Cristina Ferreira: um tiro no submarinista Gouveia e Melo

Author avatar
Brás Cubas|03/02/2025

Se há Arte maior do que todas as demais em que os homens mais se aperfeiçoaram ao longo da História, não é a da Guerra – que me desculpe Sun Tzu, mestre da estratégia e do ardil –, nem a da Ciência – que me perdoe Galileu Galilei, esse mago do conhecimento –, nem sequer a da Poesia – que me indulte Homero, o arquitecto da épica. A Arte das Artes, o ápice do engenho humano, é a Arte de Governar – ou, melhor dizendo, a Arte de se Governar – e, dentro desta, uma superclasse, uma Arte ainda mais refinada: a Arte de seduzir aqueles que devem ser governados. Pois o poder raramente se conquista pela excelência, mas quase sempre pelo engano, e quase nunca se exerce pela sabedoria, mas antes pelo carisma de um artífice que convence o povo de que ele próprio é quem governa.

Já Platão – julgo ter sido ele –, na sua República – julgo ter sido nela –, nos advertia contra o perigo de se entregar o Governo a quem melhor soubesse agradar às massas, comparando a democracia a um navio onde o capitão não é o mais sábio, mas sim aquele que melhor engana a tripulação. Em tempos mais modernos, Schopenhauer notou que os homens não buscam a verdade, mas sim a ilusão que melhor os consola. Gustave Le Bon, por sua vez, demonstrou como as multidões são volúveis, emocionais e susceptíveis à manipulação, tornando-se presa fácil de líderes que lhes oferecem o espectáculo da autoridade. E ainda em tempos mais recentes, Ortega y Gasset alertou para o triunfo do homem-massa, aquele que, na sua ignorância satisfeita, repele o saber e aclama a superficialidade.

Se estas lições se aplicam universalmente, entre os portugueses encontram pasto fértil, pois sempre foi povo talhado tanto para a saudade como para a desilusão, tão apto para a melancolia como para o deslumbramento fácil, suspenso entre o fatalismo sebastianista e o entusiasmo de última hora. E onde mais se poderia observar tal tendência senão no ritual cíclico da eleição presidencial, onde se gera um frenesi em torno da escolha de um novo Chefe de Estado que, no regime semi-presidencialista português, desempenha, na prática, um papel de monarca republicano sem coroa e de mestre-de-cerimónias sem vara de comando?

Bem sei que a Presidência da República confere ao ungido pelo povo uma aura de poder porque lhe permitem ratificar tratados, promulgar decretos e vetar diplomas, embora estes possam ser aprovados de novo sem grande alarde – uma coreografia institucional que sugere mais um protocolo de Estado do que um verdadeiro exercício de autoridade. E assim, entre discursos de apelo à estabilidade e a solene garantia de que “não deixará de exercer as suas competências”, se tem perpetuado, entre bolos-rei comidos de boca aberta e beijoquices sem fim misturadas em selfies, a ilusão de que, algures nos corredores palacianos de Belém, repousa um timoneiro atento ao rumo da Nação.

E, portanto, apesar de as eleições serem apenas em Janeiro do ano vindouro, os candidatos, os protocandidatos e os demais aspirantes a salvadores da lusa Pátria já se agitam no tabuleiro político, contorcendo-se em sugestões discretas, serpenteando-se em insinuações calculadas, deslizando por silêncios cheios de promessas vagas, ensaiando declarações grandiosas, pisando estrategicamente os salões mediáticos e lançando olhares sedutores ao eleitorado.

Têm, portanto, os portugueses ao seu dispor, por ora, um rol de pretendentes à suprema magistratura da Nação, sendo o mais badalado o almirante Gouveia e Melo, cujo único feito político conhecido foi ter-se revelado um diligente distribuidor de vacinas – o que, em tempos de miséria de referências, parece bastar para que a imprensa o entronize como um moderno Lucius Quinctius Cincinnatus, chamado do seu repouso naval para salvar a pátria, apesar de ninguém lhe conhecer um simples pensamento digno sobre a res publica, nem sequer se saber se nutre alguma afeição por esse conceito.

Depois, desfilam os habituais profissionais do carreirismo, que sempre os há e nunca escasseiam. Por agora, destaca-se Marques Mendes, cuja estatura política rivaliza apenas com a sua estatura física, mas de insuficiente estatura para ser porteiro da Sonae – e cujo comentário dominical, imbuído de um oracularismo de feira, lhe granjeou um peculiar estatuto de profeta do óbvio, quando não se enganava ou mentia, sempre num tom de quem acaba de desvendar os mistérios de Delfos.

Também se fala em António Vitorino, paradigma do político que ascendeu mais por astúcia de bastidores do que por grandeza, habilidoso na arte de estar sempre à mesa sem nunca precisar de pegar nos tachos… Nos tachos? Bem, talvez esta metáfora não me tenha saído particularmente feliz, porquanto o significado em terras lusitanas desse utensílio de cozinha melhor se aplica à cómoda estabilidade das sinecuras, prebendas, benesses, mordomias e demais privilégios, remunerados ou não, mas sempre de pouco ou nenhum trabalho.

Ainda surge, no limbo das memórias eleitorais, António José Seguro, esse espécime raro de político que fez carreira a demonstrar que é possível ter ambição sem que ninguém perceba exactamente para quê – um homem que, em tempos, poderia ter sido primeiro-ministro, mas pareceu sempre ligeiramente surpreendido por o levarem a sério, ao ponto de ter entregado o ‘ouro ao bandido”, ou seja, ao camarada António Costa que lhe cobiçou o posto.

Gouveia e Melo.

E não falta, naturalmente, André Ventura, cuja ânsia de protagonismo se mostra proporcional à sua versatilidade ideológica: ora populista de colarinho aberto, ora inquisidor de gravata justa, ora direitista a roçar a extrema, ora liberal travestido de Robin dos Bosques em collants verdes (quiçá para sugerir preocupações ambientalistas), prometendo tirar aos ricos para dar aos pobres – desde que os injustiçados e os criminosos sejam categorias maleáveis ao sabor do discurso do dia. Seja qual for a máscara da ocasião, uma constante: está ele sempre pronto para a cruzada do momento – desde que lhe renda tempo de antena e votos.

E, claro, ainda se tem os candidatos que se aventuram pela folia do pleito, os figurantes de serviço que, em cada eleição, satisfazem um capricho pessoal de inscrição na História, ou se arremetem para garantir uns minutos de antena ao partido ou, simplesmente, para alimentar a ilusão de que o sufrágio democrático é um vasto mercado de ideias e não apenas a montra dos habituais vendedores. Sem qualquer hipótese real de deixar marca no destino do país, contentam-se com a efémera glória de um nome impresso nos boletins e, quiçá, uma nota de rodapé num almanaque de curiosidades.

No meio deste cenário de pequenez, onde o tédio parece ser a única ideologia comum, surgiu-me um rumor, um sussurro vindo dos confins do infoentretenimento, uma hipótese remota, mas irresistível: Cristina Ferreira, apresentadora multifacetada e autora de vasta bibliografia, onde pontifica ‘Pra Cima de Puta’, best-seller de Novembro de 2020.

Ora, descartando todos os predicados da ‘princesa da Malveira’, predisponho-me a analisar a sua obra acima referenciada, cujo título, em apenas quatro palavras, traz um verbo de superação, uma preposição de impulso e um substantivo de impacto. É a síntese perfeita para uma era em que os tratados políticos foram substituídos por sucessos editoriais de empoderamento, e a governação se mede ao ritmo dos aplausos de um auditório de horário matinal.

Cristina Ferreira.

Não me interpretem mal. Os tempos mudam, e se outrora carne tive e hoje mal ossos me restam, aceito que se Maquiavel nos legou ‘O príncipe’, a evolução possa caminhar para uma Cristina Ferreira a publicar ‘A Rainha’, onde se ditarão as máximas e os mandamentos do estrelato, para que, sem coroa, mas com patrocínios; sem exércitos, mas com seguidores; sem ideologia, mas com um discurso de seda, se molde o gosto do povo.

Confesso eu, defunto autor, que se já vi muitos absurdos na vida e ainda mais na morte, que me deixo embalar pela perspectiva de assistir ao nome de Cristina Ferreira nos vossos boletins de voto da Presidenciais. Não que acredite nessa possibilidade, mas porque o possível não é o que move o espírito humano – é o desejável, mesmo se improvável, que o faz vibrar. Na verdade, se a felicidade da política não pode vir do desenvolvimento, pode vir ao menos do entretenimento. E se Portugal não pode ser grande pela obra, que o seja pela festa – como o meu Brasil que tem um Carnaval de quatro dias que vale pelo ano inteiro.

Convenhamos: se a política é um teatro e o governo uma ópera cómica onde raramente o maestro sabe manusear a batuta, por que não entregar a função de Maître de cérémonie a quem, ao menos, sabe entreter?

Dir-me-ão, escandalizados, que a política não pode ser reduzida a um palco publicitário, que a chefia do Estado da República Portuguesa exige gravidade e sentido institucional, que um Presidente da República não governa, mas arbitra, representa, e, em momentos críticos, é o derradeiro garante da estabilidade. Concedo, mas sejamos honestos: por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa era um exímio exegeta constitucional, um jurisconsulto de apuradíssima filigrana hermenêutica, mas tal não o demoveu de esquartejar a Constituição durante a pandemia. E quantos, nas últimas décadas, desempenharam esse papel sem antes terem passado pelo crivo de um casting mediático? A diferença, se acaso existe, é que agora já nem se disfarça a natureza do espectáculo.

Marcelo Rebelo de Sousa.

A verdade é que Belém de Portugal já teve, por inquilinos, generais sem guerras, professores sem discípulos e economistas sem contas certas. Assim, entre um submarinista cujo destino natural é a profundidade e uns advogados cujo maior talento foi ascender sem notabilidade, há algo de deliciosamente lógico na ideia de uma Presidente que, pelo menos, sabe vender um produto – ainda que o produto seja ela própria, mais o seu Pipy.

E nem temam que Portugal se torne alvo de risota no seio internacional. Pior está o meu amado país, que há muito deixou de ser levado a sério e, no entanto, persiste, com a loucura dos estoicos, em sucessivos devaneios, convencido de que o mundo o observa com reverência em vez de condescendência.

Se Portugal se espanta com Cristina Ferreira, que direi eu de um país que já elegeu Collor de Mello, o caçador de marajás caçado na própria esperteza; que já elegeu FHC, o príncipe dos sociólogos que traiu ideais para se reeleger; que já elegeu Lula, o operário que passou de salvador da pátria a réu, para depois regressar como o protagonista reincidente de uma telenovela política interminável; que já elegeu Dilma, a musa involuntária da dialéctica tropical, a filósofa da gramática alternativa, a arquitecta de labirintos sintácticos onde até o sujeito, coitado, se perdia na busca do predicado; e que já elegeu Jair Bolsonaro, o messias tropical que trocou o palácio pelo palanque e transformou o seu Governo num circo de arminhas, motociatas e excentricidades inenarráveis.

Mas o problema nem advém da lusofonia. O mundo inteiro abraça a política como um derivado do entretenimento. Trump está de volta, e governa como sempre governou: entre um comício inflamado e uma ordem executiva às três da manhã entre hambúrgueres e telefonemas para Elon Musk.

Na França, Macron, com o seu ar de banqueiro iluminista, desfila com a convicção de um Napoleão sem exército para batalhar, sem império para expandir, mas com a certeza inabalável de que a sua retórica e a pose bastam para que o povo o tolere – ou, pelo menos, não o derrube antes da próxima reforma impopular. Na Itália, tem-se Giorgia Meloni, uma populista que cita O Senhor dos Anéis como se a Europa estivesse a ser explorada por orcs, e o mundo fosse um decadente teatro romano.

E não nos esqueçamos dos autocratas! Putin, sempre entre um ensaio de guerra e uma sessão fotográfica montado num urso inexistente, parece sempre desejar reencenar o czarismo sem precisar de troikas, mas sim de drones. Ou Xi Jinping, o imperador digital, que já nem precisa de discursos inflamados – governa com algoritmos e aplicações, como o DeepSeek, que garantem que o seu nome seja sempre a única resposta certa. E ainda Zelensky, o improvável chefe de guerra que trocou os palcos da comédia pelo palco da geopolítica, mas que, mesmo cercado de ruínas, nunca perde a mise-en-scène cinematográfica – uma estrela em performance permanente, garantindo que a sua tragédia seja convertida em milhões, enquanto o sangue ucraniano tinge as telas da moral ocidental e a inflação asfixia os povos europeus

E, portanto, seguindo assim o meu Brasil e o demais mundo, que mal adviria de se ter Cristina Ferreira como Presidente da República Portuguesa? Se alguém pode ser eleito Presidente por saber distribuir vacinas, por que não por saber compor frases motivacionais? Se a governança já se dá por meio de narrativas, ao menos que seja uma bem escrita e com boa iluminação.

northern lights, titanic, sea, ship, ocean, landscape, cruise, sailing, 3d render, 3d mockup, titanic, titanic, titanic, titanic, titanic

No fim, se em vez do Almirante, sair uma Princesa da Malveira, é certo que o colapso de Portugal sempre, de forma inevitável, se concretizará. Mas será um afundamento mais espectacular e coreografado, um naufrágio meticulosamente encenado para o aplauso das câmaras.

Em vez de uma submersão no cinzentismo de Gouveia e Melo, Portugal, com Cristina Ferreira, terá direito a um afundanço épico, mais grandioso do que o do Titanic, repleto de música, luzes, fogo de artifício e uma transmissão em directo, com a apresentação do Manuel Luís Goucha e da Teresa Guilherme, com ângulos meticulosamente estudados, lágrimas estrategicamente posicionadas e um documentário inevitável – ‘A Coroa e o Abismo’ –, produzido por Daniel Oliveira da SIC, onde a tragédia nacional será reciclada num enredo de superação, de luminárias e acordes a preceito para consumo popular. E se necessária for encenação mais demótica, ou plebeia, contrate-se, pois, o Filipe La Féria, e pague-se-lhe com dinheiros do Programa de Recuperação e Resiliência.

Ai se eu pudesse votar…

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas

N.D. – A ilustração que acompanha este texto foi produzida com recurso a inteligência artificial.


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.