Título
Conversas sobre a fé
Autores
MARTIN SCORSESE e ANTONIO SPADARO (tradução: Dinis Pires e Pedro Branco)
Editora
Casa das Letras (Outubro de 2024)
Cotação
15/20
Recensão
Mais do que serem meras ‘Conversas sobre a fé’, este livro, que resulta de um diálogo contínuo entre Martin Scorsese – um dos mais influentes cineastas contemporâneos – e o padre jesuíta Antonio Spadaro – com uma longa experiência em explorar as interseções entre cultura e espiritualidade –, deve ser lido sobretudo como um exercício de 'confissão',não tanto para um perdão, mas para uma auto-reflexão do conhecido realizador norte-americano, no contexto da sua vida e filmografia.
De facto, embora o título sugira uma óbvia interacção entre Scorsese e Spadaro, os diálogos transformam-se sobretudo numa forma de conhecer os pensamentos e reflexões do realizador, numa profunda imersão nas dimensões humanas e transcendentais que lhe moldaram a vida e a obra, mas onde o jesuíta, que se coloca numa espécie de psicólogo espiritual, o conduz a reflectir sobre os mistérios da fé e a busca pelo sentido.
A génese do livro, como explicado na introdução, remonta a Março de 2016, quando Spadaro e Scorsese se encontraram para discutir ‘Silêncio’, o filme de Scorsese sobre a perseguição aos jesuítas portugueses no Japão do século XVII. A obra cinematográfica, baseada no romance de Shūsaku Endō, tornou-se assim no catalisador de um diálogo que rapidamente ultrapassou o cinema para se tornar numa troca mais íntima e filosófica sobre a espiritualidade, a dúvida e a graça.
A partir deste encontro inicial, os contactos dos dois aprofundaram-se, ao longo dos anos, e nessa intmidade revelam-se aspectos menos conhecidos da infância de Scorsese, o impacto da sua formação católica e a forma como a sua fé – muitas vezes turbulenta e desafiada – moldou a sua visão artística.
O livro estrutura-se assim numa troca de ideias fluida, mas onde Spadaro se coloca apenas como interlocutor atento, guiando Scorsese por um percurso de memórias e reflexões, e simultaneamente introduzindo as perspectivas teológicas e culturais. Deste modo, de uma forma habilidosa, pela via destas conversas sobre fé – que, porventura, um jornalista não conseguiria –, Spadaro oferece-nos uma leitura perspicaz do percurso artístico de Scorsese, identificando as camadas de espiritualidade que atravessam filmes como ‘Táxi driver’, ‘A última tentação de Cristo’ ou o já mencionado ‘Silêncio’. Embora a sua abordagem seja de um enorme respeito intelectual, o jesuíta não abdica de provocar o cineasta, conduzindo-o a explorar os limites da sua compreensão sobre Deus, o sofrimento humano e a redenção. Em todo o caso, Scorsese não surge aqui como um devoto tradicional; antes sim alguém profundamente humano em constante questionamento e procura.
Enquanto obra, ‘Conversas sobre a fé’ apresenta uma análise riquíssima das forças espirituais e culturais que moldam não só a criação artística, mas também a própria existência. No entanto, notam-se momentos em que o texto se torna demasiado autocentrado, especialmente quando as reflexões de Scorsese recaem em episódios conhecidos, já abordados em entrevistas. A ausência de uma análise mais crítica por parte de Spadaro, que frequentemente opta por concordar ou amplificar os pensamentos do cineasta em vez de os problematizar, pode não acrescentar nada de novo à obra do cineasta, mas enriquecem a transversalidade deste testemunho.