‘A importância de se chamar Almirante’, de Oscar Alho: uma ideia de peça

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Serafim|24/01/2025

Permitam-me uma breve reflexão felina sobre uma farsa humana que se desenrolou recentemente no palco político nacional, mas que parece ter saído diretamente de uma peça de teatro. Imaginem, se quiserem, uma adaptação da célebre comédia de Oscar Wilde, mas em vez de um Ernesto temos um almirante. Portanto, eis a minha proposta para “A importância de se chamar Almirante”. A inspiração? Não é difícil de encontrar. Basta olhar para a sondagem da Pitagórica, encomendada pela TVI e pela CNN Portugal, onde Gouveia e Melo, por milagre de nomenclatura, ascendeu ao topo da lista de proto-candidatos presidenciais na sequência de perguntas a serem colocadas aos inquiridos.

Não foi por se chamar Aarão, Abel ou Abílio – nomes que o colocariam naturalmente na dianteira pela ordem alfabética. Nem por ser o Henrique Gouveia e Melo que, na lógica das listas, deveria aparecer atrás de Ana Gomes, de André Ventura, de António Guterres, de António José Seguro e de Francisco Louçã. Não. Para a Pitagórica e para a TVI e CNN Portugal, o senhor Gouveia e Melo não nasceu Henrique. Aliás, ele até poderia ter sido baptizado Zózimo e a sua mãe ser um Zambujo e o pai um Zuzarte. Para a Pitagórica seria o mesmo: o Henrique Gouveia e Melo ou o Zózimo Zambujo Zuzarte seriam sempre alcandorados ao topo, porque se chegando ao topo da Marinha o cargo de almirante entranha-se tanto que se transforma em nome prório.

Portanto, nesta linha lógica, Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo passa a ser Almirante Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, tal como alguém que se chama Zózimo Zeferino Zambujo de Zuzarte Zagalo, e que se sentia marginalizado na escola primária por ser sempre o último a ser chamado, pode agora ambicionar, estando na Marinha, o topo das nominatas se chegar a Almirante.

Eis a nova realidade lusitana: um Almirante pode até valer menos do que uma Excelência, uma Reverendíssima, uma Eminência, ou até uma Sereníssima, uma Alteza, uma Majestade, uma Santidade, uma Ilustríssima, uma Sapientíssima ou uma Digníssima. Porém, numa reviravolta que faria Oscar Wilde invejar a criatividade da política portuguesa, Almirante catapulta qualquer um para o topo, mui útil se permitir antecipar-se na sequência da avalanche de perguntas de uma sondagem antes que os inquiridos percam o interesse.

Ora, esta manobra lembra-nos que, muitas vezes, o nome que carregamos pode ser mais poderoso do que qualquer discurso ou programa político. Afinal, “Almirante” não é apenas um título; é um fura-filas. Passa logo à frente de todos. Na verdade, é um conceito que evoca liderança, comando e autoridade. Que importa se o cidadão comum entende o que ele pensa sobre o país? A etiqueta faz o trabalho sozinha.

E o mais irónico é que esta construção funciona. Não importa se o inquirido conhece ou não as ideias políticas do senhor Gouveia e Melo – ou até se ele tem ideias políticas. O nome faz o trabalho sozinho. É como uma campainha que ressoa antes de qualquer reflexão, temos um truque de marketing que faz acreditar que a embalagem vale mais do que o conteúdo.

Há algo de tragicómico em tudo isto. Enquanto os cidadãos tentam compreender quem seria o melhor líder para o futuro do país, as sondagens, os media e os estrategas políticos brincam com a percepção pública como se fosse um jogo de xadrez. E, neste tabuleiro, o título de “Almirante” é uma rainha poderosa que se move em qualquer direção, deixando os peões a ver navios. Prevejo, aliás, que para as eleições presidenciais, o Almirante consiga que o nome Almirante conste no boletim de voto. Ou então, ainda haverá por aí uma surpresa se António José Seguro conseguir convencer alguém no Espaço do Cidadão de Penamacor a mudar-lhe a nominata para Almirante António José Martins Seguro. Vai vencer na certa…

Mas deixem-me regressar ao meu lugar de observador imparcial. Sou apenas um gato, embora saiba reconhecer, além sabores da ração, quando estou num teatro bem montado. E se esta peça tem todos os ingredientes – um protagonista relutante (ou talvez não), um elenco de apoio em busca de relevância, e uma plateia que aplaude sem questionar , eu acho que então merece um dramaturgo a preceito. Proponho o Oscar Alho…


Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

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