Ambiente ‘tóxico’ na Quercus
No ano que completa o seu 40º aniversário, a associação ambientalista Quercus prepara-se para tomar uma medida drástica e inédita: expulsar quatro associados, incluindo o ex-presidente João Branco e uma antiga dirigente de um núcleo regional, Aline Pinheiro, que até já fora expulsa em 2008 mas mais tarde readmitida.
A proposta será votada em Assembleia Geral Extraordinária (AGE) agendada para este sábado, e surge na sequência de uma ‘guerra fraticida’ que envolve processos de antigos e actuais dirigentes. [Os quatro associados acabaram mesmo por ser expulsos após a votação em AGE].
Esta medida é o culminar de anos de polémicas e disputas internas na histórica associação ambientalista, fundada em 31 de Outubro de 1985, que já incluiu processos judiciais contra o seu antigo presidente João Branco. Por sua vez, o líder da Quercus entre 2015 e 2019 avançou com uma participação junto do Ministério Público contra diversos dirigentes e associados da organização.
Segundo a convocatória da AGE, são cinco os pontos na ordem de trabalhos nesta reunião de associados que se realizará num formato híbrido, na sede da Quercus, em Lisboa, e também online. O ponto um diz respeito à designação do presidente da comissão arbitral. Os restantes quatro pontos são relativos à proposta de expulsão dos quatro associados: Aline Pinheiro, que, no passado, presidiu ao Núcleo da Quercus em Lisboa; Cláudia Monteiro, ex-presidente do Núcleo do Algarve; João Branco, antigo presidente; e Paulo Mendes, ex-dirigente do Núcleo Regional de Braga e autor de uma providência cautelar, intentada no início de 2024, para destituir a actual direcção nacional da associação, alegando ter havido irregularidades na convocatória da assembleia-geral em Abril de 2023.
Alexandra Azevedo, presidente da Quercus, reconheceu, em declarações ao PÁGINA UM, que a proposta de expulsão dos quatro sócios e ex-dirigentes se trata de uma medida inédita, e que, pelo menos desde 2008, é a primeira vez que são expulsos associados. Segundo a actual líder, a expulsão foi “proposta pela direcção nacional”, tendo a “comissão arbitral feito a instrução do processo e o relatório final”. Alexandra Azevedo escusou-se a revelar pormenores dos processos. A decisão final cabe agora aos associados que votarão a proposta de expulsão dos quatro associados.
Para João Branco e Paulo Mendes, a expulsão é uma manobra para eliminar eventuais candidatos em futuras eleições para a liderança da organização ambientalista. Segundo João Branco, com esta proposta “a actual direcção afasta a concorrência”.
No resumo dos processos disciplinares que o PÁGINA UM consultou, Paulo Mendes considerou que “o procedimento disciplinar não tem qualquer fundamento e que não passa de um lamentável exercício destinado a afastar da Quercus um sócio incómodo e, nomeadamente, de o impedir de se candidatar às próximas eleições para os órgãos sociais”.
Por sua vez, João Branco avançou com uma participação junto do Ministério Público contra diversos membros dos corpos sociais e organismos da Quercus, designadamente a actual presidente da associação ambientalista. Na participação, Alexandra Azevedo é acusada de actos que lesaram a Quercus no âmbito de uma obra de construção e ainda de ter beneficiado associados no pagamento de quotas em atraso em troca do seu voto nas eleições em assembleia-geral. Acusa ainda a dirigente de ter falsificado os relatórios e contas de 2020 e 2021 para obter resultados positivos.
A expulsão de João Branco, associado n.º 13447 e presidente da Quercus nos mandatos de 2015-2017 e 2017-2019 consta do quarto ponto na ordem de trabalhos da AGE. O antigo dirigente nacional da associação ambientalista foi processado pela Quercus, designadamente devido a acusações de má gestão financeira durante o seu mandato como presidente. Essas acusações incluem a alegada utilização indevida de fundos da associação para fins pessoais, o que motivou a abertura de um processo disciplinar.
Na Justiça, João Branco foi alvo de três processos judiciais, no total. No primeiro, foi acusado de falsificar actas, tendo o processo sido arquivado, segundo informações do próprio ao PÁGINA UM, e indicou ainda que os outros dois processos estão em curso: um por alegada má gestão; e outro por se ter apropriado da conta da Quercus no Facebook.
No caso do processo em que é acusado de má gestão, um parecer de Julho de 2018 do Núcleo de Assessoria Técnica do Ministério Público destacou a existência de operações e pagamentos que exigiam mais informações, designadamente gastos de deslocação em viatura própria e a compra de um fato, que foi classificada como despesa de representação. Mas também concluiu que, com base na informação do ROC da Quercus, “a certificação legal de contas do ano de 2018 confirma a melhoria da situação da associação, invertendo-se assim a situação dos anos anteriores, não identificando, caso se realizem os projectos iniciados, qualquer incerteza quanto à sua continuidade – em 2018 apresenta um resultado líquido de 100.225,91 euros”.
No processo disciplinar interno, João Branco é acusado de “falsificação de actas” da direcção nacional; “má gestão financeira e patrimonial”; “despesas não documentadas”; “contratação de serviços a empresas com relações familiares directas”; “acesso ilegítimo ao Facebook oficial da Quercus”; e “uso abusivo do nome, logótipo e marca ‘Quercus’”.
A comissão arbitral concluiu que “o comportamento do associado para além de ser abusivo, é uma traição, uma afronta e uma deslealdade para com a Quercus”.
Segundo a comissão arbitral, “os documentos constantes do presente procedimento disciplinar mereceram total credibilidade e corroboram os factos alegados na proposta fundamentada apresentada” pela Direcção Nacional, “mormente a Auditoria Forense realizada, que foi um trabalho externo, imparcial e preciso, elaborado por profissionais independentes. Todos os factos e documentos não foram impugnados pelo associado”.
João Branco, além de refutar as acusações, diz que solicitou o relatório da auditoria e que nunca lhe foi enviado. No caso da página da Quercus no Facebook, o engenheiro florestal garante que “não se apropriou da página da Quercus”.
O segundo ponto da ordem de trabalhos da Assembleia Geral deste sábado inclui também a expulsão de Aline Pinheiro, que presidiu ao Núcleo da Quercus em Lisboa. No seu curriculum refere ainda que “criou e coordenou a temática da Construção Sustentável”, na associação e que “é autora do Projecto Edifício Verde – Edifício demonstrativo de construção sustentável, que implementou”. A arquitecta tinha sido expulsa em 2008, mas foi reintegrada quando João Branco liderou a associação.
Segundo o resumo dos processos disciplinares, Aline Pinheiro é acusada de ter feito um “contacto à Gestora de Conta da Quercus da Caixa Geral de Depósitos (CGD), sem legitimidade e alegando motivos falsos, que resultaram na suspensão da decisão deliberada e aprovada, por unanimidade, a concessão de um empréstimo de 150.000 euros” por parte do banco “à Quercus, essencial para garantir a segurança financeira” da associação, “bem como para cumprimento de obrigações fundamentais”.
Também é acusada de ter tido um “padrão de intervenções escritas desta associada numa linha de clara deslealde para com a Quercus, enviando e-mails a terceiros e/ou com conhecimento de terceiros”. A actual Direcção Nacional alega também a existência de “fortes indícios” de que Aline Pinheiro “esteve a dispor de “grande parte dos activos financeiros deixados pela Direção anterior do Núcleo, no valor de cerca de 20.000 euros, para benefício próprio, com diversas transferências para a empresa de que é sócia – Bongreen”.
Segundo o documento, “desde o ano de 2019, [Aline Pinheiro] recebeu através de pagamento á empresa Bongreen – Consultoria, Formação e Arquitectura, Lda., da qual era sócia maioritária, um total de 17.904,01 euros, dos quais 16.467,37 euros utilizando indevidamente a conta bancária do Núcleo Regional de Braga”. Adianta que “todos os factos e documentos não foram impugnados pela associada”, que num e-mail, em 20 de Maio de 2023, respondeu à associação: “Por favor! O que é isto? Eu estou-me a cagar para a Quercus ou para aquilo que vocês pensam de mim. (…)” .
Para a Quercus, “a associada agiu, de forma voluntária, reiterada e com dolo directo, contra o bom nome e prestígio da Associação, e contra o cumprimento do consignado na Declaração de Princípios, Estatutos e Regulamentos, zelo e diligência nos cargos/funções que ocupava”. Na proposta final de sanção disciplinar, a comissão arbitral diz que “considera adequado e proporcional a aplicação da sanção disciplinar de expulsão da associada [Aline Pinheiro].”
Cláudia Monteiro, ex-presidente do Núcleo do Algarve, eleita em 2020, é também um ‘alvo a abater’. Está acusada de ter feito um contacto ilegítimo com a Agência Portuguesa de Ambiente (APA) que resultou na suspensão da inscrição da Quercus no Registo Nacional das Organizações Não-Governamentais de Ambiente. Cláudia Monteiro respondeu à acusação por escrito, em Janeiro de 2024, “invocando a prescrição e caducidade do direito de acção disciplinar”, refutando as acusações e defendendo que sua actuação mais não foi do que “o exercício efectivo das competências que à data lhe assistiam enquanto Presidente do Núcleo Regional do Algarve, manifestando a sua discordância com a forma como a DN [direcção nacional] vinha exercendo as suas funções”.
O quinto e último potencial sócio expulso é Paulo Mendes, que foi dirigente do Núcleo Regional de Braga. O jurista foi o autor de uma providência cautelar, intentada no início de 2024, para destituir a actual direcção nacional, alegando ter havido irregularidades na convocatória da assembleia-geral da Quercus em Abril de 2023, na qual foi eleita a actual direcção presidida por Alexandra Azevedo para um segundo mandato. A providência cautelar acabou por ser revogada.
Paulo Mendes é acusado pela Quercus de utilização indevida do nome de domínio ‘quercus.com.pt’. Mesmo depois de lhe ter sido pedido que cessasse a utilização do domínio, o antigo dirigente regional do Núcleo de Braga continuou a fazê-lo. Também é acusado de ter enviado informações confidenciais e de notas de imprensa no âmbito da providência cautelar que intentou.
Em resposta às acusações, Paulo Mendes considerou que “o procedimento disciplinar não tem qualquer fundamento e que não passa de um lamentável exercício destinado a afastar da Quercus um sócio incómodo e, nomeadamente, de o impedir de se candidatar às próximas eleições para os órgãos sociais”. Também refutou as acusações e, sobre o uso do domínio, argumentou que “a palavra ‘quercus’ se reporta a um género de árvores” e que “pela consulta à base de dados do INPI, utilizam a marca ‘Quercus’ diversas entidades”. E diz que se “prontificou a oferecer à Quercus a titularidade do domínio ‘quercus.com.pt’”.
Paulo Mendes “impugnou toda a matéria da acusação e os documentos que a acompanham”, peticiona o associado, a final, o arquivamento do procedimento,” e chegou a arrolar testemunhas”. Mas nenhuma testemunha chegou a ser ouvida e o associado continuou a usar o e-mail com domínio ‘quercus.com.pt’. Para a comissão arbitral, “o associado pretendeu, de forma clara, denegrir a imagem da Quercus, colocando em causa o seu bom nome e prestígio perante o público”.
Apesar destas expulsões, o ‘ambiente tóxico’ entre os actuais antigos dirigentes da Quercus deverá continuar a prevalecer já que prosseguem processos em Tribunal, havendo ainda a possibilidade de haver nova litigância judicial no futuro após a confirmação da expulsão dos quatro associados.
A Quercus é, desde há décadas, uma das mais activas associações ambientalistas de âmbito nacional, embora tenha ‘perdido’ parte dos seus ‘activos humanos’, depois da saída de vários destacados membros, que viriam a formar em 2015 a Zero, liderado por Francisco Ferreira.
Mesmo com uma intervenção menos activa, a Quercus contava em 2023 com 2.897 associados, o valor mais baixo dos últimos 15 anos, mas vive actualmente uma situação financeira mais desafogada depois de anos de aflição. Nas contas de 2023 apresentou activos de cerca de 2,6 milhões de euros, rendimentos (sobretudo de donativos e apoios estatais) ligeiramente superior a um milhão de euros e contabilizou um lucro de 215 mil euros, contando com 15 funcionários.
Notícia actualizada para adicionar a confirmação da expulsão dos quatro associados da Quercus, no 2º parágrafo.
N.D.: Como é referido na Declaração de Transparência do PÁGINA UM, o director do jornal, Pedro Almeida Vieira, foi dirigente da Quercus, tendo desempenhado funções de vogal na direcção nacional no período de 1993-1995. Actualmente, não é sócio da Quercus. Também foi sócio-fundador da Zero (sem qualquer actividade).