Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta vigésima segunda edição, a pretexto da trasladação de Eça de Queirós para o Panteão Nacional, o piparote de Brás Cubas desanca os ‘homenageadores’, dissecando uma taxonomia.
Dizia alguém com vivaz conhecimento, com aquela filosofia que somente a contemplação do túmulo inspira, que os mortos são o espelho mais cruel das vaidades humanas. Concordo, e sem pesar, antes sim com a serenidade de quem, do outro lado da vida, já alcançou a verdade sem as véstias do interesse ou do temor. Sim, minhas dilectas leitoras e meus ilustres leitores, os mortos têm a única qualidade que os vivos não podem jamais ostentar: a paciência infinita. Eles não protestam, não se queixam, não corrigem as palavras pomposas que lhes dedicam. São, portanto, os alvos perfeitos para a celebração tardia e o reconhecimento póstumo, essas moedas de pequeno valor com que os vivos compram a absolvição de suas omissões e negligências.
Vejo-os, a esses vivos, debruçados sobre lápides, declamando discursos solenes, regados às lágrimas mais dramáticas que o teatro jamais ousou representar. Vejo-os encomendando bustos, erigindo monumentos, publicando panegíricos e elegias que celebram as virtudes dos mortos com uma efusão que, em vida, se restringia a frias reverências ou, pior ainda, a silêncios calculados. E porquê? Porque é mais fácil amar o que não pode mais competir, mais fácil exaltar o que já não desafia, e mais cómodo honrar o que, debaixo da terra, bem calcado pelo tempo, sequer pedirá contas.
Talvez seja essa, sim, a verdadeira utilidade dos mortos: alimentar o teatro dos vivos, essa encenação contínua de grandeza e moralidade que esconde, sob as cortinas de veludo, os fios de egoísmo e conveniência que realmente movem os actores. Não pensem, porém, que os condeno; até mesmo na cova reconheço que, sem esses fingimentos, a vida seria um palco vazio, e o homem (ou mulher), um actor (ou actriz) sem papel.
Eu, Brás Cubas, observo estas manobras com o regozijo de quem está definitivamente morto – e, ainda melhor, fictício. Por exemplo, não tenho ossadas que possam ser trasladadas de um lado para o outro, nem jazigos que possam ser reabertos para ajustes protocolares. A minha inexistência física protege-me das agruras póstumas que esta semana recaíram sobre Eça de Queirós, esse meu contemporâneo lusitano, que em vida foi mais incómodo do que celebrado, e que, depois, na morte se tornou um ícone nacional, passível de ser transportado como se os seus ossos tivessem adquirido poderes mágicos. Coitado do homem que só soube que ‘Os Maias’, essa celebrada epopeia doméstica com incesto à mistura, tinham tido segunda edição uns 13 anos depois da primeira, já ele andava a comer capim pela raiz há um ano no cemitério do Alto do São João, desagradado por não o terem metido em Verdemilhos, nos arrabaldes de Aveiro.
E coitado depois, porque em 1989, os vivos decidiram retirá-lo de Lisboa e levá-lo para Tormes, junto à quinta que ele imortalizou n’A Cidade e as Serras. Parecia um destino apropriado, poético até, para um escritor que tanto exaltou a simplicidade e a ligação à terra. Mas a paz dos mortos é algo que os vivos não conseguem respeitar. Agora, metem as ossadas de Eça de Queirós, ou o que resta, na fria igreja de Santa Engrácia, de novo em Lisboa, a que chamam Panteão Nacional, depois de uma quezília familiar ter sido dirimida pelo Supremo Tribunal Administrativo que foi chamado a resolver o que fazer aos (poucos) restos (já) mortais do “Escritor GG”, conforme consta no acórdão divulgado publicamente.
GG, meu caro Eça! Que dirias tu!
E que dirias tu, também, dos 75 mil euros doados pelo Ministério da Cultura à fundação com o teu nome, convenientemente oficializado pela ministra Dalila Rodrigues, quando te foram buscar os fémures e a caveira a Tormes? Presumindo que, ao fim de 125 anos, te restem das relíquias calcárias uns cinco quilos, convenhamos que o preço do teu cacareco anatómico está bem valorizado…
Enfim, esta tua nova trasladação é tudo menos um evento cultural; é uma oportunidade, como tantas outras, para os vivos se enaltecerem enquanto fingem enaltecer os mortos. E, por isso, que melhor momento para reflectir sobre a tipologia dos políticos e outras vivas aventesmas e abutres que se dedicam a tais empreitadas? Sim, porque os mestres das vaidades têm estilos bem distintos de homenagear, dependendo do estado físico do homenageado.
E é assim com prazer que vos apresento, esclarecidas leitoras e nobres leitores, a minha taxonomia dos Politicus Homenagiator.
1. Politicus Salutatus, o louvaminheiro do efémero
Comecemos pelo tipo mais previsível: o político que adora homenagear os vivos, desde que estejam de boa saúde e ainda possam retribuir com um sorriso ou, melhor ainda, com apoio público. O Salutatus é o rei das medalhas, dos convites para conferências e dos discursos em que mistura banalidades com frases atribuídas erroneamente ao homenageado.
Mas há um detalhe crucial: este tipo só homenageia quem pode retribuir – com um sorriso, um aperto de mão, ou, melhor ainda, com votos e apoio público. Não esperem que se aproxime de um moribundo ou de um defunto; para ele, a morte é demasiado deprimente e, pior, não rende boas selfies.
Se há algo que caracteriza o Salutatus é a incapacidade de lidar com a finitude. Ele é o político da celebração fácil e do instante. Por isso, raramente lê as obras dos escritores que enaltece ou reflecte sobre a profundidade das suas contribuições. Não, para ele basta um nome conhecido e a certeza de que a homenagem será bem recebida.
Se tivesse tido a oportunidade de lidar com Eça, ainda vivo, talvez o Salutatus o tivesse chamado para um evento literário onde proclamaria: “É um orgulho homenagear o autor de ‘Os Maias’, essa obra que tão bem descreve o amor de Pedro e Inês.”
Nos tempos modernos, certos Salutatus adaptaram-se às redes sociais. Agora, em vez de salões, preferem selfies. Publicam fotografias ao lado de celebridades ou de monumentos que nunca visitaram antes, legendando com hashtags como #Gratidão #Patriotismo #EuSouOMaior. Para ele, a homenagem é um espectáculo digital onde o número de likes substitui os aplausos.
2. Politicus Moribundis Praeparator, o exaltador crepuscular
Mais subtil, o Moribundis Praeparator espera que um fruto maduro esteja quase a cair da árvore para aparecer. Prefere agir quando o homenageado está em fase próxima dos pés para a cova. Este tipo tem um sentido apurado de timing: o moribundo ainda está vivo, mas já frágil o suficiente para não rejeitar a homenagem, mesmo que esta seja tardia.
Estamos perante o político que entrega medalhas e faz discursos emocionados com frases como: “Reconhecemos em vida o que a história eternizará na morte.” Ou então dos júris que entregam prémios literários ou comendas quando o homenageado já se entregou à tremida abnegação do senhor Parkinson ou à ternura distraída da dona Alzheimer. É sempre comovente ver a emoção fingida perante a a grandeza alheia, sobretudo quando esta já foi devidamente reduzida a uma sombra trémula ou a uma memória esfarrapada.
No fundo, o Moribundis Praeparator faz um investimento de risco zero: celebra-se um génio que já não pode protestar pela hipocrisia do tributo ou recusar a honraria por falta de estima ao emissor. Afinal, nada como o declínio físico ou mental para tornar qualquer talento ainda mais palatável aos discursos engravatados e às ovações bem-comportadas.
3. Politicus Cadavericus Calidus, o abutre oportunista
Este é o abutre mais ágil, que se atira à vítima mal o coração pára de bater. Assim que o último suspiro é dado, o Cadavericus Calidus entra em acção. Não perde tempo, porque sabe que a memória dos mortos tem prazo de validade e deve ser explorada enquanto ainda está fresca na mente do público. Por isso, corre a vigílias e a cerimónias fúnebres, encomenda flores, esboça elogios póstumos e, entre soluços ensaiados, ainda encontra tempo para sugerir um busto ou uma rua com o nome do falecido. Para ele, a morte é uma oportunidade que não pode ser desperdiçada.
Mas não vos deixeis enganar: por trás do sorriso contrito e da voz embargada, há um estratega. O Cadavericus Calidus sabe que um tributo no momento certo é ouro em relações públicas, pois quem ousaria criticar um homem que presta honras a um defunto? Melhor ainda se o homenageado tiver sido, em vida, um opositor ou um crítico: nada como a clemência póstuma para encerrar contendas ou pavimentar a própria imagem com as lágrimas dos outros.
E se o morto for uma figura ilustre? Ah, então é uma festa! Discursos inflamados sobre “legados eternos”, promessas vagas de “não deixar a memória apagar-se” e, claro, a inevitável foto ao lado do caixão, com aquele olhar perdido que mistura saudade e ambição. No fundo, a morte não é o fim; é o princípio de uma excelente oportunidade.
4. Politicus Trendycus Funeraris, o caçador evocativo
Este tipo é o camaleão das homenagens. O Trendycus Funeraris não escolhe os mortos pelo seu legado ou importância, mas pela popularidade que granjeiam em determinada época. Ao perceber que alguém já esquecido se tornou novamente relevante – seja por um filme, uma reedição de obras ou um centenário –, rapidamente associa o seu nome àquele vulto.
O Trendycus Funeraris é um leitor ávido… de resumos. Por exemplo, nunca leu ‘Os Maias’, mas adora citar “Portugal é um país admirável!”, mesmo se tal frase nunca tenha sido escrita pelo Eça. Ele aparece em cerimónias culturais com um ar reflexivo, segura livros para as câmaras e, em discursos, fala de “imortalidade” com a desenvoltura de quem confunde eternidade com um mandato de quatro anos.
Por vezes, promete uma placa, uma rua, um busto – e quando a poeira da relevância se assenta, os mortos retornam à penumbra do esquecimento, enquanto o Trendycus Funeraris segue em busca de outro defunto que possa lustrar a sua própria glória. Se por um acaso, a placa, a rua e o busto se concretizam, o dinheiro vem do povo, mas o seu nome é que surge associado – não como um mecenas, mas como o grande benfeitor que “jamais esquece os grandes nomes da nossa História”.
Não vos espanteis, por isso, se o encontrardes a exaltar um autor de quem nunca ouviu falar ou a defender a “importância da cultura” enquanto tropeça num verso de Camões. Para ele, o acto de homenagear é um palanque, uma vitrine, um trampolim. E assim, transforma os mortos em degraus para sua própria imortalidade pública. Por vezes, espatifa-se no ridículo, podendo até enviar votos pessoais de sucesso editorial a escritores fenecidos há uma centúria.
5. Politicus Ossiphagus, o profanador cerimonial
Finalmente, o mais perigoso: o Politucus Ossiphagus. Este não se contenta com homenagens simbólicas; ele precisa de mexer, literalmente, nos ossos. Não está interessado em monumentos, discursos ou memórias; ele quer ossos. Abre covas, parte lajes, escancara jazigos, e tudo com ânimo solene de grande obra cívica. Para ele, desbravar os esconsos esconderijos onde repousam os restos de um morto ilustre é como picaretar uma mina de ouro – ou, pelo menos, assim parece.
Assim, no caso do Eça, os ossos são como uma relíquia sagrada, mas não no sentido espiritual – são uma oportunidade de brilhar no palco da política nacional. Ele não se importa que as relíquias do escritor até tenham encontrado repouso em Tormes, junto à Natureza que tanto exaltou, ou que melhor ficariam em Verdemilho, como era seu desejo. Para o Ossiphagus, os quereres ou a paz dos mortos é secundária ou terciária; o que importa é a pompa, o desfile, a oportunidade de pronunciar discursos vazios sobre a “grandeza nacional”. Se os ossos fossem capazes de protestar, o Ossiphagus ainda assim os moveria – e chamaria a isso “dever cívico”.
Ah, o Politicus Ossiphagus! Que bela ironia encarnada: aquele que, na tentativa de elevar os mortos, acaba por descer à mais grotesca das vaidades. Não basta, para ele, transferir o crânio, a mandíbula, as vértebras, as clavículas, as escápulas, o esterno, as costelas, os úmeros, os rádios, as ulnas, a pélvis, os fémures, as tíbias, as fíbulas, as falanges, das mães e dos pés, os metacarpos e os metatarsos – ou o que restar. É preciso transportar também o peso do seu próprio ego, embalado, em mil cuidados, por enternecedores discursos e poses para a posteridade. Afinal, que outro gesto mais simbólico do que o de remexer nas entranhas do passado para assegurar o futuro da sua própria reputação? Enquanto proclama que “a História o exigia”, ou que “o Eça é do país inteiro“, não percebe que o único exigente ali é o espelho onde contempla sua glória, e os ossos que traslada são meras marionetes neste teatro de farsas grandiosas.
E assim termino esta galeria de figurinhas e figurões que tanto lutam para celebrar os mortos, mas raramente para os compreender. Felizmente, sendo eu um morto fictício, não corro o risco de cair nas mãos de nenhum destes tipos. Quanto ao Eça… bem, sempre foi homem pacífico; de contrário, pegaria numa das suas tíbias e seria o primeiro defunto a descer do pedestal literário para ajustar contas com esses aduladores tardios. Imaginem a cena: Eça, elegante mesmo na sua ossada, brandindo a tíbia como um espadachim, a pôr em fuga políticos e oportunistas que, sob o pretexto de o homenagearem, usam-no como trampolim para suas próprias vaidades. Seria, sem dúvida, um momento digno: o duelo póstumo entre o autor e os arautos do elogio vazio.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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