“Não avançamos
Por nenhum caminho
Já aberto –
Avançamos
Levando mais além o âmago
Raptor,
De fonte latejante
Drenando um deus
Pequeno
Mas vivo.
Filipe Jarro
CARTOGRAFIAS
A mudança de ano condena-nos à vivência de mais um reinado Donald Trump, com a certeza de que teremos de ouvir mais chorrilhos de tolices e de que o mundo não ficará mais bonito. Falei-vos da sua declaração de campanha de que em dois minutos de briefing percebeu tudo o que havia a perceber, o que levava à promessa de que os americanos podiam ficar descansados porque ele é o pai da fertilização in vitro. E mais: vai torná-la grátis para todos os interessados. Se a primeira declaração era de uma estupidez que faz doer, a segunda é de uma demagogia que não se aguenta – termos de ouvir o homem que mais esperneia contra os cuidados de saúde acessíveis para todos os residentes prometer que vai oferecer-lhes de graça um tratamento muito caro que é procurado há décadas por milhões de casais, em clínicas que operam para proveito próprio. Tudo isto para parecer mais moderno do que os fundamentalistas do seu partido que estavam a levantar a voz porque os embriões já eram pessoas e, portanto, congelá-los era um crime. Tudo isto volta a levantar a velha pedra de toque do grande caos que vai na cabeça das pessoas sobre a diferença entre um embrião e um feto. E isso, infelizmente, não acontece só na Améria – os americanos apenas fazem mais barulho. Vale a pena aproveitar a oportunidade para tentar, outra vez, por as coisas no sítio.
Na vida real, a aventura embrionária é uma montanha-russa de um mês, regulada por três tipos de hormonas diferentes: as gonadotrofinas, que vêm do cérebro, e fazem o ovário amadurecer um dos seus ovos; os estrogénios, que vêm do ovário, e regulam a ligação desse ovo com o espermatozoide mais capacitado para a tarefa; e, finalmente, a progesterona, que participa activamente na ligação do embrião às paredes do útero. Estas tarefas devem estar todas prontas ao fim de um mês, ou, mais apropriadamente, ao fim do equivalente a um ciclo lunar[1]. Se não estiverem é porque não houve embrião, pelo que não houve fertilização. Assim sendo, ao fim de alguns dias depois deste ciclo, o cérebro envia mais gonadotrofinas para o ovário para que o ciclo comece outra vez.
Quando o ovo por fertilizar[2] cai do ovário para a Trompa do Falópio, inicia uma jornada até ao útero em que pode, ou não, encontrar-se com espermatozoides pelo caminho. Se não encontrar nada, o revestimento nutritivo que, entretanto, o útero preparou para receber o ovo fertilizado[3] torna-se inútil, e ocorre a menstruação. Mas, se o ovo se encontrar com espermatozoides na sua jornada, e se um deles o fertilizar com sucesso, cerca de cinco dias depois do acto sexual o embrião começa a formar-se, ainda dentro da trompa. Em ciclos que demoram de oito a doze horas, primeiro o ovo divide-se num embrião de duas células, e depois num embrião de quatro células. No total, entre a entrada na trompa e a implantação total no útero um embrião demora cerca de dez dias a completar o seu percurso.
É importante parar aqui, porque geralmente, nas fertilizações in vitro[4], os embriões que os médicos transferem para o útero da mulher, e todos os embriões excedentários que congelam, têm exactamente quatro células.
E, portanto, a resposta é não: estes embriões não são pessoas.
Ainda vão ter que andar muito para lá chegarem.
No fim da jornada pela trompa, o embrião que cai no útero é um círculo microscópico de células todas iguais, que inicia de imediato os seus primeiros contactos com as paredes externas da zona de implantação[5]. À medida que progridem nessa implantação, as tais células todas iguais acabam por formar dois grupos diferentes, numa estrutura que agora já mostra uma diferenciação mais marcada: por fora está uma parede de células todas iguais; e, por dentro, está um botãozinho de células arredondadas agarradas a essa parede. A parede externa vai formar a placenta, e todas as outras estruturas de suporte à gravidez; e só o botãozinho minúsculo é que dará origem ao feto propriamente dito.
Mesmo assim, não, claro que não: estes embriões ainda estão muito longe de ser pessoas.
À medida que o seu processo de implantação no útero progride, o embrião vai-se diferenciando cada vez mais, formando os precursores dos primeiros tecidos, as células precursoras do tubo neural, e, finalmente, as estruturas percursoras dos primeiros órgãos.
Esta gestação embrionária demora cerca de oito semanas. Só depois de concluída é que o embrião passa a ser considerado um feto. E, mesmo assim, é preciso suster a respiração até ao terceiro mês de gravidez, absolutamente crucial para a ligação do feto à placenta, e tipicamente o momento em que ocorrem mais abortos espontâneos. Agora reparem na diferença enorme entre um feto bem-sucedido no final do seu terceiro mês e um embrião de quatro células no seu segundo dia de existência. Se não conseguirem memorizar de outra maneira, usem esta: ninguém precisa de um microscópio para ver um feto. Um embrião, por outro lado, não pode ser visto de outra maneira.
E, evidentemente, o “pai da FIV” não é Donald Trump.
Quem primeiro conseguiu juntar o ovo da mãe com os espermatozoides do pai numa caixa de Petri, obter um embrião de quatro células, transferi-lo para o útero da senhora, e obter uma gravidez bem-sucedida a termo foi o investigador britânico Robert Edwards, trabalhando em conjunto com o ginecologista Patrick Steptoe. Depois de muitas falsas partidas, muitos enganos, muitas pistas erradas, os dois conseguiram sincronizar o ciclo hormonal de Lesley Brown, inseminá-la com um ovo fertilizado fora do corpo com sémen do marido, e fazer nascer Louise Brown, o primeiro “Bebé-Proveta[6]” do mundo, a 25 de Junho de 1978. Posteriormente, o seu trabalho conjunto no Center for Human Reproduction, em Olddham, na Inglaterra, permitiu o nascimento de mais de mil bebés, incluindo a irmã mais nova de Louise. Edwards recebeu o Nobel da Fisiologia ou Medicina em 2010, e faleceu em 2013.
À época, as FIVs permitiam evitar problemas de infertilidade devidos, por exemplo, a bloqueios nas trompas do Falópio: recolhendo o ovo directamente no ovário, fertilizando-o no laboratório, deixando-o desenvolver-se até à fase de quatro células, e injetando-o de novo no útero em sincronia com o ciclo hormonal, saltava-se por cima desse bloqueio, que é responsável por uma quantidade substancial dos casos de infertilidade feminina. Como é evidente, a técnica expandiu-se logo pelo mundo, e foi logo melhorando. Uma das primeiras melhoras foi esta transformação do “embrião” em “embriões” que tanto preocupa os fundamentalistas e ainda hoje baralha todas as pessoas que não têm qualquer obrigação de ter especializações na matéria.
Chamou-se-lhe a superovulação.
Os médicos passaram a estimular artificialmente os ovários da mulher para que, em cada ciclo, em vez de um ovo pudessem obter – facilmente – um valor entre doze e vinte. Isto permitia ter bastante mais embriões bem desenvolvidos, transferir para o útero uns três em vez de só um, para aumentar a possibilidade de pelo menos um se agarrar bem à placenta. Como todos os tratamentos para obter e recolher os ovos são bastante violentos para o organismo feminino e para a psique da mulher que quer engravidar, os embriões excedentários guardavam-se numa câmara de Azoto líquido, prontos para serem descongelados intactos, prontos a repetir a operação sem mais tratamentos se a primeira tentativa falhasse – ou se os pais felizes quisessem ter outro bebé.
Isto já se fazia nos anos 80 do século passado.
Já nessa altura gerava a maior das confusões, criava toda a espécie de controvérsias, e levantava dilemas legais nunca antes vistos.
É espantoso como ainda falta explicar tanta coisa.
E como Trump tem a lata de dizer, e repetir, e jurar aos quatro ventos, que percebeu tudo em dois minutos.
O pó que se levanta com estas grandes questões, legitimamente complexas para a inquietação humana, só assenta se nos dispusermos a um mínimo de esforço no seu estudo, por forma a compreendermos o que está mesmo em causa. Distinguir embriões de fetos, por exemplo, já é um grande passo em frente. Já agora, distinguir os fetos insipientes dos três meses das crianças potencialmente viáveis dos cinco meses também é uma grande urgência. Explica-nos porque é que fazemos algumas coisas e outras não.
O que aí vem é do pior. Por favor, que ninguém escolha manter-se ignorante.
Feliz Ano Novo.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Ou seja, 28 dias.
[2] O oócito, ou ovócito.
[3] O zigoto.
[4] FIVs.
[5] O endométrio.
[6] Não se sabe quem inventou o termo, que foi caindo em desuso com o tempo, à medida que se expandiu e trivializou. De qualquer maneira não era especialmente bem-sucedido, uma vez que a FIV tem lugar em caixas de Petri, e não em provetas.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.