Presidente do Infarmed permite esconder negócios comerciais entre farmacêuticas e grupos de media

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Pedro Almeida Vieira|12/02/2025

Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, será um dos participantes esta tarde no Flu Summit Portugal, um evento anual da Sanofi de promoção das suas vacinas contra a gripe. O evento realiza-se na sede da Impresa, e conta com médicos, representantes de sociedade médicas, deputados e até Luís Marques Mendes, candidato às Presidenciais que fará um ‘wrap-up’ antes do encerramento. Como anfitrião na abertura estará o CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão, e a ‘mestre de cerimónias’ é a jornalista Marta Atalaya.

Mesmo não sendo o nome mais sonante desta conferência, a presença de Rui Santos Ivo tem um forte simbolismo: o presidente do Infarmed vai estar presente, e nem é a primeira vez, num evento comercial envolvendo uma farmacêutica e uma empresa de media que não será registado na Plataforma da Transparência e Publicidade do regulador que lidera. E porquê? Porque o presidente do Infarmed tem sistematicamente permitido, à margem da lei, que se oculte um negócio de promiscuidades de milhões de euros que marca, cada vez mais, a influência editorial da chamada Big Pharma nos órgãos de comunicação social portugueses.

Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, participa até em eventos que não cumprem, ‘nas suas barbas’, as regras de transparência impostas pela Lei do Medicamento.

Tal como muitas outas conferência do género na área da saúde, o Flu Summit é sobretudo um encontro de influências, onde, neste caso em particular, a Sanofi reforça a sua posição junto de médicos, decisores políticos e media, funcionando como uma montra estratégica para a empresa francesa consolidar o seu protagonismo na definição das políticas de vacinação em Portugal. Não é por acaso que, na parte final, haverá um ‘networking cocktail’. A ligação a um órgão de comunicação acaba por ser um elo para validar convites ao poder.

Conferências desta natureza são legais, mas têm regras específicas de transparência. São consideradas acções de marketing que obrigariam as farmacêuticas, de acordo com a lei, a divulgar os montantes envolvidos, e sobretudo os pagamentos que são feitos a médicos e aos órgãos de comunicação social. Contudo, apesar de se terem intensificado as relações comerciais nos últimos anos entre grupos de media e farmacêuticas, o Infarmed, através do seu presidente Rui Santos Ivo, tem permitido de forma impune e descarada o incumprimento generalizado da Lei do Medicamento que obriga as empresas farmacêuticas a revelar apoios concedidos a médicos e entidades de qualquer natureza.

O Flu Summit é apenas mais uma das centenas de eventos patrocinados por farmacêuticas que nos últimos anos têm feito entrar valores avultados nos depauperados cofres da Impresa, sem que se saiba ao certo quanto. Serã alguns milhões, certamente, não tanto por cada evento ser milionário mas sim por serem centenas os eventos realizados por ano com a ‘ajuda’ – leia-se, prestação de serviços – de órgãos de comunicação social.

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De acordo com o regime jurídico dos medicamentos de uso humano, um decreto-lei de 2006, “o patrocínio, por qualquer entidade abrangida pelo presente decreto-lei, de congressos, simpósios ou quaisquer ações ou eventos de cariz científico ou de divulgação, direta ou indireta, de medicamentos, deve constar da documentação promocional relativa aos mesmos, bem como da documentação dos participantes e dos trabalhos ou relatórios publicados após a realização dessas mesmas ações e eventos, devendo a entidade patrocinadora comunicar previamente ao INFARMED, I.P., o referido patrocínio”.

Mas essa informação, se entregue, não pode ficar escondida. A lei também determina que “qualquer entidade […] que, diretamente ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, conceda ou entregue qualquer benefício a toda e qualquer entidade, pessoa singular ou coletiva, de qualquer tipo, natureza ou forma, incluindo profissional de saúde ou qualquer outro trabalhador do Serviço Nacional de Saúde ou de organismos e serviços do Ministério da Saúde, associação, representativa ou não, de doentes, ou empresa, associação ou sociedade médica de cariz científico ou de estudos clínicos, bem como a estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde, independentemente da sua natureza jurídica e serviços e organismos do Ministério da Saúde nos casos admissíveis por lei, fica obrigada à sua comunicação, no prazo de 30 dias a contar da efetivação do benefício, em local apropriado da página eletrónica”. Ou seja, na Plataforma da Transparência e Publicidade.

Contudo, desde 2013 – ano em que se iniciaram os registos –, nunca nenhuma farmacêutica identificou eventos que resultassem em apoios financeiros ou outras prestações de serviços na área do marketing envolvendo o Expresso ou a SIC, os principais órgãos de comunicação social da Impresa. E realizaram-se centenas nos últimos cinco anos, sobretudo desde o início da pandemia, em 2020.

No ano passado, o Expresso também co-organizou o Flu Summit, mas apesar dos registos dos financiamentos a médicos, a Sanofi não quis indicar quanto pagou à Impresa.

Para não se ser exaustivo, só este ano – isto é, em pouco mais de quatro dezenas de dias –, o Expresso publicou conteúdos, alguns resultantes da cobertura de conferências, patrocinados pela Gilead, pela Bial, pela Johnson & Johnson MedTech, pela Novartis e Laboratórios Germano de Sousa, pela Sanofi. Até ao dia de hoje, e apenas desde 1 de Janeiro contabilizam-se 24 conteúdos associados a estas entidades do sector da saúde na secção denominada ‘Projetos Expresso’. Nenhuma destas entidades, apesar da obrigatoriedade legal, inscreveu qualquer um destes eventos na Plataforma da Transparência e Publicidade como patrocínio à Impresa, nem indicando assim os montantes envolvidos.

E se houver dúvidas sobre a existência de patrocínios nestes eventos, o próprio Expresso as retira. No final de cada um dos conteúdos publicados, quer no site quer na edição do Expresso, desde há uns meses, passou a constar a seguinte informação: “Este projeto é apoiado por patrocinadores, sendo todo o conteúdo criado, editado e produzido pelo Expresso (ver Código de Conduta), sem interferência externa.” Este aviso surgiu, em grande medida, para disfarçar problema: a elaboração destes conteúdos comerciais por jornalistas acreditados, algo que também é ilegal, porque se tratam de prestação de serviços para cumprimento de um contrato externo.

A ausência do registo de eventos patrocinados beneficiando a Impresa – e muitas outras empresas de media – não é um esquecimento; é intencional, com o beneplácito do Infarmed. Com efeito, por exemplo, a Sanofi não se esquece de registar os pagamentos que faz a médicos que participam em concreto no dia da realização da Flu Summit.

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No ano passado, para duas edições desta conferência, surge na Plataforma apoios financeiros da Sanofi a uma sociedade médica (Pneumologia) e a seis empresas de médicos, entre os quais Filipe Froes (2.502,80 euros) e Carlos Robalo Cordeiro (1.811,79 euros). Convém, no entanto, referir que, no caso da Impresa, os montantes serão muito mais elevados, sendo expectável que, apenas para a Flu Summit, a factura ultrapasse a fasquia da centena de milhar de euros, tendo em conta preços de mercado. Obviamente, este valor é especulativo, mas desnecessariamente: se a Sanofi cumprisse a lei, e o Infarmed a fizesse cumprir, os valores eram publicamente conhecidos.

Há mais de um ano – e perante a promiscuidade entre farmacêuticas e imprensa – que o PÁGINA UM tem pressionado o Infarmed a esclarecer as razões para que se mantenha uma obscuridade absoluta sobre um negócio – promoção de eventos com eventuais outras contrapartidas – que movimentará milhões de euros. E que, além disso, condiciona a linha editorial dos órgãos de comunicação social.

Em Novembro de 2023, Rui Santos Ivo garantia ao PÁGINA UM, nas poucas vezes que se pronunciou sobre esta matéria, que “sempre que existam razões para crer que assim não acontece ou sempre que chega ao nosso conhecimento, por qualquer meio, (inspeção, denúncias ou outras, etc.) que este procedimento não foi cumprido”, desencadearia “um procedimento de responsabilização, incluindo, a responsabilização contraordenacional, nos termos legais aplicáveis”. Mas nada sucedeu.

Com a intencional passividade do Infarmed, a promiscuidade e a falta de transparência entre farmacêuticas e empresas de comunicação social permite até que se realizem debates em horário nobre para falar sobre temas escolhidos a preceito.

E o silêncio tem prevalecido sobre as relações comerciais à margem da lei, envolvendo tanto a Impresa como a Medialivre, a Media Capital, a Global Media, o Público e o Observador. Em alguns casos, como sucedeu no ano passado, num debate na SIC Notícias, em horário nobre, moderado pela jornalista Nelma Serpa Pinto, o tema da longevidade integrava-se, de forma explícita, num projecto financiado pela Novartis e pela Fidelidade.

Sobre a Flu Summit, o PÁGINA UM colocou questões à Sanofi, questionando as razões para não incluir os pagamentos no Portal da Tranparência que tem feito para a organização e cobertura noticiosa deste evento pelo Expresso. Não houve qualquer resposta. A impunidade e à-vontade são absolutas. O Infarmed e Rui Santos Ivo assim o permitem.

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