Pena suspensa: O bilhete estava na Moita

Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 29 de Outubro de 1988, sobre Manuel Amílcar, 21 anos, solteiro, condutor manobrador da construção civil e agora réu por tuta-e-meia.

O BILHETE ESTAVA NA MOITA
— Ó pá, eu nunca fiz mal nenhum ali ao polícia. Eu até nem o conheço. Ou ele «engraçou» comigo ou, então, não topo… Isto já nem é a primeira vez que acontece naquela esquadra. Eles levam as pessoas e batem na malta sem razão nenhuma. Já não sou o primeiro… — queixa-se o réu.
Manuel Amílcar, 21 anos, solteiro, condutor manobrador da construção civil e agora réu por tuta-e-meia. Mais uma história de faca e alguidar ou a prepotência fardada.
Acto 1
O rapaz, que vem acusado de «agressão a agente da Autoridade», foi interceptado por se ter tornado suspeito.
Eis a versão policial dos acontecimentos.
— Solicitei-lhe a identificação. Não achou por bem a minha intervenção e respondeu-me que a tinha na Moita. Ao mesmo tempo e num gesto inopinado, agrediu-me com um murro no peito e uma dentada. Para manter o capturado em respeito e sua captura foi necessário fazer uso da força física do que resultou ter ficado com um ligeiro ferimento no lábio superior bem como simples escoriações nas costas.

Acto 2
Manuel Amílcar tem , obviamente, outra noção do sucedido. E, como de costume, é literalmente oposta da versão policial.
— Saí de casa. Fui ao café para beber uma cervejita. Estava à porta do café quando chegou o polícia. Disse-me que não podia estar ali a beber a cerveja. Respondi-lhe que não sabia que era proibido. Perguntou-me se eu tinha interesse em que a dona da casa apanhasse uma multa. Disse-lhe que não e que para a próxima não fazia isso. Começou a falar com outras pessoas. Pediu-me a identificação. Disse-lhe que tinha o Bilhete de Identidade em casa, mas que não estava assim muito bom. Estava estragado. Mas que tinha outro que estava na Moita. Aí, mandou-me entrar para dentro da carrinha. Entrei e começaram logo a bater-me. Depois, puseram-me na esquadra e mandaram-me para o Governo Civil de Lisboa.
— Porque é que não anda com o Bilhete de Identidade?
— Então, o café é mesmo por baixo da minha casa. Eu até lá fui em mangas de camisa e tudo… Prontes, tinha acabado de jantar e saí de casa. E tinha intenção de ir para casa novamente.
— E ninguém se ofereceu para ir a sua casa buscar o BI?
— Não. Eles levaram-me logo. Mas foram levar-me à esquadra.
— Costuma ter problemas com a Polícia?
— Não. O único problema que tive com a Polícia foi há três anos. Eu…
— Estava a furtar gasolina…
— Bem, nem cheguei a furtar. Mas depois fui responder e prontes. Nunca mais tive problemas.
— Desta vez, teria agredido o agente…

— Não, senhor. É mentira! Aquele bocadinho que ele tem ferido foi de um soco que ele me deu. E não foi só um. Foram montes deles. É o olho, é a boca, é uma tristeza…
Acto 3
Uma coisa é certa. Não chegou a haver julgamento. O juiz considerou inconveniente a tramitação do processo sob a forma sumária. Havia feridos a mais. Remessa dos autos ao Ministério Público junto dos juízos correccionais de Lisboa. E exame médico para Manuel Amílcar, que vai em liberdade.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 29 de Outubro de 1988.