correio mercantil

Hélder Rosalino, a fútil utilidade de um ser inútil

por Brás Cubas // Dezembro 29, 2024


Categoria: Opinião

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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta vigésima edição, especialíssima, o piparote de Brás Cubas vai para a estória da nomeação do incomparável novo secretário-geral do Governo que, afinal, é homem dispensável no Banco de Portugal.


Se vós, como vivos, ainda não chegastes a essa conclusão, terei de ser eu a vos dizer: a utilidade, a futilidade e a inutilidade são os três estádios metafísicos do propósito humano, irmanados como actos de uma peça que nunca chega ao aplauso final.

A utilidade é, na verdade, uma ilusão, a ilusão primordial, a máscara dourada que usamos para justificar a nossa presença no palco da vida até cair o pano. É somente o pretexto do relojoeiro para ajustar engrenagens, do filósofo para ajustar ideias, do político para ajustar promessas, e também orçamentos – embora nesta última tarefa se confunda amiúde a utilidade com a oportunidade. Como já bem sabia Epicuro, a utilidade é um conceito fluido: aquilo que serve ao efémero raras vezes serve ao perene, e a roda, girando para um lado, arrasta inevitavelmente o outro para trás.

Já a futilidade é a utilidade transfigurada pela vaidade a caminho da inutilidade. Faz questão de se enfeitar de propósitos enquanto se entrega ao vazio. É a diligência do pássaro recolhendo palha para um ninho que jamais usará, ou do homem que, carregando livros, finge sabedoria sem os abrir.

Já a inutilidade é o estádio sublime e filosófico do existir, que, como uma estátua de mármore, existe apenas para existir. Muito afastado de ser lastimável, a inutilidade transcende as ansiedades, enquanto contempla o futuro e o absurdo com um sorriso sereno. Tantas foram as figuras ao longo da História comprovando que somente o inútil está livre do fardo de errar em nome de algo maior.

Pensemos em Diógenes, que habitava um barril e se ria dos poderosos; ou em Oblómov, que, na sua inacção gloriosa, expunha as falácias da diligência vazia; ou ainda em Bartleby, o escriturário de Herman Melville, que, com o seu lacónico “I would prefer not to”, desarmava a máquina burocrática, recusando-se a participar na engrenagem de uma sociedade que o consumia; ou até em Hamlet, cujo tormento metafísico o levou a preferir a hesitação à acção, descobrindo na contemplação do ser e do não ser o absurdo das escolhas humanas.

Todos, mesmo se de forma diferente, demonstraram que a inutilidade, longe de ser um defeito, pode mesmo ser uma forma de resistência ao ridículo da busca incessante de propósito. Assim, enquanto o mundo gira, apressado e distraído, o inútil permanece um observador imóvel da vaidade universal, e é nesse paradoxo que reside a sua força.

E não será a utilidade, afinal, uma ilusão criada para justificar a roda das conveniências? Aqueles que tentam ajustar o mundo às suas engrenagens raramente percebem que a verdadeira sabedoria está em reconhecer a beleza do imutável, do que não necessita de se justificar para continuar a ser. O inútil, como o mármore intocado, desafia o tempo ao não buscar a aprovação dele. Assim, mesmo que o resto do palco se desmorone, ele permanece — quieto, eterno e, por isso mesmo, superior.

Desta sorte, a lusitana política e a sua ultramontana burocracia vieram, por estes dias, sacudir o meu mais sublime e nobre estado de ocupação improdutiva, isto é, o descanso, por mor da nomeação de Hélder Rosalino, outrora um ilustre ocupante de uma posição permanente no Banco de Portugal, para a sinecura de secretário-geral do Governo, sendo que o debate sobre quem paga a mercearia do senhor acabou por eclipsar a dúvida metafísica sobre quanto custam, afinal, os desvarios da Nação.

Comecemos, por isso, com uma reflexão simples, mas fundamental: Hélder Rosalino é um homem útil? Não me refiro à utilidade óbvia de uma chaleira onde se ferve água ou de um cão que guarda a casa, mas à utilidade mais elevada, àquela que justifica a existência de certas figuras que transitam pelas engrenagens do poder. Não me parece.

Se Rousseau nos ensinou que a sociedade cria desigualdades artificiais, talvez possamos afirmar que também inventa utilidades imaginárias, preenchendo cargos que, mesmo vazios, continuam a existir como monumentos à própria vaidade e à validade do sistema. E Hélder Rosalino, como provarei com a minha tese, ou dissertação, é somente o último mártir deste culto à utilidade fantasiosa, fruto de futilidades que levam à inutilidade, ligada sempre aos contribuintes, que tudo pagam.

A filosofia utilitarista, que tanto encantou Bentham e Mill, deve ser aqui convocada como uma musa caprichosa. Afinal, sobre as questiúnculas da escolha e do salário do doutor Rosalino, os argumentos do Governo de Luís Montenegro nunca se centraram naquilo que ele produzirá, mas naquilo que se poupará. Ora, desde os romanos, que introduziram o conceito de utilitas, sabemos que a utilidade é aquilo que serve para alcançar um fim. Ora, aqui, o fim, ao que parece, não é outro senão a perpetuação de um sistema onde o Estado se alimenta da sua própria lógica circular. Hélder Rosalino é útil porque, sendo inútil no Banco de Portugal, passa a sê-lo no Governo, sem que ninguém, em momento algum, questione a natureza intrínseca da sua utilidade.

Transportemo-nos à Grécia Antiga, à ágora onde Sócrates inquiria: “De que serve um homem, senão para aquilo que melhor sabe fazer?” Se Rosalino não deixa lacunas ao sair do Banco de Portugal, e se, por outro lado, o cargo de secretário-geral do Governo poderia ser ocupado por alguém que auferisse muito menos, então a pergunta de Sócrates reverbera per saecula saeculorum: qual é, afinal, o real valor deste homem? Será ele um moderno herói do saldo orçamental, ou apenas mais uma peça deslocada no xadrez burocrático, cujo movimento é justificado pela conveniência de quem o manipula?

Ah, mas Luís Montenegro não deseja que o seu povo se perca em mesquinhezas terrenas, próprias de almas que jamais se elevam ao sublime horizonte da retórica oficial. Afinal, há uma certa elegância em transformar este sofisma magistralmente dissimulado numa retórica da poupança, um clássico exemplo de petitio principii. Rosalino impõe-se, ou é imposto, não pela sua incontestável utilidade passada, pela sua inequívoca utilidade presente e pela sua inevitável utilidade futura, mas pela graça de uma heroica poupança.

À primeira vista, a argumentação oficial ostenta-se como uma obra-prima de lógica. Pena ser uma lógica tortuosa.

Ao deslocar Rosalino, diz o Governo, evitam-se dois salários: o que seria pago a um novo secretário-geral e o que ele continuaria a auferir no Banco de Portugal. Assim, só haverá um, mesmo se principescamente pago. O vosso Luís Montenegro quer-vos crédulos, deseja que acrediteis que há uma poupança transferindo um encargo do orçamento do Banco de Portugal (independente do Estado, e até lucrativo) para o Erário Público, esse poço sem fundo que todos vós, contribuintes portugueses, alegremente alimenta. Que truque de prestidigitação! Que economia de narrativa! É como transferir um vaso de cristal rachado de uma sala para outra, esperando que, sob uma nova luz, brilhe como um rubi ‘pigeon blood’.

E aqui, invoco Maquiavel, que nos ensinou que os governantes, para se manterem no poder, devem mascarar as suas decisões com o véu da necessidade. Nada mais conveniente do que apresentar Hélder Rosalino como a solução ideal – não por ser o melhor homem para o cargo, mas porque já é um custo que existia. A isso chamaremos a virtù da poupança: o talento de transformar o inevitável numa virtude.

O astuto florentino, por certo, ficaria deliciado com esta lusitana intriga moderna, onde os interesses do Estado se confundem com os interesses individuais, e onde a necessidade de justificar decisões leva à invenção de realidades paralelas. Na verdade, a contratação de Hélder Rosalino para a secretário-geral do Governo não é o problema; ele personifica sim um sistema que vive da sua própria inércia, perpetuando cargos, salários e justificações que desafiam qualquer raciocínio padronizado.

O primeiro-ministro, ao defender que a utilidade de Hélder Rosalino no Governo é única porque não se encontraria melhor – e por isso o foi buscar ao Banco de Portugal – , comprova a inutilidade do dito, porquanto o Banco de Portugal anunciou já prescindir da procura de quem o pudesse substituir. Portanto, onde o Governo vê um Rosalino absolutamente insubstituível, e assumirá um encargo de 15.000 euros? o Banco de Portugal suspira por se livrar do Hélder, alguém perfeitamente dispensável, poupando 15.000 euros.

Eis o paradoxo lusitano em toda a sua glória: um homem que, segundo o Governo, é o epítome da excelência administrativa, ao ponto de não se vislumbrar igual no país inteiro, revela-se, noutra instituição pública, como uma ausência que nada altera, um vazio reconfortante. É como se um violino Stradivarius fosse removido de uma orquestra sem que ninguém notasse a diferença – ou, pior, como se a orquestra até passasse a tocar melhor. É como o Princípio de Peter ao contrário.

Maravilho-me com esta lógica oficial, como esta obra-prima da contradição: o insubstituível do Governo é o descartável do Banco de Portugal. Que exemplo magnífico de como a utilidade não reside no que se faz, mas no sítio onde se é colocado! A carreira de Hélder Rosalino é, pois, um testamento vivo à arte da reciclagem institucional: uma espécie de ouro alquímico da Administração Pública portuguesa, que brilha sempre que muda de gaveta, mas cuja essência, quando examinada de perto, se revela um eco vazio do absurdo burocrático.

E no entanto, que importa este vazio da utilidade, se enche, afinal, o meu tempo com reflexões deliciosamente fúteis? Confesso, que a existência de Hélder Rosalino é, para mim, de uma utilidade paradoxal: serve como pretexto para celebrar a inutilidade, essa sublime e filosófica condição que liberta o espírito dos desvarios da acção. E assim, involuntariamente, o novo secretário-geral do Governo transcende a sua própria vacuidade e torna-se uma inspiração para este meu fútil, mas prazeroso, exercício de escrita, permitindo-se um irrefutável silogismo condicional: se a utilidade é uma ilusão, a inutilidade pode ser, por certo, a mais elevada das verdades, mesmo estando inundada de futilidade.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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