Administração Biden fez mais do dobro dos repatriamentos de Trump
A Administração Biden, cujo mandato decorreu entre 2021 e 2024, mais do que duplicou o número de repatriamentos de estrangeiros face aos anos do primeiro mandato de Donald Trump (2017-2020), embora usando um expediente especial – uma lei sanitária de 1944, o Título 42 – que fez baixar artificialmente as deportações formais. Estes dados foram recolhidos e analisados pelo PÁGINA UM nos relatórios do Serviço de Imigração e Alfândega (Immigration and Customs Enforcement) e de uma unidade de estatística do Departamento de Segurança Interna (DHS) dos Estados Unidos, com informação detalhada desde 1996 até finais de 2024.
Apesar de a recém-formada Administração Trump ter elegido o controlo intensivo da imigração ilegal como uma das suas bandeiras – provocando já celeuma com deportações para o Brasil e a Colômbia –, certo é que, nos últimos quatro anos, os Estados Unidos até impediram um maior número de permanências face aos anos anteriores.
Considerando todas as tipologias de repatriamento – retornos administrativos e forçados, deportações coercivas e expulsões sob regimes específicos, como o Título 42 –, foram contabilizados 777.590 processos ao longo de 2024. De entre estes, os retornos administrativos – aplicados quando um estrangeiro é intercetado na fronteira ou detetada a sua ilegalidade em inspeções regulares e sai voluntariamente do território norte-americano sem ser sujeito a um processo formal de deportação – totalizaram 92.310 casos, ou seja, 12% do total. No caso dos retornos forçados (‘enforcement returns’) – que não envolvem processo judicial completo, sendo uma forma simplificada de repatriamento –, no ano passado contabilizaram-se 355.290 casos, ou seja, 46% do total.
Já as deportações coercivas, também denominadas formalmente como remoções (‘removals’) – que implicam um processo legal mais rigoroso, com a expulsão e outras penalidades, baseando-se em violações das leis de imigração –, atingiram os 329.990 casos, representando 42% do total.
O total de repatriamentos a partir dos Estados Unidos no último ano civil do mandato de Joe Biden supera qualquer dos quatro anos do primeiro mandato de Donald Trump. Mas a contabilidade ainda se torna mais tenebrosa, e altera a perceção, se se contabilizar o período em que se aplicou o regime especial do Título 42, durante a pandemia. Aí, chega-se à conclusão de que, no mandato de Joe Biden, entre 2021 e 2024, foram repatriadas 4.779.640 pessoas – contra 2.001.220 pessoas no primeiro mandato de Trump (2017-2020) –, o que torna este o terceiro presidente que mais repatriou desde o mandato de Eisenhower (1953-1960).
Com efeito, tendo a Administração Biden repatriado, por ano, uma média de quase 1,2 milhões de pessoas, só foi superado por Bill Clinton (1,5 milhões por ano) e George W. Bush (1,3 milhões por ano). Na lista dos últimos 13 presidentes, Donald Trump surge, porventura surpreendentemente, apenas na nona posição em termos de repatriamentos totais – e é aquele que menos repatriou nos últimos 50 anos.
A aplicação do Título 42 foi inicialmente usada pela Administração Trump, em Março de 2020, ‘ressuscitando’ uma lei sanitária de 1944, que permitia assim ao Governo adotar restrições à entrada de pessoas ou bens no país para prevenir a disseminação de doenças transmissíveis. Transposta para desburocratizar expulsões de forma sumária, Trump usou-a bastante para controlo da imigração a partir do México, alegando que a sobrelotação em centros de detenção promoveria surtos incontroláveis. Sem acesso ao sistema tradicional de imigração, incluindo o direito de solicitar asilo – e contrariando assim o direito internacional –, no final do primeiro mandato de Trump, entre março e setembro de 2020, foram expulsas quase 207 mil pessoas, cerca de 34% dos 608 mil repatriamentos daquele ano.
Este número anual (608.380) foi o mais elevado do primeiro mandato de Trump. Antes da pandemia, sem Título 42, os repatriamentos da primeira Administração Trump tinham atingido 387 mil em 2017, um pouco mais de 487 mil no ano seguinte e cerca de 518 mil em 2019.
Se parece evidente que Trump usou, em 2020, a ‘desculpa’ da pandemia para expulsar mais imigrantes sem burocracias nem pingo de humanidade, então a Administração Biden abusou nos anos seguintes. De facto, se, no primeiro ano da pandemia, Trump usou o Título 42 para expulsar uma média mensal de quase 61 mil (em 10 meses), a Administração Biden tomou-lhe o ‘gosto’. Ao longo do primeiro ano de mandato, Joe Biden tinha, na sua conta, 1.071.080 repatriamentos apenas pelo Título 42, sem incluir as restantes ‘modalidades tradicionais’.
Por esse motivo, só contabilisticamente, as deportações (‘removals’) nos Estados Unidos desceram de 234.340, em 2020 (era Trump), para apenas 85.100, em 2021 (primeiro ano da era Biden). Assim, juntando um pouco mais de 128 mil de retornos administrativos e quase 50 mil de retornos forçados, a Administração Biden acabou, no primeiro ano de mandato, por ‘mandar embora’ um total de 1.334.200 pessoas, um crescimento de 119% face ao ano anterior, ainda sob governo federal do seu opositor republicano.
No ano seguinte, em 2022, o democrata repetiu a dose: os repatriamentos surgiram à boleia do famigerado Título 42, com base em supostos motivos de saúde pública. Nessa ‘modalidade’, foram expulsos, sem apelo nem agravo, mais de 1,1 milhões de pessoas, uma média próxima das 100 mil por mês. Além destes, foram ainda repatriados mais 154 mil por retornos administrativos, quase 81 mil por retornos forçados e cerca de 123 mil deportações coercivas. No total, em 2022, a Administração Biden repatriou quase 1,47 milhões de pessoas, de longe o número mais elevado desde 2010.
Por via da maior facilidade de expulsar imigrantes através do Título 42, a Administração Biden teve um efeito talvez esperado: quem era sumariamente ‘atirado’ fora da fronteira tentava de novo. O relatório de 2022do Office of Homeland Statistics salienta que as expulsões ao abrigo do Título 42 contribuíram para “encontros” repetidos das autoridades com os mesmos indivíduos. “Em 2022, 26% dos encontros de aplicação da lei pela CBP [Agência de Proteção de Fronteiras e Alfândega] envolveram pessoas anteriormente encontradas nos 12 meses anteriores, em comparação com 45% dos encontros entre março e setembro de 2020, 35% em 2021 e uma média de 15% entre 2014 e 2019.”
Somente em Maio de 2023 o Título 42 foi descontinuado, e o sistema de imigração norte-americano retornou às regras tradicionais, que exigem processos legais mais estruturados para avaliar os pedidos de asilo, impondo penalidades severas para reentradas não autorizadas. Nesse ano, ainda foram expulsos sumariamente, por essa via, um total de 579 mil pessoas, registando-se uma descida do total dos repatriamentos para valores próximos de 1,2 milhões de pessoas. Neste ano, já se observou uma subida das deportações ‘clássicas’, com recurso a meios judiciais, que se cifraram em 117.540 pessoas, enquanto os retornos forçados aumentaram para quase 289 mil e os retornos administrativos se quedaram nos 154 mil.
Observando as expulsões de território norte-americano ao abrigo da aplicação do Título 42, os valores impressionam em quatro anos: 2.960.910 casos, representando 64% do total dos repatriamentos. Neste período, em cada 100 expulsos por esta via, 97 foram durante o mandato de Biden. Por causa disso, as deportações tiveram apenas um peso de 13% no total dos repatriamentos, quando, no quinquénio anterior à pandemia, representavam 71% do total dos repatriamentos.
Por esse motivo, mostra-se enganador analisar somente a evolução dos números de deportações considerando o período, uma vez que a descida entre 2021 e 2023 é fictícia. Sem pandemia, muitos casos de expulsão sumária seguiriam a via judicial. Também é certo que a expulsão sumária promoveu, indirectamente, uma ‘inflação’ de casos, já que quem fosse mandado sair ao abrigo do Título 42 não incorria nas penalizações (por regra, pena de prisão de dois anos) caso fosse novamente apanhado ilegalmente – e daí os novos ‘reencontros’ com as autoridades fronteiriças.
Seja como for, o padrão do imigrante ilegal nos Estados Unidos não se modificou substancialmente nos últimos anos, embora se tenha intensificado em função do crescimento generalizado dos repatriamentos entre os períodos da primeira Administração Trump (2017-2020) e da Administração Biden (2021-2024). Com efeito, somando todas as modalidades de repatriamento, México (a grande distância), Guatemala e Honduras mantêm-se no topo, representando em conjunto 69% das ‘saídas’, mas com crescimentos acentuados.
O vizinho do sudoeste dos Estados Unidos, onde maiores tensões fronteiriças existem, registou 1.061.890 repatriamentos no quadriénio 2017-2020 e subiu para 2.363.640 no mandato de Biden. Já a Guatemala teve um crescimento de 167%, passando de 187.220 repatriamentos no primeiro mandato de Trump para 500.260 no mandato de Biden. Quanto às Honduras, a subida relativa foi de 228% entre as administrações republicana e democrata, passando de 134.630 repatriamentos para 442.040.
Um dos sinais do recrudescimento dos repatriamentos na Administração Biden mostra-se pelo número de países com mais de 100 mil casos em quatro anos. No período do primeiro mandato de Trump, além da tríade habitual (México, Guatemala e Honduras), só as Filipinas ultrapassaram aquela fasquia, havendo apenas mais três países (El Salvador, Canadá e China) com repatriamentos acima de 50 mil. Já durante o mandato democrata, que agora terminou, contabilizam-se sete países acima de 100 mil repatriamentos em quatro anos: a tríade México, Guatemala e Honduras, e ainda El Salvador (que passou para a quarta posição), Filipinas, Índia e Canadá. Com mais de 50 mil deportações entre 2021 e 2024 contam-se também o Equador, China, Colômbia e Venezuela.
De destacar que esta evolução mostra, de igual modo, que a pressão sobre as fronteiras norte-americanas está a recrudescer a partir da América Latina, sendo particularmente relevantes os crescimentos relativos dos repatriamentos do Equador, Colômbia, Venezuela, Haiti e mesmo Brasil.
Apesar destes factos mostrarem que o partido democrata no poder foi mais ‘repressivo’ sobre estrangeiros ilegais, Donald Trump tem sido visto como um impiedoso adversário da imigração desde que tomou posse para o seu segundo mandato não consecutivo na Casa Branca. O 47.º presidente norte-americano prometeu a deportação de “milhões e milhões” de imigrantes.
E, na última semana, já estalaram várias polémicas em torno do tema das deportações. O caso do avião com 88 brasileiros deportados gerou uma onda de indignação internacional, que os media tradicionais se encarregaram de reforçar, aproveitando para culpar Trump. Os cidadãos brasileiros estavam algemados e relataram ter sido alvo de maus-tratos durante o voo, onde seguiam 16 agentes de segurança dos Estados Unidos, além da tripulação composta por oito membros. O avião, com destino a Belo Horizonte, no sudeste do Estado de Minas Gerais, aterrou em Manaus devido a problemas técnicos, segundo informações do Ministério da Justiça brasileiro, citadas pela agência de notícias Reuters.
O Ministério das Relações Exteriores brasileiro anunciou na rede X que pedirá explicações aos Estados Unidos sobre o que classificou como o “tratamento degradante” a que foram sujeitos os brasileiros deportados. Saliente-se, contudo, que este foi já o segundo voo de imigrantes brasileiros ilegais indocumentados que chegou ao Brasil este ano, sendo que um ocorreu durante os últimos dias do mandato de Joe Biden.
Outra polémica surgiu com a Colômbia, que é o terceiro maior parceiro comercial dos Estados Unidos na América Latina. O presidente colombiano, Gustavo Petro, começou por anunciar que o país iria recusar a aterragem de aviões militares norte-americanos com imigrantes deportados. Mas a ameaça de Trump de impor tarifas a produtos colombianos e outras sanções, nomeadamente a suspensão de vistos, surtiu efeito. Petro voltou atrás com a sua decisão, e a Casa Branca colocou a guerra comercial e as sanções em standby.
O plano de ‘castigo’ dos Estados Unidos previa a imposição de tarifas de 25% sobre todos os produtos colombianos e ainda a proibição de viajar e a revogação de vistos atribuídos aos funcionários do governo colombiano. Também incluía sanções financeiras e bancárias, entre outras ameaças.
Nos media, o tom geral tem sido de crítica à postura de Trump, sobretudo pelo recurso à táctica de ‘chantagem’ para pressionar o presidente colombiano. Numa outra polémica, foi noticiado também que a ‘polícia de imigração’ (ICE) recebeu autoridade sem precedentes para agilizar deportações, numa altura em que há relatos de ‘raides’ em diferentes locais nos Estados Unidos e as tropas norte-americanas estão a ser colocadas na fronteira com o México.
Em todo o caso, convém referir que, quando tomou posse em 2017, Trump manifestou a sua intenção de criar um muro contínuo na longa fronteira de 3.142 quilómetros com o México para controlar a imigração. Queria mesmo obrigar aquele país a pagar pela obra, fazendo ameaças de sanções, cobranças de dívidas e cortes de acordos comerciais. Também prometeu ainda expulsar todos os imigrantes ilegais e previa aumentar os custos de taxas de entrada no país e de vistos temporários.
Na campanha que então venceu contra Hillary Clinton, Trump queria obrigar as empresas a empregar primeiro cidadãos norte-americanos, sem exceção, e ainda pretendia vedar a entrada a sírios, iraquianos e outros cidadãos de países de maioria muçulmana.
A realidade foi menos ‘brutal’, a tal ponto que a Administração Biden até acabou por repatriar muitos mais estrangeiros do que ele no seu primeiro mandato.