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Miguel Arruda, um romântico na ‘arte de furtar’ em tapete

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Que importa a posição, cargo ou função de um homem, em corpo presente, no seu efémero palco social, se, no fundo, ele almeja elevar-se pelo espírito, esse eterno arquitecto que ciranda entre ambições e contradições? Permitam-me, dilectas leitoras e caríssimos leitores, dar ênfase a esta digressão pelas vicissitudes humanas, com as mãos sujas de tinta e a mente embebida na ironia dos tempos hodiernos, seguindo inspirado pelas lições eternas desse grande compêndio que é o “Arte de Furtar” – dizem alguns, escrito pelo Padre António Vieira.

Que outro compêndio, além de “O Príncipe” de Maquiavel, ousou mapear com tamanha precisão as artimanhas do engenho humano para torcicolar e espiralar as regras por ele mesmo criadas?

Enfim, seja de quem for, seria curioso que alguém roubasse a autoria deste não só um lusitano tratado literário como fiel espelho das mazelas humanas, cujo brilho se assemelha àquele das verdades incómodas: reluzente, cortante.

Miguel Arruda

As verdades incómodas têm, assim sei, três características inconfundíveis. São teimosamente persistentes, incomodando até ao mais subtil movimento; revestem-se de uma universalidade desarmante, atingindo tanto o rico como o pobre, o poderoso como o insignificante, desencobrindo na crueza a condição humana; e possuem o irritante dom de trespassar as máscaras sociais, expondo as fragilidades do ego.

Assim, tal como no “Arte de Furtar”, onde se denunciam os furtos mais sublimes e menos punidos, as verdades incómodas desafiam, desassossegam e, inevitavelmente, iluminam. Reluzentes, sim, sem dúvida. E sempre cortantes.

E digo mais: é na mágica transição entre a teoria e a prática que o palco da moralidade concede espaço à conveniência, e a trama se pode adensar. Que o diga esse ilustre deputado de nome Miguel Arruda, nascido sob os auspícios do das ilhotas dos Açores, esse arquipélago perdido no Atlântico, que nem o Trump sabe onde fica, de contrário ficaria com ele. Será ele, certamente, um epígono dessa arte secular. Assim me parece até porque o “Arte de Furtar”, tal como o vinho envelhecido, mostra-se mais actual do que nunca. Arruda, ao furtar malas no tapete rolante do aeroporto de Lisboa, não apenas rompe o contrato social – ele reconfigura a harmonia no seu próprio benefício.

Em tempos idos, o grande peripatético Aristóteles advogava que a justiça era a virtude que preservava a harmonia da Pólis. Hoje, o pequeno pateta Arruda parece ter reinterpretado a máxima, mas transformando a ética numa mala de viagem – ora farta de intenções duvidosas, ora vazia de responsabilidade. Uma cena digna! Arruda como génio de uma logística invertida: uma mala grande, como matrioska lusitana, engolindo as menores, como que num acto simbólico de ascensão política.

Mas não nos detenhamos apenas no superficial, na espuma dos dias, da aurora, da alvorada, da manhã, do meio-dia, da tarde, do entardecer, do crepúsculo vespertino, do lusco-fusco, do anoitecer, da primeira noite, da meia-noite, da finda-noite, da madrugada e da penumbra matutina. A história das venturas e desventuras do Arruda é um microcosmo da condição humana. Hobbes falava do homem como sendo um lobo para o outro homem, e que melhor lugar para provar esta tese do que num aeroporto, esse hobbesiano estado de natureza?

Vejo que Miguel Arruda encarnou a figura do Leviatã: não como um soberano a proteger os fracos, mas sim um predador que captura aquilo que melhor lhe convém. Não obstante, encontro poesia na sua métrica. A escolha das malas furtadas – recheadas de perfumes, joias e relógios – reflecte uma filia, quase uma parafilia, pelos prazeres efémeros da vida. Nisto, Miguel Arruda não é diferente de um outro Miguel, o Cervantes, que vestiu D. Quixote com as loucuras do homem comum. Aquilo que o fidalgo da Mancha buscava na sua Dulcineia, fora de si – beleza e nobreza –, Arruda encontrou no seu arsenal de bagagem.

Digno de nota, nesta dignificante história, é, de igual modo, o comportamento do líder regional do Chega, que não hesitou em desculpar o seu correligionário. Acho bem. Aqui, invoco Maquiavel, que advertia: “Os fins justificam os meios.” A confissão do deputado é relativizada, não com base na ausência de provas, mas na insistência de que um certo acto, mesmo se filmado, não corresponde à “verdade oficial”.

Se os antigos apóstolos de Cristo distribuíam peixes, os discípulos de Ventura distribuem desculpas. A justificação proferida pelo líder regional do Chega é, aliás, uma oratória de duplo efeito: suaviza a queda moral de Arruda enquanto preserva a aura do partido. Numa crónica de juízos morais, caberia a pergunta: quem absolve o absolvedor? Mas os tempos modernos dispensam, e até execram, uma tal reflexão.

No Mito da Caverna, Platão propôs que a realidade percebida não passa de sombras projectadas na parede. Se hoje Platão fosse vivo e visse Arruda no aeroporto, certamente revisaria o mito: a realidade seria um tapete rolante e as sombras, as malas desaparecendo nas trevas de uma mala gigante no aconchego de um sanitário. E assim, o grande filósofo admitiria que, mesmo na República ideal, haveria sempre lugar para um ou outro Arruda.

Aliás, permitam-me um momento nas artes da especulação, porque, às tantas e sem querer, ainda chego ao âmago do homem do Chega. Imaginem que as malas furtadas possuíam memórias, como aqueles objetos falados por Walter Benjamin, que acreditava em auras escondidas em coisas. Cada mala teria então a sua história, uma espécie de biografia discreta, que transporta não só bens, mas também o eco das vidas, de todas as vidas que as tocaram.

Por exemplo, uma das malas poderia ter carregado dor e sonho, inferno e éden, de uma jovem no regresso de um Erasmus em Florença, onde se apaixonou pela arte renascentista e por um pintor que lhe prometeu eternidade traçada em tela. Outra, talvez tivesse pertencido a uma família que, de regresso da ilha do Pico, com transbordo em São Miguel, trouxesse na bagagem não apenas uma miniatura de barcos baleeiros ou pedra-pomes, mas também a fragilidade dos seus últimos dias juntos antes que a vida os separe em rotinas e geografias.

E poderia ainda haver aquela mala robusta, cheia de fechos metálicos e um leve cheiro de especiarias, que, sabe Deus, veio de Xangai com um comerciante fatigado. Nela, inventemos, estarão mais do que amostras de chá e seda; repousará todo o peso físico e simbólico de cartas jamais enviadas, destinadas a quem nunca viu desde que partiu.

Enfim, Arruda, ao furtar estas malas, jamais saca objectos tangíveis; ele invadirá somente o teatro íntimo de vidas alheias, onde cada peça de roupa, cada relógio, cada perfume, ou até mesmo um velho par de sapatos desirmanados, uma colher de prata roubada num hotel de luxo, um urso de peluche com um olho remendado, um vibrador ou uma carta de amor são fragmentos de existências, prováveis ou improváveis – nem sei.

Numa só mala, ele almeja sempre encontrar um globo de neve partido, um álbum de fotografias do casamento de desconhecidos, ou um manual de instruções de um pequeno eletrodoméstico que já nem existe. Noutra, talvez aspire desencantar uma lamparina ainda embalada, um quadro a óleo de gosto duvidoso, ou um capacete de mergulho imaculado. E que dizer, talvez, de um par de grilos vivos numa caixa furada, levados como amuletos, ou de um chapéu de penas que já viu melhores dias, mas que carrega memórias de festas esquecidas…

Cada mala, para Arruda, será um mostruário de vidas alheias, paralelas, onde o absurdo se mistura com o mundano, acumulando histórias que este nosso Miguel jamais compreenderá, mas que, de forma irónica, talvez espelhem a sua própria busca por um sentido.

Miguel Arruda, estou a convencer-me, é um romântico: um viajante errante pelos olhos e malas dos outros. Agora deputado, depois eurodeputado. E aí furtará cidades que nunca teve tempo para explorar, sob a forma de malas. Hoje… sair-lhe-á uma que traz o cheiro da madeira de Istambul, transportando um exemplar gasto de Orhan Pamuk. Amanhã… há-de encontrar, talvez, uma mala exalando um perfume de sândalo e mel, onde repousará um pergaminho enrolado com o mapa de um tesouro imaginário, desenhado por uma criança que revelará aventuras por mares infinitos. Depois de amanhã… erguerá uma mala de couro gasto, tão pesado de memórias que, ao abri-la, libertará um enxame de notas musicais saídas de um violoncelo. Para a outra semana… tropeçará numa mala que, destramcada, revelará uma biblioteca portátil de micro-livros ilegíveis, escritos em língua extinta, mas que lhe ressoará na alma, porque ele é sonhador.

E para todo o sempre… Arruda vagueará pelas galerias de malas; ei-lo, um curador errático num museu de esperanças, memórias e absurdos, à procura daquele objecto impossível: uma mala vazia, que, ao ser aberta, não contenha nada além do eco da sua própria solidão. E ele aprenderá com cada pedaço de amores perdidos, com cada sonho adiado, com cada saudade contida. O resto não interessa.

No fundo, no furto dessas malas, Miguel Arruda procurará, conscientemente, sempre por algo que falta na sua própria história. Porque cada mala, na sua essência, é um relicário de Humanidade, um microcosmo de desejos, um caleidoscópio de frustrações e um palimpsesto de memórias. Nesses gestos aparentemente ilícitos, nada mais temos do que um curador involuntário de vidas, de todas as vidas que ele nunca viveu. Miguel Arruda não é um reles ladrão; é um arqueólogo do efémero, escavando em malas alheias os estilhaços da própria incompletude.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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