhor pergunta de sempre.

A Presidente fez uma cara de espanto não querendo acreditar naquilo que acabara de ouvir e antes que pudesse responder, houve um apagão geral. Uma parte do mundo ficou sem energia. Podia ser um simulacro também.

Um Cyber Polygon.

Assim de um momento para o outro.

Trássss!! Puffff!!!

Vários sons estridentes e desconhecidos potenciaram o frenesim generalizado das pessoas que se encontravam na redacção e no estúdio.

Mas mesmo depois de o jornalista constatar que já não estavam no ar, começando a sentir-se o caos associado a um apagão de grande extensão, com quase tudo às escuras, em off ainda insistiu com a senhora autarca:

—Sim, responda-me. Como é que a senhora sabe que o Audi do cigano não é emprestado?

Hum!!!

Ruy Otero é artista media

Ilustrações de Ruy Otero


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