Fala um agave
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Caminhar à beira-mar ao início da manhã. É a maneira mais natural de começar muitos dos meus dias. Olho distraído, sem interesse, os transeuntes que, como eu, andam de um lado para outro sob as palmeiras e nem sequer invejo os banhistas que vão à procura de um bronzeado do sol escaldante e que hão-de mergulhar na água em busca de alívio. Os meus olhos são atraídos pelo movimento das ondas, pela mudança da superfície arenosa, pelas poucas pedras que surgem aqui e ali, pelas plantas dispostas de acordo com geometrias humanas por vezes artificiais. Mas elas não obedecem à vontade dos outros, sentem-se livres de viver segundo o seu destino e, como seres livres, expressam a sua alma, falam-nos ao coração, se as soubermos ouvir com humildade.
O agave estava ali onde o tinha ultrapassado sabe-se lá quantas centenas de vezes, mas agora eu estava parado na sua frente e fixava-o como, não sei porquê, nunca fizera antes. A sua folha mais externa estava marcada por inúmeras lacerações, profundas e quase todas sobrepostas, fruto de repetidas ofensas cometidas por um vil e anónimo Caim. As feridas sobre aquela pele lisa de seda verde chocaram-me, o sol e a atmosfera de veraneio afastaram-se para longe daquela abominação. Ressoaram então na minha mente as frases solenes e suplicantes do responsório do Sábado Santo «O vos omnes qui transitis per viam»[1] (das Lamentationes de Jeremias 1,12); tinha ficado petrificado e parecia ouvir o ditado sagrado «Attendite et videte, si est dolor sicut dolor meus»[2].
A natureza mostrava os seus sofrimentos, mas não bastava que eu me limitasse à compaixão miserável e superficial do momento, ela queria com essa visão abrir a minha consciência para as dores do mundo, ela queria que eu lembrasse que o Cordeiro de Deus cuida delas todos os dias, como todos os dias em que vivemos e nos divertimos – até na praia pouco distante –, mas também todos os dias em que ficamos surdos às tragédias dos outros ou nos matamos entre irmãos. Diante daquela majestosa planta torturada, eu ainda poderia recorrer ao Senhor: «Par l’horreur de ce dernier vêtement qu’on vous retire, Ayez pitié de tous ceux qu’on déchire»[3] (Paul Claudel, Le Chemin de la Croix, 10ª estação).
Mas permaneci inerte e chorei. Fui-me embora sem querer mais ver o mar luminoso de Junho.
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Antonio Delfino é Professor da Universidade de Pavia (em Cremona)
[1] Ó todos vós que passais pelo caminho.
[2] Prestai atenção e vede se há uma dor semelhante à minha dor.
[3] Pelo horror desta última roupa que vos é tirada, Tende piedade de todos aqueles que dilaceramos.