A princesa Clara
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Nunca vi a Clara Pinto Correia ao vivo e a cores. Não a entrevistei (mas gostava e quem sabe). Soube da existência desta dama das Camélias cruzada de Madame Pompadour nos meus primórdios no Jornalismo. O camarada Rui Barros, meu fornecedor de Literatura, passou-me o ‘Adeus, Princesa’. Li o romance numa noite, como pedem as grandes prosas a arder de emoção e inventiva. Daí para cá, passei a ser omnívoro das coisas da Clara, fosse onde fosse, fosse o que fosse. Gosto dos ecléticos. A Clara faz parte desta família. Quando a acusaram de plágio(s) cheirou-me a esturro. O Jornalismo é prenhe de fait-divers e histórias mal contadas. A defesa da Clara, e a sua retratação pública destemida, seriam argumentos suficientes para a poupar ao ostracismo e penúria que daí veio. A bruxa fora caçada, para gáudio dos Torquemadas.
Antes de prosseguir lembro aqui umas quantas histórias pessoais. Comecei a trabalhar no Semanário, aos 19 anos. Na altura, propus à direcção do jornal um artigo sobre um cambalacho na Quinta da Marinha que metia uns poderosos. Tinha as provas, os depoimentos, tudo afinado para atacar a prosa e desmascarar o esquema financeiro que recuava ao tempo do fogo posto nas matas à beira do Guincho. As chefias tomaram o assunto por delicado e declinaram a publicação. Aliás, recomendaram-me o silêncio. Teimoso, e sem exclusividade que me impedisse de escrever e publicar fosse onde fosse, bati o texto na Remington do meu avô Vítor Garcia e levei o artigo ao O Jornal, onde esperava melhor recepção, mais ousada.
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Calhou ir à fala com o Rogério Rodrigues, figura por quem tinha apreço e tomava por imune à desonestidade intelectual. Leu a prosa à minha frente, de olhos arregalados, e perguntou se tinha sido mesmo eu a escrevê-la. Era matéria de peso. Disse-me então para lhe dar uns dias que ia pegar no assunto e dar-me-ia notícias. Insisti que se era para ser, era então, antes do assunto vir à baila e “nos” passarem a perna. O “nos” vinha de um sentido ingénuo de camaradagem. Na semana seguinte comprei O Jornal e lá estava, a minha prosa, com ligeiros retoques, assinada pelo Rogério. Fiquei estarrecido e a única coisa que me ocorreu foi ir à redacção chamar-lhe de pulha. Que dizer de uma apropriação deste calibre? Ainda no tempo dos faxes, deveria ter enviado o artigo por forma a provar a minha autoria. Mas não. Entreguei o original em mão, à confiança no camarada.
Tive outra destas com o senhor E., meu editor no Semanário, que me pediu um retrato do amigo Vasco de Castro. Lá fui, a minhas expensas, a Fontanelas. Desta feita, antes de entregar a prosa, mostrei-a de antemão ao Vasco, que me devolveu uma carta a dizer “um jovem tão verde com prosa já tão vermelha”. Ficou uma amizade para a vida. Quanto ao artigo, saiu assinado pelo senhor E. Desta vez fui atrás dele para o encher de porrada. E só não o fiz porque se raspou de véspera para Cuba. Fiz queixa em vão no Sindicato. Acabei por virar a página sem pugilato. Deixei passar vinte anos ate voltar a dar-me com a figura e, tal como nos assuntos familiares aziagos, optei por esquecer o dito.
Falo aqui destas incidências da vida porque nunca fiz tal coisa. Aliás, de mim só podem dizer que quero é que se fodam estes e outros, tomados por tibieza de carácter. Querem outra? Trabalhava então na Capital, do tio Balsemão. Digo tio porque o conheci na minha vida passada de betinho de Cascais. Betinho radical. Aliás, só não me estreei no Expresso porque o tio tinha mais do que fazer do que andar a interceder por mim. Verdade seja dita que ainda me remeteu para a directora de recursos do Expresso, uma senhora que estava sempre de baixa, e, farto de levar tampas, acabei por bater à porta do Semanário com uma carta do professor Dr. Adelino Alves, que julgava ser de recomendação para estafeta, mas afinal era para ser acolhido por estagiário.
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Mas voltemos à Capital. Um dia, o senhor P. destacou-me para entrevistar uma alta patente da PSP. Fiz o serviço, entreguei as laudas e deparo-me com espanto ter sido alterada no artigo publicado a patente do homem, para uns degraus abaixo. Crime de Lesa-Majestade. Toca de receber um telefonema da bófia a descompor o reles escriba. Ora, o reles escriba, já tinha passado por umas quantas e guardara o original. Levei a prova à Exª Sra. Helena Sanches Osório que arrumou o quiproquó, evitando o meu despedimento por justa causa de ofensa à intendência do reino. Acabei por sair daquele viveiro de invertebrados da Capital pelo meu próprio pé e nem a estima pela directora me fez vacilar.
Voltemos ao Semanário dos meus 19 anos, ainda trabalhador-estudante. Chegada a hora dos exames de final de ano lectivo na Universidade, pedi uma licença sem vencimento, fruto do meu direito e do vínculo que tinha ao jornal por contrato assinado. Para minha surpresa, ao regressar dos exames, tinha sido dispensado e nem uma das minhas canetas sobrara na secretária, entretanto ocupada por outro estagiário. Resolvi levar os tratantes ingratos a Tribunal. Na barra, os senhores, meu chefe de redacção e director, mentiram com todos os dentes ao dizer que eu era um mero colaborador pontual e irregular.
Dez meses de palmadinhas nas costas, idas ao SNOB e louvores ao puto talentoso que publicava aos dois e três artigos por semana (alguns deles manchetes), redundaram num perjúrio descarado, que o meu defensor não soube contornar porque o contrato tinha desaparecido. Mais uma vez, o totó do Salazar, não guardara uma cópia. Não bastaram as provas de vencimentos pagos a termo certo, a avença, outra galga, porque se fosse colaborador pontual não receberia um vencimento nem uma avença, quanto muito uns patacos dos artigos publicados.
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[Nunca contei isto em público, e mesmo em privado, evitei ao máximo andar a remexer na trampa. O Jornalismo para mim só não feneceu porque há o PÁGINA UM. Pode ser que no rescaldo de outra revolução (ou de uma Revolução em casa alta) volte a haver desse Jornalismo em que acreditei e a quem dei três décadas da minha existência. Mas se voltar, que volte livre destes sujeitos. O mais certo é ser no dia de S. Nunca à tarde.]
Volto à Clara que terá destas e doutras para contar. É claro que a Clara, como todos os que caem em desgraça, deixou de ser fiável. É como um adúltero. Uma vez adúltero, adúltero para sempre. Ou um larápio de maior ou menor envergadura. Faz a fama e deita-te na cama. Para os conservadores do burgo, a Clara é a gaja dos plágios e dos orgasmos porventura fingidos. Build yourself a reputation. A Clara a quem os revisionistas acusam, sem ler mais do que as infâmias em sua honra, de ser uma fraude de alto abaixo e de cara a rabo. Não há período de nojo que lhe(s) valha, nem a confissão e a decorrente absolvição dos seus actos, sejam eles de facto, manietados ou inventados como na melhor ficção.
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)