Vasco da Gama & Gouveia e Melo: da glória passada à patetice presente

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Brás Cubas|27/12/2024

Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima nona edição, especialíssima, o piparote de Brás Cubas vai para um militar na reserva envergando camisola poveira ao lado do Vasco da Gama.


Ah, que cena magnífica me coube contemplar nesta tarde de languidez filosófica! Numa galeria qualquer – porque haverá sempre uma galeria para abrigar excentricidades e devaneios – deparei-me com uma visão digna de um Goya em fase de mofice ou de um Dali em dia histriónico: um retrato vivo de tempos que se cruzam, mas que jamais deveriam se ter encontrado.

De um lado, deparo-me com a imponente figura de Vasco da Gama, o herói das Descobertas, cujo olhar altivo se perde em horizontes que vós, mortais modernos, já nem sequer conseguis imaginar. Do outro, o Almirante Gouveia e Melo, em pose de efígie improvisada, envergando uma camisola poveira – sim, essa belíssima peça de tradição piscatória, agora transformada em traje de uma operação de marketing pessoal. Encontra-se ele de tal forma plantado ao lado do quadro que se mostra difícil decidir se quer homenagear ou eclipsar o velho Vasco.

Autoria desconhecida mas real.

Aproximemo-nos, vejamos bem: Vasco da Gama, herói de um Portugal que, ao menos nos sonhos de glória, almejava os confins do mundo; e Gouveia e Melo, personagem de uma era em que os confins do mundo não são mais do que uma abstração digital. Um com a armadura que enfrentou tempestades e batalhas; o outro, com a camisola de um pescador, mas sem o cheiro a sal nem sinal de luta contra as ondas. Que contraste mais pitoresco. E, ao mesmo tempo, patético…

Não é preciso ser um grande historiador nem filósofo requintado para perceber que há algo profundamente deslocado aqui. Vasco da Gama, na sua grandiloquência renascentista, representa a História Monumental, aquela de que Nietzsche tanto falava, feita de grandes feitos e gestos titânicos. Já Gouveia e Melo é o fruto amadurecido, e talvez fermentado, da História Crítica ou, talvez, apenas da História Cómica – uma figura que tenta, em qualquer oportunidade, emular-se à grandeza do passado com recursos tão anacrónicos quanto a sua pose de capitão Iglo.

Ah, e que direi daquela camisola poveira ofertada em plena pandemia! Esse pedaço de lã que outrora era o abrigo humilde de corajosos e sacrificados homens do mar, que enfrentavam tempestades e carestias com a mesma coragem e abnegação com que o Vasco da Gama enfrentou o Cabo das Tormentas somente para lhe dar o nome de Boa Esperança. Agora, no entanto, a pobre camisola é usada como figurino de uma tentativa de aproximação ao “povo”. Mas, que povo, Almirante? Ao povo que remenda redes ou ao povo que lhe remendará memes pelas suas patetices?

A pose do vosso Almirante é um exemplo claro daquilo que Schopenhauer descreveu sobre o mundo como representação. Gouveia e Melo não está lá para ser – está lá para parecer. A camisola poveira não o aquece; ela o adorna. O retrato ao lado de Vasco da Gama não é para honrar o passado; é para sacar para si uma aura de glória que já nem pertence ao vosso tempo. E muito menos a ele.

Tenho de ver se por aqui, onde me encontro, apanho o velho Vasco para lhe contar o que lhe andam a fazer à imagem. Acredito, porém, que se ele se pudesse mexer do quadro, olharia para o Almirante com um misto de desprezo e perplexidade. Afinal, que nobre capitão se apresenta com tamanha frivolidade ao lado de alguém que carrega o peso da História? Vasco, cuja vida foi feita de perigos reais e conquistas tangíveis, encontraria neste encontro apenas a sombra de um heroísmo que se perdeu nas curvas da modernidade.

Gouveia e Melo, em versão renascentista envergando camisola poveira.

Mas, mesmo que a ideia me seduza, não desejo ser completamente implacável com a figurinha do Almirante, ainda mais sabendo que ainda estará quentinho no seu peito a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo recebida das mãos do Marcelo. Na verdade, Gouveia e Melo teve os seus momentos de bravura – pelo menos, segundo os jornais e as redes sociais. Liderou a logística dos frescos do Pingo Doce, ou das vacinas na pandemia, já nem sei bem, com a eficiência de um excelso estrategista naval – embora, convenhamos, a batalha contra um vírus munido de seringas injectáveis me pareça menos epopeica do que o cerco de Calecute em 1502. Assim sendo, a camisola poveira, neste contexto, pode até ser vista como um símbolo da sua tentativa de traduzir grandeza para uma linguagem contemporânea – mas, infelizmente, essa tradução perdeu-se no caminho.

E vós, pobres espectadores deste teatro, somente podeis contemplar este quadro vivo – ou com um vivo de camisola poveira encostado às glórias de um morto – entre o riso e a melancolia. Para mim, este retrato já nem é apenas uma imagem ridícula; é uma metáfora de Portugal. Este é um país que vive entre a glória passada e a patetice presente, entre o peso da História e a leveza das aparências. No fundo, este encontro entre Vasco da Gama e o Almirante Gouveia e Melo é mais do que um contraste de figuras; é um retrato do vosso próprio dilema existencial. Se Gouveia e Melo é a glória que hoje resta a Portugal, talvez seja melhor que o futuro vos esqueça.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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