Pagar as vacas ao dono

Author avatar
Filipe Martins|07/02/2025

Há situações com desfechos perfeitamente previsíveis e atempadamente previstos, e é bizarro que ainda assim causem espanto, e a ninguém mais do que às misteriosas cabeças falantes televisivas, a quem a arte de somar 2+2 e o bruxedo inspiram igual pânico. Vejamos alguns casos, começando pela economia.

Após a entrada da Digi no mercado nacional, as operadoras de telecomunicações tradicionais, aquelas que sempre padeciam de conjunturas desafiantes, resolveram presentear-nos com pequenas atenções, um tráfegozinho extra aqui ou ali, sem que tivéssemos de mexer uma palha. Visto assim, à vista desarmada, até parece que isto da ordem ser rica e os frades serem poucos, vulgo oligopólio, não é regime que favoreça os consumidores. Quem diria tal coisa, à excepção de toda a teoria económica?

green and white electric device

Em sentido inverso está a Cegid, que entrou com estrondo em Portugal há poucos anos, comprando os principais softwares de facturação nacionais, e que já fez saber aos seus parceiros que os produtos vão aumentar entre 5% e 20%. Não que isso tenha alguma coisa que ver com a redução de concorrência, muito pelo contrário, ou poderia dizer-se o mesmo dos bancos, que de ano para ano são cada vez menos e maiores. É que na banca, por respeito aos reguladores principescamente bem pagos, não se diz “redução da concorrência”, mas sim “consolidação bancária”. É verdade que têm perdido balcões, empregos, e concedido menos crédito comercial, mas felizmente têm crescido nos lucros e nas comissões. Estamos cá é para ajudar.

Saltando para a indústria, os saudosistas do Contra Informação ainda se devem lembrar do Cassete Carvalhas e da cassete do PCP, uma paródia ao discurso repetitivo desse partido recitada a cada aparição das “cassetes”. A parte da “aposta no aparelho produtivo nacional” ficava de fora da lenga-lenga televisiva, mas não caiu em saco roto. Muito mais tarde, já no auge da crise financeira internacional, Manuela Ferreira Leite alertava para a importância dos “bens transaccionáveis”, enquanto Sócrates e Coelho insistiam nas exportações para equilibrar a balança comercial, e agora até a Comissão Europeia nos vem dizer que é preciso reindustrializar não só Portugal, mas toda a Europa.

Tudo cassetes com muito mais finésse do que a do PCP, mas tantos anos depois que até CD já passou de moda, e enquanto nos encantávamos com os refrões as nossas indústrias estrebuchavam, do têxtil à construção naval, e perdiam-se milhares de empregos, desorganizaram-se milhares de vidas subitamente. Descobrimos que são tantos os refrões como as ruas sem saída.

ukraine, eu, european parliament, flags, european union, ukrainian flags, ukraine, european parliament, european parliament, european union, european union, european union, european union, european union

Alheias aos dramas populares, que são sempre mais bem vividos na surdina, as cabeças falantes faziam-nos saber que a modernização da economia não é indolor, que a globalização não se faz sem vítimas, e que os sacrifícios são indispensáveis para chegarmos à terra do leite e do mel, que está ali já ao virar da esquina, sempre ao virar da esquina. E de facto houve muitas empresas que prosperaram, sobretudo aquelas que se relocalizaram para pastagens mais verdes sem abdicar do acesso privilegiado ao mercado europeu, montando tenda em países ricos em mão-de-obra pobre e muito mais desenvoltos do que desenvolvidos. Os consumidores também beneficiaram, pelo menos os que mantiveram o emprego, ganhando poder de compra com a chegada de produtos baratos fabricados por trabalhadores mais pobres.

Trinta anos depois, a Europa impõe tarifas de 45,3% aos veículos eléctricos chineses, mandando a Globalização e o Livre Comércio às urtigas, como se fossem amores de ontem, ressentida com o descaramento da China, que não se contentou em produzir para os outros, e tratou de construir infra-estruturas, educar aquela enorme população jovem, e de deitar mão a conhecimento e competências, isso enquanto operava o inédito milagre de tirar 500 milhões da pobreza.

Enquanto a China se empenhava na tecnologia dos veículos eléctricos, a indústria automóvel europeia, em vez de inovar e evoluir, entretinha-se com fusões e aquisições, até que subitamente se descobriu incapaz de competir nesse segmento, não no mercado europeu, onde os veículos eléctricos chineses ainda não chegaram em força, mas no próprio mercado chinês, onde a maior popularidade desse tipo de veículo ajuda a que os construtores locais fazem barba e cabelo à concorrência. Felizmente, a vantagem das mega-empresas está menos nas economias de escala do que está na capacidade de inibir a concorrência, e isso talvez clarifique a jogada das autoridades europeias, feita a pretexto da China subsidiar a produção desses veículos, o que vindo de quem distribui PAC, QREN, 2020, 2030, PRR, etc, deixa à mostra um belo de um topete. É pena porque carros eléctricos a 10.000€ ajudariam a atenuar a catástrofe ambiental, mas é para pagar também essa factura que cá estamos.

architectural photograph of lighted city sky

O entusiasmo com a globalização, ainda que à custa da indústria tradicional, esgotou-se rapidamente, e agora volta-se ao fechamento do mercado e à protecção da indústria, disfarçando-se a inversão de marcha com os habituais “interesses europeus”, “conjunturas desafiantes”, “potências revisionistas”, e outras metafísicas a que deveríamos renunciar em favor do óbvio: quando as vítimas são os trabalhadores, é o progresso; quando toca aos capitalistas, é batota.

Agora, as boas notícias: a indústria do armamento tem valorizado imenso em bolsa, feliz resultado da proliferação de guerras. O anterior secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), Jens Stoltenberg, não esqueceu os investidores ao peitar a Rússia sem esquecer a China, ainda que esse país não partilhe um centímetro de fronteira com a aliança militar. Mark Rutte, o actual secretário-geral, contribuiu também para o outlook positivo ao descobrir que basta uma fracção do que se desperdiça em saúde e pensões para que «o orçamento de defesa atinja um nível que sustente os nossos retornos a longo prazo». Entretanto, a União Europeia está a tentar classificar a indústria do armamento como “indústria sustentável”, o que significa que finalmente vamos poder investir em bombas verdes.

É certo que tudo mudou desde o tempo em que a Rússia admitia aderir à NATO, mas nem por isso a teoria de que a Europa está em perigo quadra bem com a matemática: seriam 150 milhões de russos contra 500 milhões de europeus mais ricos, mais organizados, mais sofisticados económica e tecnologicamente, e a jogar em casa, mas nunca se sabe o que esperar de um tirano como Putin. Daí que não foi grande génio quem teve a ideia de fazer exercícios militares NATO-Ucrânia oito meses antes da invasão russa, ou, de anos antes, criar bases da CIA na fronteira dos dois países.

Dito isso, e longe de mim menosprezar a rentabilidade da guerra, mas tentar fazer da NATO uma entidade benévola é levar a ficção demasiado longe. Já em 2008, Mário Soares, homem que sabia somar 2+2, escreveu o seguinte acerca da expansão da NATO:

E a NATO, cercando a Rússia e instalando na Polónia e na República Checa bases de mísseis, começa a ser uma ameaça para a Rússia, que a pode tornar agressiva. Um perigo!

Trata-se da liga de falcoeiros que bombardeou a Sérvia com bombas de fragmentação por causa do genocídio no Kosovo, mas que colabora militarmente com o invasor genocida israelita no matadouro de Gaza. Tudo isto na santa cumplicidade do espaço Eurovisão.

Putin, o tirano, era recebido na Europa com tapete vermelho não pelo espírito de democrata que nunca teve mas sim pelo gás barato que vendia. Mas no salão do Poder é normal usar as pequenas hipocrisias para abrir caminho às grandes jogadas. É certo que por vezes descambam, mas para isso é que estamos cá nós, porque outra coisa em que os pobres são muito bons é a encher de carne a trincheira.

Filipe Martins é informático

Nota: Ilustrações produzidas com recurso a inteligência artificial


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.