Reportagem da TVI condenada a pagar 50 mil euros pelo Supremo Tribunal de Justiça

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Pedro Almeida Vieira|11/02/2025

O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) condenou a TVI e as jornalistas Ana Leal e Cláudia Rosenbusch – ambas a trabalhar agora no canal Now, da Medialivre – por difamação de um antigo gestor bancário do Montepio em Oliveira de Azeméis, na sequência da transmissão de uma reportagem televisiva em Fevereiro de 2020 que lhe imputava a prática de burlas e desvio de dinheiro. O acórdão do tribunal superior, com data de 16 de Junho, manteve a condenação já decretada em primeira e segunda instâncias, embora tenha reduzido a indemnização de 100 mil para 50 mil euros, considerando excessivo o montante inicialmente fixado pelo Tribunal da Relação.

A disputa judicial teve origem numa peça jornalística emitida pela TVI no programa ‘Ana Leal’ da TVI, onde eram apontadas irregularidades financeiras do gestor bancário. A reportagem, da responsabilidade de Cláudia Rosenbusch – e que tinha Ana Leal como coordenadora – destaca que o gestor teria lesado clientes ao apropriar-se indevidamente de verbas. No entanto, tanto o processo disciplinar interno do banco como a investigação criminal subsequente foram arquivados, não tendo sido provada qualquer ilicitude por parte do autor, se bem que, de acordo com Cláudia Rosenbusch, parte das questões mais graves teriam beneficiado de prescrição. Convém referir, contudo, que o processo criminal sobre a acção do gestor foi arquivado em 2022, ou seja, dois anos após a reportagem da TVI.

Reportagem da TVI de 12 de Fevereiro de 2020 revelava pormenores, com testemunhos, de uma alegada gestão danosa no Montepio de Oliveira de Azeméis.

Curiosamente, esta condenação das duas jornalistas diz respeito apenas à acção cível – ou seja, que se debruça sobre indemnizações –, e não à acção criminal que, segundo Cláudia Rosenbusch, nem sequer chegou à barra do tribunal, tendo sido arquivado. Apesar da pouco lógica desta dualidade – ainda mais no caso do jornalismo, uma actividade constitucionalmente protegida –, em Portugal é possível haver uma absolvição ou arquivamento num processo criminal, mas posteriormente ser condenado numa acção cível com a aplicação de indemnização.

Enquanto no processo criminal a condenação exige prova para além de qualquer dúvida razoável, no cível basta que haja uma maior probabilidade de culpa. Além disso, no crime, o arguido pode optar pelo silêncio, sem que isso o prejudique, enquanto no cível a falta de resposta pode jogar contra si. Assim, mesmo que um tribunal penal não encontre provas suficientes para condenação, um tribunal cível pode determinar que houve responsabilidade e impor o pagamento de uma indemnização.

No caso concreto, no processo criminal não ficou provado que Ana Leal e Cláudia Rosenbusch tenham cometido qualquer crime de difamação, mas na acção cível o gestor bancário conseguiu sustentar que a reportagem da TVI o expôs publicamente como criminoso sem que tivesse sido realizada uma verificação rigorosa dos factos. E que a afectação do seu direito ao bom nome e à reputação foi gravemente prejudicado, levando à perda de oportunidades profissionais e a um impacto significativo na sua vida pessoal.

O Supremo Tribunal de Justiça reafirmou a responsabilidade da TVI e das jornalistas, sublinhando que a liberdade de imprensa não confere um salvo-conduto para a divulgação de informações alegadamente não verificadas, chegando mesmo a defender que não existia “nenhum interesse legítimo em divulgar” que o gestor usava um carro da marca Jaguar e que “teve uma relação com uma ‘acompanhante de luxo’”, algo que, aliás, já fora noticiado em 2017 pelo Correio da Manhã.

Supremo Tribunal de Justiça sancionou TVI mas reduziu indemnização de 100 mil para 50 mil euros.

O acórdão – decretado pelos juízes conselheiros Nuno Pinto Oliveira, António Oliveira Abreu e José Maria Ferreira Lopes – concorda com a decisão do Tribunal da Relação que apresenta a investigação jornalística da TVI como “leviana” e “sensacionalista”. Argumenta também que houve dolo das jornalistas, bem como “ausência de escrúpulos na formulação de graves e delicados juízos de valor sobre a pessoa” do gestor bancário e da divulgação deliberada ou intencional da sua imagem, que incluiu “a captação e divulgação de imagens do seu rosto, em momentos da sua vida privada e até, pasme-se, a conduzir na autoestrada”.

Saliente-se, porém, que o acórdão do STJ nada refere quanto ao facto de a acusação criminal ter caído por terra. A reportagem da TVI já não se encontra online, estando a ligação inactiva, mas uma síntese comentada por Ana Leal num programa matinal com Manuel Luís Goucha está ainda disponível.

Em declarações ao PÁGINA UM, Ana Leal diz-se surpreendida com esta decisão, dizendo que ainda não houve trânsito em julgado, uma vez que o gestor bancário pediu nulidade do acórdão, por não estar satifeito com o valor da indemnização fixada. Por sua vez, a jornalista Cláudia Rosenbusch, autora da reportagem diz estar de consciência tranquila sobre o rigor deste seu trabalho. Garantido parece ser o recurso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos se este acórdão do Supremo for definitivo, o que, embora não inverta a decisão, pode obrigar o Estado a assumir todos os custos com ‘críticas’ à mistura.

Se este caso avançar para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos não será de estranhar que venha juntar-se a outros em que os tribunais portugueses ‘ficam mal na fotografia’. Nos últimos anos, sucedem-se as condenações do Estado português por os tribunais nacionais terem condenado jornalistas, em alguns casos, a indemnizações e multas elevadas.

Por exemplo, no ano passado, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu que a condenação da jornalista Tânia Laranjo, que incluía o pagamento de uma indemnização pela divulgação televisiva do interrogatório ao ex-ministro Miguel Macedo, violara o direito à liberdade de expressão e era “desnecessária numa sociedade democrática”. O tribunal europeu defendeu que a aplicação de multas e indemnizações a jornalistas era um meio “capaz de desencorajar os meios de comunicação social de discutirem temas de legítimo interesse público”, e quem mesmo na fase de investigação e julgamento, se justifica o interesse mediático e o escrutínio público.

Saliente-se que, particularmente em Portugal, além de decisões em tribunal que condicionam a liberdade de imprensa, também começa a ser prática comum os reguladores, como a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), usarem os seus poderes arbitrários e, com base em análises superficiais, ‘conferirem’ deliberações que acabam por se tornar ‘trunfos de acusação’ contra jornalistas.

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