Pena suspensa: Uma história de amor no Tribunal de Polícia

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Rui Araújo|06/02/2025


 

Foto: Rui Araújo.

O Ti António era um homem sério. Era uma pessoa considerada e estimada cá no bairro, mas um dia entrou pela minha casa adentro e, sem dizer patavina, agarrou nas coisas e atirou tudo janela fora. Pouco depois, meteu-se-lhe na cabeça ir para a rua fazer as necessidades. Foi um ver se te avias. Cada vez estava pior. Aquele homem já nem parecia o pacato Ti António que a gente conhecia… — conta uma vizinha.

Há histórias de amor ou de solidão que acabam em Auto de Notícia. Quando a mulher do senhor António adoeceu uma raiva surda e confusa apoderou-se do velhote e não mais o largou. Um dia — logo a seguir ao funeral da mulher — perdeu definitivamente o fio à meada. Abalou de casa com destino a parte alguma. Entrou num supermercado, deitou a mão à primeira bugiganga que lhe apareceu diante dos olhos e desandou. O vigilante deu pela coisa e o senhor António veio parar ao Tribunal de Polícia por meia dúzia de tostões. As atribulações do homem começaram aí. O Auto de Notícia é peremptório…

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AUTO DE NOTÍCIA

António, 68 anos, viúvo, reformado a aguardar julgamento por furto num supermercado, foi mandado para a sala de impressões digitais por se encontrar a bocejar e a assobiar sozinho na sala de audiências. Cinco minutos depois, quando voltou à sala de audiências, a oficial judicial, Maria, deu conhecimento que este tinha o maçanete das impressões digitais no bolso do casaco, embrulhado numa folha do Tribunal, tendo-se apropriado do mesmo com a vontade livre e consciente e com a intenção de o integrar no seu património. Ao objecto furtado foi atribuído um valor jurado de 1.740 escudos [8,70 euros].

Após ter sido julgado no processo de furto, no qual foi condenado em 180 dias de prisão efectiva, o réu recolheu novamente à sala de impressões digitais, enquanto era elaborado o presente Auto.

Instantes depois, foi dado conhecimento pela oficial judicial Maria que António havia urinado numa caixa de cartão, contendo 500 envelopes do Tribunal, o que fez com vontade livre e consciente e com intenção de danificar os referidos envelopes, o que conseguiu. Aos envelopes danificados foi atribuído o valor jurado de mil escudos [5 euros].

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O senhor António não contesta esta versão dos acontecimentos. Em boa verdade, não se recorda. Deu um tropeção na vida e pronto…

 — Acusam-me de eu tirar o rolo das impressões digitais e de eu fazer chichi num sítio qualquer. Eu não me lembro, meu senhor. Eu andava mal, que a minha mulher tinha falecido. Estava perdido. Eu até já andava mal da cabeça desde que soube que a minha mulher tinha um tumor maligno no estômago. Era uma úlcera cancerosa ou coisa parecida. Depois, quando ela me veio a falecer, ainda fiquei pior. Não sabia o que fazia. Disto que sou acusado agora não me recordo. Agora que eu andava tão bem, graças a Deus… É que eu ando bem. Ando a trabalhar — mas não estou empregado! — simplesmente há casas que guardam aquelas caixas de cartão vazias e dão-mas e eu vou vender porque a minha pensão é pequena. É a minha forma de fazer face às despesas. É o comerzinho, depois é a renda da casa, é a luz, é a água e o telefone. É claro, vejo-me e, às vezes, desejo-me… Vou tratando da minha vida com o papelinho e tenho de fazer limpeza à minha casa. Tenho cinco divisões e infelizmente estou sozinho. Falta-me a mulher. Eu é que tenho de fazer tudo: a limpeza, o comer e até roupa lavo. Não faço mal a ninguém…

CONCLUSÃO

Julgamento adiado sine die. O senhor António vai ter agora de efectuar alguns exames psiquiátricos. O Tribunal pretende saber se há alienação mental antes de julgar o homem.


Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 4 de Junho de 1988.

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