Carta apologética em favor e defesa dos merdosos
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Minhas dilectas donzelas e meus estimados cavalheiros,
A cidade de Lisboa, velha senhora de colinas e mistérios, viu-se envolvida num enredo digno das melhores tragédias clássicas, ou, quiçá, das melhores farsas. Não se trata de conspirações palacianas como outrora, quando Sebastião José, chamado o Carvalhão, tramou contra fidalgos incautos, nem de revoluções tempestuosas, como as que agitaram o vosso país no século passado – e nem me refiro ao 25 de Abril.
Não, desta feita, a matéria revela-se mais subtil, mais refinada, mais engenhosa: entrelaçada com os usuais casos de corrupção activa e passiva, abuso de poder e prevaricação – um tutti-frutti de meras trivialidades no panorama judicial lusitano –, desvela-se o modus operandi da distribuição estratégica de candidatos merdosos, um exercício de precisão aritmética destinado a assegurar um equilíbrio harmonioso entre os partidos na governação das juntas de freguesia.
Sim, os merdosos! Essa casta vilipendiada, esses proscritos do olfacto público, a quem amiúde se aponta o dedo com desdém e que, contudo, carregam consigo uma filosofia altíssima, uma metafísica escatológica e uma liberdade que só os espíritos verdadeiramente elevados podem compreender.
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Vejam como, em Lisboa, nos ofereceram tão bela arquitectura política! Segundo consta, nos idos de 2017, o muito ilustre e prudente presidente da Câmara, Fernando Medina, qual exímio xadrezista, sondou as peças no tabuleiro das juntas de freguesia e, com a perícia de um verdadeiro estadista, concedeu, ao que parece, aos adversários do Partido Social Democrata, umas quantas antecipadas vitórias estratégicas, assegurando, em contrapartida, a devida reciprocidade. Assim, não seria a competência a decidir as eleições, mas sim um minucioso cálculo de incapacidades. E como se fez? Ora, lançando o Partido Social Democrata uma casta classificada de “gajos merdosos”, condenados a priori à derrota, enquanto outros tantos adversários, cavalheiros de igual espírito do Partido Socialista, fariam o mesmo noutras freguesias. Ah, a política, no seu esplendor!
Não sejamos ingénuos: esta prática longe está de ser capricho moderno. O Império Romano, que se autodenominava a mais perfeita expressão da civilização, já entendia que nem todos os senadores deveriam brilhar – bastava que estivessem presentes, aplaudissem nos momentos certos e sustentassem a ilusão de ordem. Similar se passou na Inglaterra vitoriana, onde a política era uma dança coreografada entre a aristocracia e os chamados rotten boroughs, onde se elegiam parlamentares cujo único mérito era a maleabilidade ao jogo das conveniências.
Se me acusardes de cinismo, digo-vos que a necessidade dos merdosos não é um acaso da democracia – é um princípio estruturante. Imaginemos, por um instante, um parlamento exclusivamente composto por mulheres e homens de talento, de espírito irrequieto e de integridade inflexível. Seria o caos! Quem negociaria os compromissos? Quem se deixaria corromper pela brandura? Quem aceitaria ser um peão para que os verdadeiros estrategas pudessem operar?
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Bem sei que os impertinentes do Ministério Público, céleres em bisbilhotar esta partilha de benesses, anotaram, indignaram-se… mas, no fim, e muito bem, reconheceram que tal prática não era juridicamente censurável. Convenhamos, outro jamais poderia ser o veredicto. De facto, como seria a governação das nações sem os merdosos? Como se poderiam garantir acordos, equilíbrios e favores sem essa valiosa mercadoria humana que é o político inócuo, maleável, de ambições justas – nem excessivas, nem sofríveis, mas nulas – e de uma flexibilidade moral que rivaliza com os bambus do Oriente?
É pois neste contexto, tão relevante para a estabilidade das nações, que mais do que vos convidar a uma reflexão profunda, traço a pena para resgatar do opróbrio e da eventual injúria uma classe de cidadãos a quem a História, essa velha caturra, deveria conceder o devido lustre.
Escrevo assim esta carta apologética em favor e defesa dos merdosos, porque andam por aí, a passos largos, uns ingénuos e bem-intencionados a censurar a venerável prática da seleção meticulosa desse corpo de homens e mulheres de qualidade peculiar. Não compreendo como pode um espírito esclarecido indignar-se perante a concertação, a troca, o ajuste e a benemérita distribuição de fracos candidatos, se tudo isso não passa de um exercício magistral da democracia…
Direi, portanto, de início, que um merdoso é um estóico. Qualquer outro homem geme, revolta-se, se rebela, mas o merdoso aceita o fado. Aprende, desde os primeiros anos, que a existência é um acúmulo de odores e humores, que o mundo se divide entre os que exalam e os que repugnam, e que, no fundo, todos somos pó – ou matéria orgânica em diversas fases de putrefacção.
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Ora, quem mais próximo está da Natureza senão o merdoso? O homem civilizado envenena-se de essências artificiais, cobre-se de águas-de-colónia, sufoca-se em alfazema. Já o merdoso permanece fiel à essência primária do ser. Ele não trai o cheiro que lhe foi confiado. Poderá alguém acusá-lo de falta de autenticidade? Jamais. Não é ele o verdadeiro herdeiro do naturalismo, um Rousseau das latrinas, um Thoreau das vielas esquecidas?
Por outro lado, um merdoso também é um asceta. Não busca glórias nem deseja honrarias nem tem ilusões de grandeza. Ele vive à margem do olfacto social, habituado a olhares torcidos e exclamações de repulsa. Aprende, com a paciência dos mártires, que a vida é um longo cortejo de narizes franzidos, mas mantém-se impávido, senhor do seu próprio aroma.
Mais ainda: o merdoso é um mestre da convivência. Vive no mundo sem exigir que o mundo se adapte a ele. Não pede privilégios nem reclama direitos nem exige quotas de aceitação. O merdoso simplesmente é. E essa aceitação incondicional do próprio estado deveria ser, ela mesma, uma lição para todos nós.
Os gregos, tão ciosos da invenção da democracia, dir-me-ão que jamais conceberam tal estratégia, mas não me enganam! O próprio Clístenes, ao desenhar o seu admirável sistema, terá ponderado que, para o bem comum, alguns incompetentes precisavam ser estrategicamente colocados para que outros, mais argutos, pudessem brilhar. Mesmo Maquiavel, de cuja pena escorre em simultâneo a malícia e a lucidez, teria aplaudido semelhante artifício, pois, como ensina ‘O Príncipe’, um governante hábil deve saber dosear os venenos e distribuir as incompetências – deve ter sido qualquer coisa assim.
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Sei que há quem imagine, tolamente, que a política se faz de grandes homens, de patriotas destemidos e de luminares irrepreensíveis. Puro delírio! A política exige, sim, um exército bem treinado, com muitas figuras modestas no talento, mas generosas na obediência; figuras cuja limitada ambição serve para lhes garantir um assento sem maiores perturbações. São esses personagens que permitem o equilíbrio das nações, porquanto um excesso de grandeza seria tão nocivo quanto um excesso de mediocridade. O segredo está na dosagem, e eis a sublime ciência dos nossos políticos contemporâneos: sabem, como hábeis boticários, misturar os elementos certos.
Daí que me regozije ao ler as palavras de alguns desses ilustres artífices do jogo eleitoral, esses modernos Metternichs, que, num rasgo de lucidez – aplicando os três princípios fundamentais do poder, a saber: a legitimidade, o equilíbrio do poder e a intervenção – compreenderam a necessidade de lançar candidatos “merdosos” para beneficiarem da existência de outros candidatos “merdosos”. Ora, meus senhores, isto não é corrupção – longe disso. É simetria! Não é um crime – longe disso. É harmonia!
Ademais, convenhamos, não é fácil fazer apurar um bom merdoso.
De entre todas as artes, a arte de ser um político merdoso exige qualidades intrínsecas. Vejamos algumas:
A insigne habilidade da nulidade activa, pois o verdadeiro merdoso deve pairar no espaço público como um fantasma, sem projectos próprios nem ideias inoportunas, vivendo de frases vagas e gestos ocos.
A docilidade do cordeiro, pois o verdadeiro merdoso jamais deve manifestar ímpetos de independência, considerando ser sua função não governar, mas sim permitir que outros governem através dele.
A flexibilidade moral inquebrantável, pois enquanto um político de estatura pode ser traído pelos seus escrúpulos, o verdadeiro merdoso deverá estar imune a essas debilidades, nunca hesitando em seguir a linha que lhe indicam.
A resistência a qualquer resquício de vergonha, pois se o homem comum, ao perceber-se um joguete nas mãos alheias, pode corar e rebelar-se; o verdadeiro merdoso, dotado de grandeza no servilismo, permanece impassível.
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Não penseis, especiosíssima leitora e meu distinctíssimo leitor, que, apesar das dificuldades em se reunir numa só pessoa tais atributos, se esteja perante espécimes raros. Não, nanja – felizmente, a presença dos merdosos não se restringe ao domínio das juntas de freguesia, nem ao exíguo tabuleiro da política municipal. Não! A sua presença e acção é transversal e vital.
Estão eles por todo o lado, como se juntos fossem Omnipresentes, mesmo se, pelas suas naturezas, sejam ‘Omni-nescientes’ e ‘Omni-impotentes’. Porque, vejamos bem, um merdoso bem colocado sempre facilita acordos, silencia debates incómodos e garante a estabilidade do grande jogo de cadeiras. A História nos ensina que sem um corpo de mediocridade funcional, os regimes tombariam em convulsões perigosas.
Se me permitem um derradeiro conselho, digo-o com a solenidade de quem já viu muito e pouco se espanta: devemos proteger os merdosos! A sociedade deve reconsiderar o seu julgamento precipitado sobre estes seres. Se o mundo valoriza a autenticidade, a naturalidade, a resistência impertérrita e o despojamento de vaidades supérfluas, não será afinal o merdoso o mais digno dos cidadãos?
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Eles são, vos garanto, um bem simultaneamente abundante e precioso. Certo é que o Ministério Público português, e os certos jornais, quais zeladores de um moralismo anacrónico, acham moralmente censurável este expediente sublime. Por isso, cabe a vós, sapientíssimas cidadãs e esclarecidos cidadãos, continuar a garantir a perpetuação dos merdosos.
Porque, no fundo, o grande segredo da política jamais estará na capacidade de governar, mas sim na habilidade de preencher os espaços certos com os homens certos. Ou, no caso presente, com os homens merdosos, errados mas no sítio certo.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.