O poema 

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Sílvia Quinteiro|09/01/2025

Diziam que o poeta vivia num mundo só dele. Não era verdade. O poeta trabalhava, tinha prazos, contas para pagar, e um cão. O poeta, despido da poesia, era apenas um homem na Terra.

Certo dia, terminou um livro. Imprimiu-o. Lembrou-se, então, de que nem sabia quando tinha comido pela última vez. Dirigiu-se ao frigorífico. Estava vazio. O estômago também. O poeta apontou numa folha: “ovos, galinha, milho e…”. Havia de lembrar-se do que faltava.

Colocou o manuscrito num envelope. Ia entregá-lo pessoalmente na editora. Já que tinha de ir ao supermercado, logo tratava dos dois assuntos.

O espelho da sala mostrou-lhe que estava de pijama e chinelos. O poeta foi ao quarto, arranjou-se e voltou. Pegou no envelope, procurou a lista das compras, mas tinha desaparecido. Nada que o espantasse. Chegou mesmo a duvidar da sua existência. Estava exausto. Já não tinha certeza de nada.

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Foi até à editora e entregou o envelope. Sentiu-se aliviado, mas sem vontade de ir às compras. Decidiu, por isso, encomendar o almoço e aproveitar para deitar mãos a um novo projeto.

Algumas semanas depois, o livro foi publicado. Sentia-se ansioso. Os últimos dois não tinham sido recebidos como esperava.

Chegou o dia do lançamento. Sala cheia numa importante livraria da capital. A apresentação a cargo de um conhecido e reputado académico. Tudo corria como no seu melhor sonho. O poeta, no entanto, não percebia o que levava o professor a considerar que a sua obra remetia para temas como o princípio do mundo, o ovo cosmogónico, a dúvida relativa à primazia do ovo ou da galinha, nem porque referia a incerteza expressa pelo final deixado em aberto.

O público aplaudiu. O poeta, encolhido, com cara de ponto de interrogação, perguntou:

– Em que página está esse poema?

– Na página 23. – respondeu o professor. – A propósito, pergunto-lhe: por que não o colocou na página 1? Qual foi o critério de edição?

O poeta abriu o livro e leu:

“Ovos,

galinha,

milho

e…”.

Sem hesitar, dissertou sobre as grandes questões que pretendeu levantar com este poema. Esclareceu todas as dúvidas.

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O académico ficou estarrecido com a explicação. Era brilhante. Elogiou e agradeceu a humildade e generosidade do autor.

O poeta, de livro na mão, dirigiu-se ao supermercado:

– E… arroz. – completou.

Críticos, estudiosos, jornalistas, leitores ávidos e grandes conhecedores apressaram-se a ler a obra e ajoelharam-se perante o génio do bardo.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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