Tanto mar

Brasil: Esquerda, volver ou Os riscos de um ‘cenário Biden’ em 2026

sea waves on brown shore at daytime

por Arthur Maximus // Janeiro 9, 2025


Categoria: Opinião

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O ano é 2023. O começo de um sonho.

Lula da Silva acaba de assumir, pela terceira vez, a Presidência da República. Eleito numa disputa acirradíssima contra o incumbente, Jair Bolsonaro, Lula dá-se conta do recado que as urnas mandaram-lhe. Sem se preocupar com a reeleição e desprezando as picuinhas típicas do ofidiário brasiliense, o babalorixá petista resolve governar com os olhos voltados para a História. Ao invés de promover um “governo do PT”, Lula coordena um governo de união nacional, refletindo a “frente ampla” responsável pela derrota da máquina bolsonarista. O troféu de “Getúlio Vargas do Séc. XXI” encontra-se ao alcance da mão.

O ano é 2025. Deu tudo errado.

Ao contrário do que se desenhava, desde quando assumiu, Lula e seu inner circle parecem ter acreditado que a esquerda – mais especificamente, a esquerda representada pelo PT – ganhou sozinha a eleição. Disso resultou um governo mais à sinistra do que os votos que o elegeram. Ao invés de Fernando Haddad e Simone Tebet, Gleisi Hoffman e Lindenberg Farias. Ao invés de moderação, confronto. Ao invés de Henrique Meirelles, sinais inquietantes de que os erros da tal “nova matriz macroeconómica” (que levaram à débâcle econômica de 2015-2016) não foram assimilados. Ao contrário de tornar-se o Vargas do Séc. XXI, Lula arrisca a tornar-se “Dilma II”.

Lula da Silva

O que aconteceu nesse intervalo de tempo?

Vencedor do pleito mais disputado da nossa breve história democrática, Lula estava careca de saber que iria assumir um país fraturado até a medula. Não só porque o antipetismo – presente desde sempre em todas as eleições presidenciais de 1989 até 2022 – estava lá novamente, mas porque o seu antípoda – o bolsonarismo – havia cupinizado as instituições da República, a ponto de tornar possível uma tosca tentativa de golpe no dia 8 de Janeiro de 2023. Lula sabia que precisava de uma “frente ampla” para derrotar Bolsonaro. O que ele parece não ter entendido, contudo, é que ele também precisava de uma frente ampla para governar o país após tomar posse.

Em 2003, quando assumiu o governo pela primeira vez, a esquerda não era tão minoritária no Congresso como é agora. Além disso, com o centrão da época, espelhado no velho PMDB, era possível negociar em termos razoáveis, na antiga base do “toma-lá, dá-cá” das emendas parlamentares. Hoje, além de a esquerda estar reduzida a menos de 1/3 do parlamento, o centrão de hoje esbaldou-se nos dinheiros do orçamento que foram sequestrados durante o desgoverno Bolsonaro. Como a Jair não interessava outra coisa senão passear de moto, jet ski e tentar organizar um golpe de Estado, o centrão vendeu os seus serviços em troca do assenhoramento de praticamente toda a verba discricionária existente no orçamento da União.

Sem maioria congressual e com instrumentos reduzidíssimos para cooptar algo que se pudesse assemelhar a uma “base de apoio”, a Lula restava manter os compromissos que firmara durante a eleição, ou seja, trazer para seu barco toda a gente que se dispusesse a reconstruir o país, de modo a garantir a democracia tão duramente conquistada pela geração anterior. Ao invés de fazer isso, Lula loteou os principais centros de distribuição de poder entre petistas e empalhou duas de suas maiores estrelas (Marina Silva e Simone Tebet) em ministérios que, se não se pode dizer que sejam irrelevantes, possuem pouca ou nenhuma expressão real de poder.

national congress, brasilia, building

Em um cenário ideal, Lula viajaria o mundo, vendendo o país com a ajuda de sua extraordinária história política, e deixaria a um preposto (Geraldo Alckmin?) o papel de ser o “primeiro-ministro” na sua falta. Desse modo, a roda continuaria a girar por aqui e Lula seguiria a fazer aquilo que mais gosta: posar de líder global frente à mediocridade geral das lideranças dos países ricos. O que ocorreu, ao contrário, foi que Lula continuou a viajar e, na sua ausência, ninguém ficou empoderado para resolver as divergências políticas do dia-a-dia. Resultado: crises e paralisia da máquina, tudo à espera dos retornos do Presidente para arbitrar os conflitos entre os seus ministros.

Como se isso não bastasse, ao caos administrativo somam-se agora dúvidas quanto à saúde de Lula. Pela segunda vez em dois meses, o Presidente foi internado para tratar de uma lesão sofrida na cabeça. Ninguém até agora entendeu direito como foi a dinâmica do acidente, mas é certo que ele atingiu a região occipital do crânio, mais popularmente conhecida como nuca. Da queda resultaram cinco pontos e uma cicatriz na cabeça.

Se Lula fosse apenas mais um velhinho de 79 anos, não seria nada de mais. Infelizmente, as quedas em idosos dessa idade são bastante comuns e, tanto quanto problemas respiratórios ou gastrointestinais, são as maiores responsáveis pela morte nessa idade. Quando não matam directamente, por vezes as sequelas acabam resultando em agravamento posterior do quadro. É o que ocorre, por exemplo, com lesões que fraturam a cabeça do fémur, de cujo pós-operatório muitos idosos não retornam.

Mas Lula não é somente mais um octogenário. Ele é o Presidente da República. E não qualquer Presidente da República, senão um sujeito que foi eleito três vezes para o cargo e encarna como nenhum outro a idéia de esquerda no país. Sabendo disso, parece no mínimo temerário o modo com o qual governo tratou essa segunda internação de Lula. Nesse tipo de situação, jogar aberto é sempre a melhor alternativa. Voluntariamente, escondeu-se o quadro de saúde do Presidente até que vazasse a informação de que ele havia sido transferido para o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

Para piorar, depois de terem avisado que tudo correra bem na cirurgia de emergência, o país descobriu sobressaltado que Lula faria uma nova cirurgia. Dessa vez, para cauterizar uma artéria e impedir a recidiva de sangramento na região em que ocorrera a lesão. Segundo os próprios médicos, tal procedimento já estava previsto e não implica maiores riscos para o paciente.

Se é assim, por que não foi informado isso logo após a primeira cirurgia? E por que, com o Presidente internado na UTI, o cargo não foi transmitido ao seu vice, Geraldo Alckmin?

Lula da Silva com Geraldo Alckmin durante a campanha eleitoral de 2022.

A forma atabalhoada com a qual tudo foi feito dá margem à interpretação de que o governo não confia no seu vice. Isso seria uma rematada tolice. Ainda que possa existir algum trauma pela forma através da qual Michel Temer operou para derrubar Dilma Rousseff, Alckmin definitivamente não é Temer. É um político leal, absolutamente cioso das responsabilidades que lhe incubem como substituto do titular. A última coisa que se esperaria dele seria aproveitar esse episódio para destronar Lula do posto.

Esse episódio, todavia, força a antecipação do debate sobre o destino do país nas próximas eleições presidenciais. Se no pleito de 2022 a grande briga era garantir que Bolsonaro perdesse e que seu sucessor assumisse o cargo, em 2026 a luta vai ser impedir que vença um candidato apoiado pelos Bolsonaro ou, ainda que não seja apoiado diretamente por eles, esteja disposto a anistiar os golpistas todos em prol de uma suposta “pacificação” do país.

Nesse sentido, o exemplo que vem dos Estados Unidos não poderia ser mais claro. Joe Biden foi, em 2020, o que Lula foi para nós em 2022. Mesmo assim, quatro anos depois, com um governo impopular e com suas faculdades mentais sob questionamento, Biden foi defenestrado da corrida presidencial na undécima hora. Sua substituta, Kamala Harris, não teve tempo hábil para construir uma plataforma de campanha que impedisse a vitória de Donald Trump.

Lula não é Biden, nem em termos de popularidade, nem em termos de capacidade mental. Entretanto, não parece ser um risco negligenciável chegarmos a 2026 com uma economia em frangalhos – cortesia da absurda alta dos juros no ano passado -, talvez em recessão, certamente com desemprego em alta. São factores que detonam o potencial eleitoral de qualquer incumbente. Se somarmos a isso eventuais questionamentos sobre a saúde do candidato, teremos uma reprise do “cenário Biden”, por mais que Bolsonaro permaneça inelegível.

O pior que pode acontecer nesse cenário seria Lula continuar no cargo e começar a experimentar um declínio na sua saúde, tanto física quanto mental. Por mais que se queira esconder essa circunstância, uma hora a verdade vem à tona, como aconteceu após o primeiro debate de Trump contra Biden. E aí poderá ser tarde demais para construir uma alternativa eleitoralmente viável para impedir o retorno da extrema-direita ao Planalto.

man in black jacket standing in front of glass building

Sabendo disso, o pessoal da cozinha do Planalto deveria começar a vacinar-se contra essa possibilidade. Caso Lula esteja de facto com a saúde em dia e as consequências da sua queda limitem-se a essa última internação, muito bem; vida que segue. Mas, se houver dúvidas sinceras sobre a evolução do seu estado de saúde daqui até 2026, a hipótese de ele renunciar em prol do seu vice deve começar a ser tomada a sério.

Um eventual acordo de bastidores poderia girar em torno da promessa de Alckmin cumprir apenas um mandato e apoiar Fernando Haddad em 2030. Saindo de cena, Lula ainda permaneceria como grande “guru” político do seu campo, aquele a quem todos acorrem nas piores crises, mas sem carregar o ónus e o desgaste da labuta presidencial. Em suma, Lula só participaria dos lucros, não dos prejuízos.

Evidentemente, também esse cenário envolve riscos. Ninguém sabe ao certo como seria um eventual governo Alckmin, nem muito menos como ele iria tourear os diversos interesses em conflito no governo, inclusive dentro do próprio PT. Ainda assim, esse cenário parece menos arriscado do que o cenário Biden, ainda mais se o país chegar em crise económica em 2026, como está a desenhar-se.

an american flag flying in the wind on a cloudy day

Seja como for, o que se coloca agora são basicamente três hipóteses:

1) Fica tudo bem, Lula parte para a reeleição e ganha um quarto mandato do povo. Lula torna-se definitivamente o maior político brasileiro de toda a história republicana;

2) Bem ou mal, Lula renuncia e deixa Alckmin na linha de frente do governo, passando a atuar nos bastidores pela vitória em 2026. Lula será eternamente lembrado como o sujeito com desprendimento suficiente para colocar o futuro do país acima de seus interesses pessoais;

ou

3) Lula permanece no governo, com a saúde física e mental deteriorada. Nessas condições, perde a eleição para um Bolsonaro ou um proxy dele. Nesse caso, Lula ficará para a posteridade como um Biden brasileiro, que permitiu o retorno do neofascismo por ego ou por mero apego ao poder.

Aconteça o que acontecer, Lula terá garantido seu lugar na História. A questão, agora, é saber qual será esse lugar.

Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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