A solução final
O dia-a-dia do marechal começava pelas seis horas. Nessa madrugada, enquanto o sol procurava o seu lugar no céu, Rommel redigiu o postal que todos os dias enviava a Lúcia.
“Querida Lu,
Ao contrário do que se poderia esperar, faz frio em Jerusalém. As noites têm muitas estrelas e dá vontade de conversar com elas. Espero que o Manfred esteja bem. Em breve deverá ser chamado para a Juventude Hitleriana. Ele que se ofereça antes como voluntário para a Luftwaffe.
Teu,
Erwin”
Escrevera a carta logo de manhã para melhor enfrentar um assunto que o deixava contrafeito. Da Alemanha chegavam relatórios segundo os quais, e tendo em conta as mentiras oficiais, se davam conta da enormidade de atos bárbaros perpetrados contra os judeus. Se era assim em relatórios oficiais, como seria na realidade? Mais do que uma vez Rommel se indignara na Wehrmacht contra o tratamento infligido a judeus; como comandante, sempre se recusara a realizar deportações. Mas agora chegavam-lhe ordens de Berlim, diretamente de Hitler, para se preparar para executar a diretiva Solução Final, ali mesmo, na Palestina. “Fuehrer’s Befehl”, uma Ordem do Chefe, ali naquela terra de ordens e mandamentos divinos.
Na reunião de Estado-Maior das oito da manhã, apenas estavam os principais chefes. Gause apresentou a situação do dia e as informações sobre a comunidade muçulmana. Na cidade, não queriam confrontações que redundariam num banho de sangue. Mas no campo, queriam vingar-se dos assaltos vindos dos Kibbutzim. “… E vice-versa, não?”, acrescentou Rommel. “… Naturalmente, Herr Feldmarschall. O Palmach está mais ativo do que nunca e já identificámos várias das suas células em Jerusalém.” “… Tudo isso é muito bonito, mas agora escutem a ordem que veio de Berlim… Westphal: proceda, por favor!”. O Coronel Westphal extraiu um telegrama de um envelope já aberto e começou a ler: “… Operação Solução Final. É minha vontade que o Exército de Panzer de Afrika, antes de iniciar a próxima ofensiva, diligencie a prisão e imediata execução dos cabecilhas judaicos dos movimentos de resistência e prepare a comunidade judaica da região para futuras deportações. Wolfschanze, 5 de Agosto de 1942“. Fuehrer’s Befehl. Ordem de Hitler. O telegrama foi deposto em cima da mesa, como se fosse contagioso.
Um silêncio pesado percorreu a sala. Aquelas cabeças de Estado-Maior, habituadas a pensar em planos, distâncias e métricas, a fazer cálculos e repartir forças, digeriam duas operações de rajada: matar dirigentes judaicos e marchar para o Cáucaso. Assim, sem mais nem menos. Rommel entendia bem esse estado de espírito. Passara pelo mesmo quando o telegrama lhe chegara às mãos, pelas sete da manhã, decerto proveniente de uma das insónias de Hitler. Sabia estar numa encruzilhada; qualquer escolha que fizesse, não iria correr bem. Tinha de sentir como pulsavam aquelas mentes endurecidas por anos de guerra.
“Mais atrocidades?”, perguntou o general Buelowius no salão do Estado-Maior.
“… Mais atrocidades, Buelowius? Quer saber o que são atrocidades…?”, replicou Rommel. “Gause, queira informar o Estado-Maior do que falámos esta manhã.” O general Gause ergueu-se e falou vagarosamente. “Várias organizações do Reich, militares e civis, usam os judeus em estações experimentais para a produção de gás, usam corpos para a extração de gorduras e os ossos para a fertilização dos campos, e transportam milhares de judeus de um lugar a outro em caminhões de gado e em comboios especiais.” Gause continuou, após uma pausa para beber água. “… Desde a invasão da Polónia, a Wehrmacht criou um império na Europa Oriental. As nossas forças aprisionaram um grande número de judeus. No início, foram conduzidos para guetos e usados em trabalho escravo; em muitos casos foram assassinados. E, entretanto, os dirigentes planearam a ‘Solução Final’.”
“… Qual solução final?”, perguntou Bayerlein. “… É óbvio para todos que Hitler está determinado a levar a cabo o extermínio físico de todos os judeus na Europa, como afirmou repetidamente nos seus discursos”, disse Gause. “Mas o marechal dar-vos-á mais pormenores.”
Rommel, que colocara ambas as mãos sobre a face, retirou-as lentamente e cruzou-as em cima da mesa.
“Senhores oficiais, há já muito tempo fui visitado por um meu amigo, Goerdeler, burgomestre de Estugarda; começou quando regressei da vitoriosa campanha de França.” Os presentes entreolharam-se um pouco receosos do que iria dali sair. “Desde 1934 que Goerdeler instou, em memorandos, que Hitler deveria alterar a sua ‘política judaica’, por questões de justiça e de interesse nacional. Argumentava que a Alemanha poderia desfrutar de boas relações com a Grã-Bretanha, França e Estados Unidos se alterasse as políticas relativas à ‘Questão Judaica’. Em 1941, propôs que a Liga das Nações criasse um estado judaico com a cidadania para todos os judeus, nomeadamente a maioria dos judeus alemães.”
E Rommel continuou: “… Saberão – e se não sabem, ficam a saber – que teve lugar a 20 de Janeiro de 1942, no palacete de Wannsee, junto ao lago, a sudoeste de Berlim, e presidida por Heydrich, uma conferência à porta fechada, sobre o que eles chamam ‘a solução final da questão judaica’, a expulsão dos judeus de todas as esferas da vida do povo alemão, Endlösung der Judenfrage. O braço direito de Heydrich, Adolf Eichmann, foi encarregado de redigir a minuta da reunião.”
Bayerlein, agitado desde o início da reunião, obtemperou: “… Nós somos militares e não creio que tenhamos de nos imiscuir em questões políticas. Temos, desde há muito, uma questão judaica, e muitos são os antissemitas…”“… Bayerlein, não me venha com militarismos a mim. Isto é uma questão de humanidade.” Ninguém poderia, de facto, dar lições a Erwin Rommel de como ser militar, ele que era um puro-sangue dessa raça. Na invasão de França, comandara a 7ª Divisão Panzer, a “Divisão fantasma”, à frente de todas as outras, a tal ponto que nem o Estado-Maior sabia onde se encontrava; capturara mais de 50.000 prisioneiros franceses e britânicos, centenas de carros de combate e milhares de veículos. Essa campanha vitoriosa valera-lhe a Cruz de Ferro de Cavaleiro, laureada com espadas, folhas de carvalho e diamantes, a mais elevada condecoração de guerra. Para Rommel, que já fora condecorado com a medalha Pour le Mérite, na 1ª Grande Guerra, isso pouco acrescentara. E como tudo isso estava longe, agora que se tratava da vida e morte de milhões de pessoas.
“… Eu jamais cumpriria esta ordem de Hitler sem destruir o frágil equilíbrio de forças aqui em Jerusalém e na Palestina… Mas não quero tomar qualquer decisão antes de vos ouvir sobre a segunda ordem de Hitler. Prossiga, Gause: “… O caminho mais direto seria através da Turquia; mas isso está fora de questão. É um país neutro. O segundo caminho exequível leva-nos a atravessar quatro nações: Jordânia, Síria, Iraque, Irão, até chegar ao Cáucaso, às fronteiras da União Soviética, no Azerbeijão.”
Rommel tomou a palavra:“Creio que todos adivinham que Hitler não nos quer parados do lado de cá do Cáucaso. Os primeiros 3.000 quilómetros seriam metade do nosso caminho. Certamente, teremos de atravessar a cordilheira, a uns 2.000 metros de altitude. E, finalmente, mais 3.000 quilómetros ao longo do Mar Cáspio até chegarmos ao Volga e talvez até Estalinegrado, que é o objetivo da campanha de verão das nossas forças na Rússia… É uma missão impossível com as forças que temos.” “E não teremos reforços?”, inquiriu Bayerlein.
“… Aqui? Se nem existem reforços para as planícies russas, vamos esperar que cheguem aqui? “… Meus senhores”, rematou Rommel, “A minha primeira decisão está tomada. Não exterminarei cabecilhas judaicos. Da vossa parte, fiquem a pensar na ordem de Hitler de partir em direção ao Cáucaso, sobre a qual ainda faltam pormenores.”
[CONTINUA]