Pagar as vacas ao dono
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Há situações com desfechos perfeitamente previsíveis e atempadamente previstos, e é bizarro que ainda assim causem espanto, e a ninguém mais do que às misteriosas cabeças falantes televisivas, a quem a arte de somar 2+2 e o bruxedo inspiram igual pânico. Vejamos alguns casos, começando pela economia.
Após a entrada da Digi no mercado nacional, as operadoras de telecomunicações tradicionais, aquelas que sempre padeciam de conjunturas desafiantes, resolveram presentear-nos com pequenas atenções, um tráfegozinho extra aqui ou ali, sem que tivéssemos de mexer uma palha. Visto assim, à vista desarmada, até parece que isto da ordem ser rica e os frades serem poucos, vulgo oligopólio, não é regime que favoreça os consumidores. Quem diria tal coisa, à excepção de toda a teoria económica?
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Em sentido inverso está a Cegid, que entrou com estrondo em Portugal há poucos anos, comprando os principais softwares de facturação nacionais, e que já fez saber aos seus parceiros que os produtos vão aumentar entre 5% e 20%. Não que isso tenha alguma coisa que ver com a redução de concorrência, muito pelo contrário, ou poderia dizer-se o mesmo dos bancos, que de ano para ano são cada vez menos e maiores. É que na banca, por respeito aos reguladores principescamente bem pagos, não se diz “redução da concorrência”, mas sim “consolidação bancária”. É verdade que têm perdido balcões, empregos, e concedido menos crédito comercial, mas felizmente têm crescido nos lucros e nas comissões. Estamos cá é para ajudar.
Saltando para a indústria, os saudosistas do Contra Informação ainda se devem lembrar do Cassete Carvalhas e da cassete do PCP, uma paródia ao discurso repetitivo desse partido recitada a cada aparição das “cassetes”. A parte da “aposta no aparelho produtivo nacional” ficava de fora da lenga-lenga televisiva, mas não caiu em saco roto. Muito mais tarde, já no auge da crise financeira internacional, Manuela Ferreira Leite alertava para a importância dos “bens transaccionáveis”, enquanto Sócrates e Coelho insistiam nas exportações para equilibrar a balança comercial, e agora até a Comissão Europeia nos vem dizer que é preciso reindustrializar não só Portugal, mas toda a Europa.
Tudo cassetes com muito mais finésse do que a do PCP, mas tantos anos depois que até CD já passou de moda, e enquanto nos encantávamos com os refrões as nossas indústrias estrebuchavam, do têxtil à construção naval, e perdiam-se milhares de empregos, desorganizaram-se milhares de vidas subitamente. Descobrimos que são tantos os refrões como as ruas sem saída.
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Alheias aos dramas populares, que são sempre mais bem vividos na surdina, as cabeças falantes faziam-nos saber que a modernização da economia não é indolor, que a globalização não se faz sem vítimas, e que os sacrifícios são indispensáveis para chegarmos à terra do leite e do mel, que está ali já ao virar da esquina, sempre ao virar da esquina. E de facto houve muitas empresas que prosperaram, sobretudo aquelas que se relocalizaram para pastagens mais verdes sem abdicar do acesso privilegiado ao mercado europeu, montando tenda em países ricos em mão-de-obra pobre e muito mais desenvoltos do que desenvolvidos. Os consumidores também beneficiaram, pelo menos os que mantiveram o emprego, ganhando poder de compra com a chegada de produtos baratos fabricados por trabalhadores mais pobres.
Trinta anos depois, a Europa impõe tarifas de 45,3% aos veículos eléctricos chineses, mandando a Globalização e o Livre Comércio às urtigas, como se fossem amores de ontem, ressentida com o descaramento da China, que não se contentou em produzir para os outros, e tratou de construir infra-estruturas, educar aquela enorme população jovem, e de deitar mão a conhecimento e competências, isso enquanto operava o inédito milagre de tirar 500 milhões da pobreza.
Enquanto a China se empenhava na tecnologia dos veículos eléctricos, a indústria automóvel europeia, em vez de inovar e evoluir, entretinha-se com fusões e aquisições, até que subitamente se descobriu incapaz de competir nesse segmento, não no mercado europeu, onde os veículos eléctricos chineses ainda não chegaram em força, mas no próprio mercado chinês, onde a maior popularidade desse tipo de veículo ajuda a que os construtores locais fazem barba e cabelo à concorrência. Felizmente, a vantagem das mega-empresas está menos nas economias de escala do que está na capacidade de inibir a concorrência, e isso talvez clarifique a jogada das autoridades europeias, feita a pretexto da China subsidiar a produção desses veículos, o que vindo de quem distribui PAC, QREN, 2020, 2030, PRR, etc, deixa à mostra um belo de um topete. É pena porque carros eléctricos a 10.000€ ajudariam a atenuar a catástrofe ambiental, mas é para pagar também essa factura que cá estamos.
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O entusiasmo com a globalização, ainda que à custa da indústria tradicional, esgotou-se rapidamente, e agora volta-se ao fechamento do mercado e à protecção da indústria, disfarçando-se a inversão de marcha com os habituais “interesses europeus”, “conjunturas desafiantes”, “potências revisionistas”, e outras metafísicas a que deveríamos renunciar em favor do óbvio: quando as vítimas são os trabalhadores, é o progresso; quando toca aos capitalistas, é batota.
Agora, as boas notícias: a indústria do armamento tem valorizado imenso em bolsa, feliz resultado da proliferação de guerras. O anterior secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), Jens Stoltenberg, não esqueceu os investidores ao peitar a Rússia sem esquecer a China, ainda que esse país não partilhe um centímetro de fronteira com a aliança militar. Mark Rutte, o actual secretário-geral, contribuiu também para o outlook positivo ao descobrir que basta uma fracção do que se desperdiça em saúde e pensões para que «o orçamento de defesa atinja um nível que sustente os nossos retornos a longo prazo». Entretanto, a União Europeia está a tentar classificar a indústria do armamento como “indústria sustentável”, o que significa que finalmente vamos poder investir em bombas verdes.
É certo que tudo mudou desde o tempo em que a Rússia admitia aderir à NATO, mas nem por isso a teoria de que a Europa está em perigo quadra bem com a matemática: seriam 150 milhões de russos contra 500 milhões de europeus mais ricos, mais organizados, mais sofisticados económica e tecnologicamente, e a jogar em casa, mas nunca se sabe o que esperar de um tirano como Putin. Daí que não foi grande génio quem teve a ideia de fazer exercícios militares NATO-Ucrânia oito meses antes da invasão russa, ou, de anos antes, criar bases da CIA na fronteira dos dois países.
Dito isso, e longe de mim menosprezar a rentabilidade da guerra, mas tentar fazer da NATO uma entidade benévola é levar a ficção demasiado longe. Já em 2008, Mário Soares, homem que sabia somar 2+2, escreveu o seguinte acerca da expansão da NATO:
“E a NATO, cercando a Rússia e instalando na Polónia e na República Checa bases de mísseis, começa a ser uma ameaça para a Rússia, que a pode tornar agressiva. Um perigo!“
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Trata-se da liga de falcoeiros que bombardeou a Sérvia com bombas de fragmentação por causa do genocídio no Kosovo, mas que colabora militarmente com o invasor genocida israelita no matadouro de Gaza. Tudo isto na santa cumplicidade do espaço Eurovisão.
Putin, o tirano, era recebido na Europa com tapete vermelho não pelo espírito de democrata que nunca teve mas sim pelo gás barato que vendia. Mas no salão do Poder é normal usar as pequenas hipocrisias para abrir caminho às grandes jogadas. É certo que por vezes descambam, mas para isso é que estamos cá nós, porque outra coisa em que os pobres são muito bons é a encher de carne a trincheira.
Filipe Martins é informático
Nota: Ilustrações produzidas com recurso a inteligência artificial
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