Da Varanda do Varandas

Conto de Natal da Segunda Circular

lion lying on brown grass field during sunset

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A esperança da Humanidade concentra-se no bondoso coração dos seres humanos que, apesar das alterações climáticas e do ruído dos aviões, ainda acreditam no Pai Natal.

Eu acardito! – ensinou o criativo neolinguista Jorge, de apelido Jesus, numa conferência de imprensa bíblica e babilónica, no sentido babado do termo.

Ainda hoje tal ensinamento guia os espíritos eleitos e escolhidos para enfrentar as agruras diárias do futebol profissional.

– Acredito que vamos passar o Natal no primeiro lugar! – proclamou “mister” Bruno Lage para reanimar os 26 jogadores do plantel principal, cansados de correr em vão o ano inteiro, fardados de vermelho.

Eu também acredito! – ecoou a mesma mensagem, num português tão impoluto que até parecia latim, Rui Costa aos ouvidos dos 298.948 sócios que sobreviveram a Roger Schmidt e dos seis milhões de fiéis do Benfica, vivos e mortos, ávidos e desesperados pela luz da boa nova.  

E assim nasceu um conto de Natal nunca passível de ser sonhado por Shakespeare. O único escritor inglês mais famoso do que José Mourinho era temente a Deus e escrupuloso quanto baste para repudiar o enredo que ora vos venho apresentar. O “Conto de Natal da Segunda Circular” deverá antes ser creditado em desconto dos pecados do velhaco poeta António Ribeiro Chiado, por alguns autores considerado o mais remoto adepto encarnado a passar-se para o glorioso mundo espiritual e das estátuas.

Acredita, homem mortal:

Que lês? Que queres saber?

Aqui jaz quem has de ser.

No início de Dezembro, um remetente anónimo como os OVNI estrelados que, armados aos cucos, ou em águias, andam a sobrevoar o Pentágono e a Fonte da Telha enviou ao sr. presidente do Benfica um misterioso presente.  Vinha o dito cujo empacotado em papel de prata dourado, atado, de ponta a ponta e de par em par, por duas fitas pretas de licra, presas por colchetes, a recordar os espartilhos que nos velhos tempos decidiam campeonatos.

Assim que descerrou o embrulho, os olhos de menino da Damaia brilharam como estrelas, só de avaliar os valores, facial e simbólico, da inusitada oferta: uma jarra da Vista Alegre, colecção especial de Natal/2024, assinada pelo promissor designer Inocêncio C. B. O departamento de scouting apurou tratar-se de um atleta já observado num treino de captação, em Évora, e referenciado como sobrinho-neto do lendário artista da inolvidável e quase gloriosa tarde de 22 de Março de 1959, vivida e passada no antigo estádio.

Qual lâmpada de Aladino, do precioso bibelot vieram à luz um, dois, três, santa vaca do Presépio, um bando! de figurinhas de chocolate, de fabrico Ferrero Rocher: o Malheiro, o Melo, um Manso, outro Nobre, um Narciso, dois Freire, um Ferreira e o Manso repetido, entre outros, mais do que as mães, todos com nomes de reis magos prontos a satisfazer apetites e saciar desejos.

Estátua do poeta António Ribeiro, conhecido por Chiado, no largo lisboeta com o seu nome.

O maestro ficou tão comovido! Não logrou, sequer, reprimir lágrimas loucas de felicidade. Enxugou-as no seu lencinho branco de seda, oferecido por uma admiradora nos gloriosos anos de San Siro. Para ter subido aos altares, o santo bispo de Pavia tinha-a porventura mais comprida do que o Sérgio Conceição, que dois mil anos depois lhe vai seguir os passos. Aproxima-os o facto de ambos reverenciarem o Papa. Se o novo treinador do AC Milan lhe ofereceu muitas taças, San Siro é famoso por fornecer pães e peixes ao apóstolo Pedro. 

Rui Costa sempre olhou para este episódio como a pedra fundadora de uma corrente de virtudes. De lenço encharcado nas mãos e olhos perdidos nas bancadas vazias, deu-se conta do perturbador paralelismo histórico. Pela primeira vez, pôs a hipótese de o mesmo estar na origem do pecado da multiplicação de pontos.

Com o cuidado de um carregador de andores de relíquias, o menino-presidente pendurou as figurinhas, uma a uma, olhos nos olhos, no pinheirinho do seu espaçoso escritório de vistas amplas para o terceiro anel, com ar condicionado da marca Vitória e casa de banho revestida a mármores Carrara a azulejos grená. E rezou a todos a mesma oração, respeitosamente personalizada pelo evocativo.  

– São Manso, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

Santinho Malheiro, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

Os VAR, para as leitoras do Benfica que detestam futebol, mas abençoam o entretenimento dos maridos, são uma novel espécie de árbitros, da família dos OVNI, razão para as ostensivas letras maiúsculas. Constituem o produto mal acabado, em permanente evolução, ou degenerescência, de uma inesperada conspiração entre as novas tecnologias e as velhas baixezas da condição humana. Usam muitas ferramentas, como imagens de alta definição, drones, sensores, animações 3D, “câmaras de curtos” (sic) e outras ainda mais esclarecedoras e por isso protegidas do olhar devasso do grande público. Quanto às deficiências físicas, tiveram origem em pandemias investigadas, para arquivamento jurídico-sanitário, nos anos oitenta do século XX: cegueira oblíqua, escoliose vertebral e balanite dos apêndices.

Quando surgiram, no princípio deste século, os VAR pareceram aos incautos “lufadas de ar fresco”, curiosa expressão de grande riqueza semântica nos balneários e prostíbulos. De auscultadores e microfone, pareciam relatadores de futebol isentos e lavadinhos, imunes a tão decadentes doenças. Desgraçadamente, com o passar do tempo, esse juiz de todos nós, foram superando pruridos e preconceitos. Tal e qual como esperado pelos peritos mais experientes no campeonato nacional, tornaram-se umas verdadeiras máquinas de fazer e desfazer golos, muito jeitosas na violação de campeonatos e no abuso das almas inocentes.

– Creio nos anjos que andam pelo Mundo – cantou a poeta Natália Correia, que tanta falta nos faz para conhecermos, verdadeiramente, o outro “mundo” que nos rodeia. Em todas as áreas, até no futebol, os mais virtuosos portugueses levam este maravilhoso verso à letra. 

Eu acredito neste Conselho de Arbitragem! discursouo dr. Varandas, que é maior e vacinado, na consoada do clube.

E tenho uma grande fezada no João Pereira! – confidenciou, neste caso em privado, a um apreensivo Hugo Viana.

Esta solene profissão de fé cozinhou o mais generoso bodo aos pobres de que há memória na Segunda Circular. Foram sete jogos e 45 noites a esvaziar a despensa para engorda do adversário, à velocidade do Airton Senna às curvas no Mónaco. Quando se sentiu a bater num muro, o dr. Varandas desligou a Netflix e deixou a orgulhosa devoção masoquista cair morta na cama.

– Peço muita desculpa pelo presente envenenado.

Visionário declarado, como o Grande Chefe Passaláqua, num instante lambeu as feridas e no seguinte desembainhou a solução com recurso às mesmas armas.

Há mais de um ano que Rui Borges estava no meu radar.

De Carnide a Buenos Aires, os jogadores do Benfica continuaram a passar o Natal felizes e descansados, indiferentes a manobras militares e sem especiais preocupações de organização defensiva. À hora marcada para o jogo, levantaram-se do colchão de neve do primeiro lugar do campeonato e subiram ao relvado de Alvalade como renas da Lapónia, a dar toques de calcanhar com botifarras de marca.

– Acardita, Ángel!

Enquanto teve voz, “mister”Lage puxou pelos seus campeões do mundo de garrafinha na mão, a ver se aos golinhos de água lhes mostrava com cristalina transparência o caminho para o golo.

Atira-te a ele, Nicolás!

Só parou de gritar quando àqueles dois falharam as pernas e a ele estoirou na garganta a última corda vocal de barítono do Teatro Luísa Todi.

Do outro lado, um treinador da temperança dos cavalos criados nas fráguas, preparou o jogo com a astúcia dos lobos da serra do Alvão.

Creide que sodes la meyor equipa del campeonato!

Disposto a acatar a mensagem, a estrela da equipa passou três dias e três noites a ler um dicionário bilingue sueco-mirandês, entremeado com o bestiário de Miguel Torga. E assim Viktor Gyökeres chegou à brutal iluminação táctica de que representa em campo a força indomável do Gävlebocken, bode com mais de 13 metros de altura, exibido em Dezembro no centro da sua terra Natal.

Du kan inte stoppa mig så!

Bem-dito, melhor traduzido em campo. Aos 29 minutos, deixou para trás as oito chuteiras dos defesas e fugiu com as canelas para a linha de fundo. Eles ainda torceram o pescoço para ver, como no cinema, uma bola amarela e redondinha como o milho cruzar a capoeira que juraram defender, de mão no peito e cabeça na conta bancária.

Génio do Catano treinou nas tradicionais “corridas à galinha” dos natais da sua infância para ser o primeiro a chegar a estes cruzamentos com a história.  

Cocorococóoo-cóoooohhh! – cantou a bola, ao sentir a pancada viril do atacante moçambicano.

Estava manifestamente com saudades e desejos daquela inesquecível jogada nocturna que fechou o derby e as contas quanto ao campeão da época passada. A expensas e penas do velho e querido rival, o leão do Delta do Zambeze tornou a abrir a juba para a eternidade.

 – Que seja um bom Natal, para todos vós!

O Natal de 2024 vestiu-se de vermelho por seis dias e uma solitária jornada. O Chiado passou essa semana a decretar alerta vermelho à saída do metropolitano, mas ninguém o quis ouvir.

Tudo passa n’um momento,

como bem se manifesta.

Tudo não tem fundamento,

tudo acaba, tudo é vento,

(…)

tudo é de pouca dura,

o tempo tudo despeja.

Antes de se despedir, o aliviado autor desta crónica agradece as leituras e pede, envergonhado, um desagravo por ter dito nas vésperas do jogo que não acredita no Pai Natal. Felizmente, como merecia, foi desmentido a tempo pelo sr. secretário de Estado das Infraestruturas.

Vamos inaugurar o Aeroporto Luís de Camões com uma pista para o Pai Natal aterrar e um hangar para as renas – anunciou o dr. Hugo Espírito Santo, na mensagem oficial de boas-festas do ministério, inclusiva de pessoas e animais.

A julgar pelo nome, este divertido e bem-humorado governante deve ser adepto do Sporting. Depois do derby, ainda na tribuna reservada aos jornalistas, compreendi finalmente os seus planos para a expansão aeroportuária de Lisboa. Não passam, afinal, de um caminho ardiloso para viciar o campeonato.

– Como poderão Di María e Otamendi, sempre que forem passar o Natal à Argentina, aterrar a cinquenta quilómetros do estádio – e ainda assim chegar a tempo às jogadas?

Foi pena nenhum deles ter comparecido na sala de imprensa. A pergunta passa a ser retórica e deixo aos leitores a resposta.


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