Pipy by Cristina, um frasco de farsesca bruma
Se algo sempre houve que o meu espírito inquieto perseguiu foi a frescura do pensamento. Não, não falo de nimiedades nem de borrifos. Não falo da fragrância ligeira nem da superficial refrescância que se aplica como uma bruma ao corpo para aliviar um ardor inclemente ou uma lassidão opressiva, mas sim da ancestral e singela frescura das ideias que penetram nos poros – no meu caso, já só nos ossos – e purificam o intelecto e nutrem a alma.
O pensamento humano é um turbilhão caótico, não cuidando de direcções, ora avançando como um vendaval, ora se dissipando como um vapor. Ao contrário da bruma, unidireccional, lançada para o exterior, mesmo que primeiro impelida para o interior, o pensamento diverge e se espraia, mas é um ser íntimo que nunca se desliga da alma – e é aí que reside, na alma, e não no corpo, a verdadeira frescura da humanidade.
Esta reflexão, que, em outros tempos, poderia ter brotado numa tertúlia filosófica ou mesmo num ensaio epistemológico, ocorreu-me ao tropeçar, na modernidade, num fenómeno singular: a bruma íntima feminina.
Aqui, detive-me.
Frescura, emancipação e até poder – assim se anunciava, e mais ainda: tudo concentrado num frasco, à espera de ser borrifado entre pernas com a destreza de quem asperja uma ideia iluminista.
E eis-me aqui, vendo-me espectador defunto, a relembrar os arroubos do meu século, quando um leve rubor bastava para expressar uma intimidade sem afronta. Que diriam as matronas da minha época ao verem agora as suas trinetas entregues a estas modernices? Será isto um sinal dos tempos ou o cúmulo da frivolidade? Não sei. Nem sei o que mais me diverte, se a aspiração da frescura na alma através de vapores corporais ou a ideia de que o poder feminino – outrora tão nobre, tão sereno – se comprime em bruma, sem glória, num cilindro perfumado sob o nome de Pipy.
Soube então que a responsável por tão grandiosa empreitada é uma figura da vossa era que conjuga o pragmatismo empresarial com um toque de auto-exaltação, como quem mistura ácido láctico com marketing emocional.
Nem mais. A modernidade, cavalheiros, que a vós me dirijo, é pródiga em contradições. Enquanto os filósofos gregos viram a emancipação feminina como um acto de superação intelectual, as vendedoras de feira tudo reduzem, e assim o bom gosto mingua em brejeirice. Pipy – muito bem, porque Kryka, às tantas, não pegaria.
Dou agora por mim a pensar, por um momento, se as mulheres que se emanciparam cuidavam de fragrâncias. Imagino Hipátia de Alexandria, sábia dos astros e da geometria, borrifando-se com essências para afirmar a sua autoridade. Penso ainda em Sóror Juana Inés de la Cruz, a Fénix da América, que quis quebrar os limites impostos às mulheres nas letras. Compondo versos luminosos na penumbra do seu claustro, será que dependeria de um aerossol para potenciar as suas ideias?
E o que dizer, ainda antes, de Christine de Pizan, e do seu ‘O Livro da Cidade de Senhoras’? Terá ela construído o seu imaginário literário, o seu refúgio simbólico para as virtudes femininas, e celebrado a capacidade intelectual e moral das mulheres, nos intervalos de respingos de primitivas exalações nas partes pudendas?
Ah, e Mary Wollstonecraft. Que trabalheira para escrever ‘Uma Vindicação dos Direitos da Mulher’, quando lhe bastariam umas essências em redor do seu Mons Veneris…
Mas deixemos as luminares da História. E vamos ao centro da questão: jamais será uma bruma, íntima ou licenciosa, que concederá valor à mulher, mas sim o porte, a palavra ponderada, o olhar que sabe recusar ou conceder sem necessidade de subterfúgios olfactivos. Se o rubor, nos meus tempos de vivo, era apenas sinal de pudor, e não de fragilidade, já o frasco de Pipy, pelo contrário, parece sugerir que, para muitos, a começar por demasiadas mulheres, a emancipação precisa de um pipi refrescado por um marketing bem refinado.
Concedo que o marketing do vosso tempo não é um acto banal; é antes uma arte maquiavélica, que transforma o efémero em essencial. E a vossa Cristina Ferreira – ou talvez Criss, pois a sua figura pública parece exigir essa modernidade simplificada – até declara, com solenidade, que “o poder está em ti”. Como não sorrir? O poder feminino, proclamado por séculos nas obras de Austen, Brontë, Woolf, surge agora reduzido no frasco de um pseudo-cosmético. Não que o belo sexo não precise de artifícios – mas é a pena do chapéu da História que se encontra repleta de exemplos em que a elegância, a inteligência e a astúcia feminina suplantaram, com feliz frequência, a força bruta e a vaidade dos homens.
Bem sei que o Pipy da Cristina, evocando mais a brejeirice do que um produto destinado a mulheres sofisticadas, surge embrulhado em “provocação”. E que provocação: transforma emancipação num slogan, o requinte numa caricatura, a elegância numa banalidade, a inteligência numa mercadoria. Não é que o nome – Pipy – ofenda; o problema é rir na cara das conquistas femininas, como quem diz: “Deixemos de lado a elegância, e celebremos a vulgaridade.” Porque, na visão de Criss, ser mulher livre e confiante significa também aceitar esta linguagem rasteira como bandeira de modernidade.
Mas o que mais intriga nesta campanha, começada em Janeiro, é o calendário. Criss promete que Maio será um mês de transformação, quase como um novo Pentecostes. Só que, em vez de línguas de fogo descendo sobre cabeleiras e cabeças, teremos fragrâncias e slogans envolvendo as massas. Imagino as mães, celebradas em Maio, recebendo de presente não um poema ou uma lembrança significativa, mas um frasco dourado com a promessa de um “toque extra de frescura”. Seria cómico, se não fosse trágico.
A verdadeira provocação, caros leitores, não está no Pipy nem no seu ácido láctico nem na ausência de álcool. Está em rejeitar este canto das sereias do marketing, que promete felicidade em frascos e transformação em podcasts. A verdadeira provocação está em lembrar que o poder – o verdadeiro poder – não se pulveriza, mas se constrói. A verdadeira provocação está em exigir mais do que brejeirices embaladas em ouro falso.
Enfim, depois de serenar a espuma dos dias, confio que, lá no fundo, entre folhos, tudo em breve se dissipará, e da bruma da Criss não haverá memória, nem voz dos egrégios avós; restará somente o eco vazio daquilo que nunca frescura foi, mas sim frivolidade. Mas isso, claro, depois de se vaporizarem uns quantos euros das contas de muitas donzelas carentes de emancipação, que se dissiparão nos íntimos cofres da Criss… Ah, meus ilustres amigos, como é fácil vender ilusões!
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.