Novelas improváveis: Rommel em Jerusalém

Sh’ma Israel

por Mendo Castro Henriques // Janeiro 9, 2025


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Num palco apertado, com uma cortina vermelha janota a servir de fundo, uma jovem rapariga de cabelos castanhos, anelados e frisados, entoava com requebros uma canção que os presentes pareciam conhecer perfeitamente: “Sh’ma Israel elohay ahshav ani levad”. Chegado o momento certo, os convivas elevavam e faziam tilintar as canecas, os copos ou as taças que empunhavam, e escutavam enquanto entoavam o refrão solicitado por Raquel – assim se chamava a cantora: “Escuta, Israel/Quando o coração chora, a alma grita!”

Para os que ali vinham pela primeira vez, a canção estranhava-se, mas logo se entranhava. A melodia insinuava-se, e toda a sua melancolia ajudava os circunstantes a esperar por dias melhores: “…Escuta, Israel, meu Deus, tu és o todo-poderoso/ Tu me deste a vida, tu me deste tudo/ Em meus olhos uma lágrima, o coração chora em silêncio/ E, quando o coração se cala, a alma grita.” Eram apenas palavras, mas todos viviam o refrão, aconchegando-se do frio que se fazia sentir, aproximando-se uns dos outros, no bar Mitzvah, no coração da cidade velha.

Numa mesa encostada a um dos recantos escuros do Mitzvah, trocava impressões um pequeno grupo mais recolhido, após se escutar o Sh’ma Israel. Foi para lá que Raquel se dirigiu após recolher uma salva de palmas e colocar as mãos em gesto de agradecimento.

Via Juliana e a torre do YMCA (Young Man’s Christian Association) em Jerusalém. Anos 40

“… Raquel, vem, vem depressa!”, exclamou Ester. “… Há bolos de mel.” “… E o chá de menta está a ferver.” “Não me fales nisso, que me fazes lembrar como este inverno nevou em Jerusalém.” “… Ainda estou a ver os nossos rapazes a divertir-se, atirando bolas de neve uns aos outros.” “… É verdade. Foi em fevereiro. Os tetos ficaram de uma brancura nunca vista.” “… Os mais velhos dizem que não nevava desde 1921.” “… Em 21 ainda estávamos a nascer.” “… Olha, o frio deve ter ajudado muito”, disse um dos amigos, que usava uma pala negra sobre o olho esquerdo.

O grupo era formado por membros das organizações clandestinas nascidas para defender os colonatos judeus contra os ataques árabes. Estavam ali companheiros como Moshe Dayan e Yigal Allon. Tinham aprendido a táctica das guerrilhas com o capitão britânico Charles Orde Wingate, que organizara os Esquadrões Noturnos Especiais para combater os árabes. Durante os motins de 1936-1939, serviram no Vale do Jezreel e na Galileia e, depois, colaboraram na libertação do Líbano e da Síria das garras de Vichy. Dayan entrara para a Haganah aos 14 anos de idade e perdera o olho esquerdo em combates no Líbano. Quando os britânicos proibiram a Haganah, em 1939, ficou preso e encarcerado por dois anos. Allon, no retorno à Palestina, ajudou a fundar o Palmach.

Ester pegou no prato com azeitonas que estava sobre a mesa e, enquanto as distribuía a cada um dos presentes, disse em tom mais baixo:
“… Um dos nossos foi aprisionado por patrulhas alemãs em Tiberíades e levado para o YMCA. Sabemos que é um sargento do 8.º Exército britânico, de seu nome Hans Jonas. Ora aí está alguém que jamais fará má figura, se for torturado pelos alemães.”
“… Estes alemães não torturam; o Afrika Korps não é a SS”, obtemperou Ester.

Raquel mudou o rumo da conversa:
“… Não me falem só de guerras. Olhem, o que eu queria agora era que me oferecessem um par de sapatos vermelhos, que os meus estão velhos. Não gostavas também de ter um par, Ester?”
“Eu preferia os azuis-escuros expostos na montra da Jevod…”, respondeu esta.

Moshe Dayan (à esquerda) aos 20 anos.

Estavam nisto quando frei Werner entrou no Mitzvah. Ali vinha amiúde e imediatamente se dirigiu ao encontro da tertúlia. Nada mais o identificava como sacerdote senão uma minúscula cruz de lata, usada no casaco como flor na lapela.
“… Werner!”, disseram alegremente as raparigas.
“… Finalmente alguém que não pensa apenas em granadas e metralhadoras”, acrescentou Raquel.

O franciscano esboçou um sorriso cúmplice e serviu-se de uma taça de chá quente, na qual molhou delicadamente o bolo de mel.
“… Esta manhã, o marechal Rommel visitou a minha basílica.”

Os olhos de todos, exceto os de Ester, abriram-se mais:
“… A sério? Antes deslocou-se ao muro e depois à montanha. Anda a ver o que valem as nossas religiões.”
“A nossa vale pouco mais do que o poder no cano das espingardas”, disse Ester.
“… E quem fala pelos muçulmanos?”, perguntou Raquel.
“… Falas tu, já que lembraste deles e gostas de ser boazinha.”

Raquel assentou uma canelada por debaixo da mesa a Moshe e acrescentou:
“… Estejam mas é calados. Quero ouvir o que Werner nos tem a dizer sobre esse marechal.”

Frei Werner continuou. “… Primeiro, foi uma surpresa que ele nos visitasse a nós, em vez do Sepulcro. E eu apenas lhe disse o que vos repito todos os dias: é preciso que alguém venha fazer a paz. Agora ando a ler muito um alemão que diz a mesma coisa. Chama-se Hans Jonas.
“… Quem? Como se chama?”, exclamou Ester. “… Jonas.” “… Não é possível. Ontem um alemão com esse nome deu entrada na prisão.” “… Com o mesmo nome?” “… Sim.” “… Com uns 40 anos de idade?” “… Sim.” “… Ruivo, com óculos?” “… Sim…” Dayan, que estivera muito calado até então, sussurrou. “Não sabia que o sujeito escrevia livros. Esquisito.”

Enquanto todos se admiravam daquela coincidência, o franciscano extraía um cachimbo do bolso interior do seu casaco e, com ele, batia na mesinha para retirar os restos de tabaco queimado, acabando por dizer no tom mais natural do mundo: “… Há uma coisa que se pode fazer.” “Então, Werner,” disse Raquel, enquanto lhe pisava levemente o pé por debaixo da mesa. “Queres convertê-lo à tua fé?” … Nada incomodado pela pressão, Werner olhou para dentro do cachimbo, como quem procura um objeto perdido lá dentro, e continuou sem levantar os olhos: “… Ester, podes tentar que Rommel escute um recado?” Ester nada dizia. “… Fazes isso, Ester? Fazes isso por mim?” “… Qual recado, Werner?” À sua volta todos se entreolharam, exceto Ester, sempre muito séria. “… Deveriam pedir a Jonas que ele levasse o mesmo apelo que eu lhe fiz”, exclamou Werner fitando todos, e um a um.

Todos engoliram em seco, à exceção de Yigal, que, pegando na caneca pousada na mesa, emborcou um trago para depois dizer: “… Rommel não é nazi, e também não é parvo.”

Jovem cantora judia . Anos 40

Quase saía fumo da cabeça daqueles jovens que depois se lançaram a trocar impressões sobre se valia a pena convencer o marechal a receber um prisioneiro judeu, alemão mas britânico. Era preciso um motivo à vista. Comunicar informações? Não era crível! Que queria mudar de campo? Seria um golpe baixo e correria mal. Atribuir-lhe a revelação de um plano? No fim foi Raquel quem teve a ideia mais simples, enquanto ajeitava os caracóis. “… Digam a verdade. Que esse Hans Jonas lhe quer comunicar uma verdade. Se o marechal tem fama de homem reto, vai querer ouvi-lo de certeza.” Silêncio geral. “… Esta miúda vai longe”, disse Yigal. “… Ui, tenho que voltar ao palco. Já há novos clientes.

Raquel regressou sorridente ao pequeno palco, onde também se instalaram dois velhotes, um com um violino e outro com uma trompete. “… Agora, em homenagem a um amigo meu que gosta muito da paz, vou cantar de Duke Ellington It don’t mean a thing.” A sala ajeitou-se para ouvir a novidade. O violino atacou devagarinho a melodia, e a trompete preparou os espíritos para o que ali vinha. Depois, Raquel começou a entoar a nova melodia que dera no gosto do swing: It don’t mean a thing. E, por uns momentos, em Jerusalém, pareceram bem longe as guerras enquanto se ouvia a canção de Duke:
Não quer dizer nada, tudo o que há a fazer é cantar… Não faz diferença se é doce ou faz calor… Basta dar ritmo a tudo o que te ouço… Mas não quer dizer nada, se não tiver balanço.

[CONTINUA]


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